Na semana passda, Donald Trump concedeu clemência ao seu antigo conselheiro de Segurança Nacional, o general Michael Flynn, acusado de mentir ao FBI. A decisão fez surgir outro debate no espaço público acerca da legitimidade desta competência presidencial. “Como foi declarado por vários estudiosos de Direito, eu tenho o direito absoluto de me perdoar a mim próprio”, escrevia o presidente cessante no Twitter, em 2018. A verdade é que, ao longo da história, vários chefes de Estado dos EUA perdoaram várias outras pessoas, incluindo membros da família, mas nunca nenhum equacionou conceder clemência a si próprio. O que dizem os especialistas?
Depois de ter “perdoado” o peru Corn na simbólica comemoração do Dia de Ação de Graças, Trump abriu oficialmente a temporada do perdão nos EUA. Desde o início do mandato, o presidente já concedeu 28 indultos e 16 comutacões de pena e, segundo o The New York Times, é possível que mais pessoas sejam perdoadas até à tomada de posse de Joe Biden: “O fim de qualquer administração presidencial é um momento de intenso lobby relacionado com o perdão”.
A lei dos indultos presidenciais é das mais abrangentes. Permite que seja usada com criminosos condenados, mas também com quem ainda não viu um processo legal terminado: “Nenhum ‘futuro crime’ se qualifica, embora o presidente possa perdoar assim que a ofensa acontecer. Ele não precisa de esperar que um processo legal formal seja iniciado contra o acusado”, diz Jeffrey Crouch, professor assistente de Política Americana na American University, à plataforma de comprovação de factos PolitiFact. A Constituição afirma ainda que o presidente “terá o poder de conceder rejeições e perdão por ofensas contra os Estados Unidos, exceto em casos de impeachment”.
Nesta lei, as relações de proximidade não têm valor promíscuo – o chefe de Estado tem o direito de perdoar qualquer pessoa, incluindo alegados criminosos com quem possui relações de intimidade. Um exemplo do caso é o ex-presidente Bill Clinton que, em 2001, concedeu indulto ao seu próprio irmão, Roger, condenado por porte de cocaína no Estado de Arkansas.
A leitura legal complica-se, no entanto, quando o presidente invoca o perdão para si mesmo, algo que nunca aconteceu na história dos EUA, mas que Trump trouxe a público como hipótese num tweet de 2018. Sobre a legitimidade, “não há consenso entre os estudiosos sobre se um presidente pode perdoar-se a si mesmo”, explica Michael Gerhardt, professor de direito da Universidade da Carolina do Norte, à mesma plataforma de factos. O argumento mais forte contra o auto-perdão, corroborado por muitos académicos, é o de que o ato seria inconstitucional porque viola o princípio básico de que ninguém deve ser o juiz no seu próprio caso, diz a agência Reuters.
“As pessoas não podem processar, julgar ou participar em júris nos seus próprios casos. Como um juiz que teria que se submeter à autoridade de outro juiz se estivesse a ser processado, um presidente deve procurar o perdão do seu sucessor”, diz Brian Kalt, professor de Direito da Michigan State University. Richard Nixon, ex-presidente dos EUA, renunciou ao cargo depois de ser acusado no caso Watergate. Gerald Ford, o vice-presidente que ocupou a Sala Oval logo a seguir à demissão de Nixon, acabou por ilibá-lo dos crimes, em 1974, através da clemência presidencial.
Mas, então, poderia o vice-presidente, Mike Pence, perdoar os crimes do presidente caso este desejasse? Sim. Se Trump renunciasse, Pence assumia o governo e teria legitimidade política para conceder o indulto ao chefe de Estado. Outra alternativa, apontada pela agência Reuters e pelo PolitiFact, seria invocar a 25.ª Emenda, que permite que um presidente entregue temporariamente os poderes do seu cargo. O vice tornar-se-ia presidente interinamente por um curto período e poderia autorizar o perdão.
Aos olhos dos especialistas, como Bowman III, professor de Direito da Universidade do Missouri, estas opções são improváveis, já que isso poderia originar sérias críticas públicas a Mike Pence. O atual vice-presidente pode tomar Gerald Ford como exemplo: “A decisão de Ford em perdoar Richard Nixon por quaisquer crimes dos quais ele possa ter sido acusado por causa do Watergate é vista por muitos historiadores como o evento central da sua presidência de 896 dias”, escreveu o The New York Times.
Acredita-se que o indulto dado a Nixon pode ter sido o gatilho para que Ford não tenha sido eleito para um segundo mandato. O perdão não foi bem visto pela população, já que “acarreta uma imputação de culpa”.