“Africanos, não! Africanos, têm de ir para o fim da fila!”. É esta, invariavelmente, a resposta que Domingos Ngulond, 22 anos, e Mário Biangnê, 24, têm ouvido das autoridades ucranianas que controlam as multidões de dezenas de milhares de pessoas que, diariamente, tentam cruzar a fronteira com a Polónia para fugir de um País em guerra.
Domingos e Mário são portugueses, e têm na sua posse o passaporte que o comprova. Dormiram, porém, as últimas três noites ao relento, na neve, sujeitos a temperaturas negativas (que chegaram, na última madrugada, aos -5 graus centígrados), a aguardar por uma vez que não chega, enquanto outros, à frente dos seus olhos, lhes passam à frente para concretizar o salto para a segurança.
Porquê? “Porque são pretos”, diz, à VISÃO, sem meias palavras, Ana Maria Costa, mãe de Domingos, que, nos últimos quatro dias, nada mais tem feito senão enviar e-mails e fazer telefonemas às autoridades de três Países: Portugal, Polónia e Ucrânia. Para já, sem nenhuma resposta convincente.
Domingos, filho de mãe são-tomense e pai angolano, é nascido e criado em Évora. Viveu, depois, em Portalegre, no coração do Alentejo e, até à última quarta-feira, véspera do início da ofensiva militar russa, era estudante do 4.º ano na Universidade Nacional de Medicina de Ternopil, 480 quilómetros a oeste de Kiev. Mário é seu colega de curso; tem ascendência guineense, mas também só conheceu como lar Portugal e a Europa.
Os dois portugueses chegaram a Shehyni, a apenas cinco quilómetros de Medyka, já no lado polaco, na passada sexta-feira. Nesse dia, percorreram a distância a pé, até à fronteira, mas ainda hoje permanecem no mesmo local, pois sempre que chegam ao destino final acabam “atirados para o fim da fila”.
Entretanto, foi criada uma página de Instagram, chamada “Presos na Fronteira”, que tenta alertar para esta situação.
“É importante dizer isto: quem não deixa os ‘africanos’ passar são os ucranianos. São eles que têm travado os pretos. Primeiro, passam as crianças e as mulheres brancas. Depois, os homens brancos. Nem sequer olham para os seus passaportes, nem confirmam que são portugueses e europeus… Não é mais do que discriminação racial”, diz Ana Maria Costa. Os “africanos” continuam a aguardar.
A situação já tinha sido, aliás, confirmada, há dois dias, pela jornalista Stephanie Hegarty da BCC, no Twitter, que relatou um episódio idêntico, no mesmo local, envolvendo um estudante de Medicina nigeriano. Segundo a jornalista, os militarers ucranianos têm justificado a opção com uma única frase: “Ucranianos, passam primeiro”.”O estudante com quem falei disse-me que foram os soldados ucranianos, e não os guardas fronteiriços polacos que lhe disseram isto”, esclareceu a repórter britânica.
Entretanto, outra situação semelhante foi também noticiada, esta tarde, pelo projeto de jornalismo de investigação Lighthouse Reports, que publicou um vídeo filmado na estação de comboios de Lviv, onde, aparentemente, uma jovem negra é impedida de subir a bordo.
No dia em que está prevista a realização de um voo de apoio para fazer regressar a casa uma parte dos cerca de 50 portugueses e luso-ucranianos que já saíram da Ucrânia pela Moldávia e Roménia, como anunciou o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Domingos e Mário continuam a esperar pela sua oportunidade num território em conflito.
“Resta-me rezar”, diz-nos, com voz apagada pela angústia, Ana Maria Costa.