Na primavera de 2017, Kemal Kiliçdaroglu era uma figura discreta entre os compatriotas e um ilustre desconhecido fora do país natal, a Turquia. Deputado, economista e ex-diretor da Segurança Social, ninguém deu pela sua falta no Congresso da Internacional Socialista, então realizado entre 2 e 4 de março, em Cartagena, na Colômbia. Só que as autoridades turcas não querem saber se o antigo funcionário público (1971-1999), líder do Partido Republicano do Povo (CHP), fez ou não uma viagem ao estrangeiro para se encontrar com camaradas ideológicos. Acusado de “terrorismo”, Kiliçdaroglu não se deixou intimidar nem parou com as críticas ao governo de Ancara e ao Presidente Recep Tayyip Erdogan. No seu entender, era inadmissível que o Chefe de Estado quisesse mudar novamente a Constituição, para reforçar os respetivos poderes e, entre outras emendas, extinguir o cargo de primeiro-ministro e arrogar-se o direito de instrumentalizar ainda mais a Justiça ou a comunicação social (perto de 90% sob tutela pública ou dela dependente). Não lhe serviu de muito. A 16 de abril desse mesmo ano, 51% dos eleitores disseram “sim” às pretensões de Erdogan, num polémico referendo em que ficaram consagradas as 18 alterações à Lei Suprema e em que se consumou a deriva presidencialista e autoritária do país.
Num repente que nem faz muito o seu género, Kemal Kiliçdaroglu decidiu tomar uma posição de força, para dar nas vistas. A 15 de junho de 2017, convocou uma “marcha pela justiça”, em solidariedade com um ex-jornalista e dirigente do CHP, Enis Berberoglu, condenado a 25 anos de prisão, por ser o alegado autor de uma fuga de informação sobre como os serviços secretos turcos financiavam e armavam grupos rebeldes na guerra civil síria. A iniciativa atrás descrita – equiparada à “marcha do sal”, protagonizada por Mahatma Gandhi, em 1930, contra a ocupação colonial britânica – fez com que Kiliçdaroglu se tornasse um símbolo da desobediência civil contra Erdogan e fosse comparado ao grande líder pacifista indiano. Ao longo de 25 dias e de 420 quilómetros, entre Ancara e Istambul, o movimento encabeçado por Kiliçdaroglu mobilizou mais de três milhões de pessoas, que foram, em diversas ocasiões, insultadas e alvo de ataques com ovos, tomate e pedras. A multidão desafiava o estado de emergência decretado um ano antes, devido à intentona militar que levou a 150 mil detenções e despedimentos sumários na máquina do Estado, e exigia a restauração da ordem democrática. “Kemal Gandhi”, agora suspeito de promover a “anarquia” e “forças terroristas” – a minoria curda, entenda-se –, reforçava o seu prestígio e o seu estatuto de líder da oposição, apesar de todas as derrotas eleitorais que, desde 2010 (data em que assumiu a chefia do CHP), averbara contra o Presidente e o AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, islamoconservador, no poder desde 2003).