“A maioria das pessoas conhece-me como Mo Farah, mas esse não é meu nome, essa não é a realidade”, admitiu o tetracampeão olímpico de atletismo conhecido por Mo Farah à BBC, a propósito de um novo documentário produzido pelo órgão de comunicação intitulado “The Real Mo Farah” e lançado no dia 13. O atleta de 39 anos falou sobre o seu passado desconhecido e admitiu ter recebido o nome pelo qual é atualmente reconhecido ao entrar ilegalmente no Reino Unido, guiado por uma mulher que nunca tinha visto. Hoje, a estrela olímpica apresenta-se utilizando o seu verdadeiro nome: Hussein Abdi Kahin.
“A verdadeira história é que nasci na Somalilândia, no norte da Somália, como Hussein Abdi Kahin. Apesar do que disse no passado, os meus pais nunca moraram no Reino Unido”, começou por contar o atleta. Depois de o seu pai ter sido morto quando tinha apenas quatro anos em consequência da guerra civil que começava na Somália, toda a sua família foi dividida. “Fui separado da minha mãe e trazido ilegalmente para o Reino Unido sob o nome de outra criança chamada Mohamed Farah”, contou.
Durante o seu percurso desportivo, Farah tornou-se o primeiro atleta de atletismo a ganhar quatro medalhas de ouro olímpicas. Depois de anos a ocultar o seu passado enquanto vítima de tráfico, a estrela olímpica decidiu avançar este ano e contar a sua experiência motivado pelos seus quatro filhos. “Família significa tudo para mim e, como pai, ensino sempre os meus filhos a serem honestos, mas sinto que sempre tive este aspeto privado que me impedia de ser eu”, admitiu. “Esta é a principal razão pela qual vou contar a minha história, porque quero sentir-me normal e deixar de sentir que estou a esconder algo”, acrescentou Farah.
No documentário, o atleta explicou que, até chegar ao Reino Unido, pensava estar a ir ao encontro de familiares que viveriam no país acompanhado por uma mulher que admitiu nunca ter conhecido até ao momento. Foi quando já se encontrava em solo britânico que o jovem atleta se apercebeu de que algo não estava certo. “Eu tinha todos os detalhes de contacto do meu parente e quando chegámos a uma casa, a senhora rasgou-os à minha frente e colocou-os no lixo e foi naquele momento que eu me apercebi de que estava em apuros.”, contou.
A família a quem foi entregue forçou o jovem Farah, que teria na época ente 9 e 10 anos, a realizar trabalho doméstico e a cuidar dos filhos do casal em troca de comida e um teto, tendo sido, inclusive, ameaçado. “Se eu quisesse comida, o meu trabalho era cuidar das crianças, dar-lhes banho, cozinhar para elas, limpar, e a mulher (que o terá trazido para o Reino Unido) disse: ‘Se quiseres ver a tua família novamente, não digas nada. Se disseres alguma coisa, eles vão levar-te embora”, lembrou, no documentário. Ao recordar a sua infância na casa que o acolheu, o atleta admite que nunca foi tratado como um membro da família e que hoje tudo o resta são “más lembranças”. “Trancava-me muitas vezes na casa de banho e chorava”, referiu.
Nos primeiros anos, Farah não teve permissão para ir à escola e tinha já 12 anos quando se matriculou pela primeira vez no sétimo ano na Feltham Community College sob o nome com o qual tinha ilegalmente entrado no Reino Unido, Mo Farah. Os funcionários da escola foram informados de que o novo aluno se tratava de um refugiado da Somália e a sua tutora da época terá dito à BBC que Farah era uma criança “emocional e culturalmente alienada” e que a família que o acolhia nunca apareceu nas “noites de pais”.
Foi na pista de atletismo que Farah redescobriu a sua vontade de viver e reafirmou a sua identidade. O professor de educação física, Alan Watkinson, contou que viu no jovem uma transformação assim que este pisou a pista. “A única linguagem que ele parecia entender era a linguagem da educação física e do desporto”, disse Watkinson. Para Farah era a correr que os problemas se desvaneciam e foi aí que reencontrou o lar que há tanto tempo lhe havia sido roubado. “A única coisa que eu podia fazer para me livrar dessa [situação de vida] era sair e correr”, admitiu a estrela olímpica.
Tantas horas passadas na pista levaram o atleta a, eventualmente, confidenciar ao seu professor de educação de física a realidade da sua situação, desde o tráfico ao trabalho forçado. Watkinson preocupou-se, depois, em arranjar uma nova casa para o promissor atleta e registá-lo para obter a cidadania britânica. “Ainda sentia a falta da minha família real, mas a partir daquele momento tudo melhorou”, contou Farah.
A fama e o reencontro
A partir daí, Farah deixou-se dominar pelo desporto e começou a destacar-se como atleta, tornando-se cada vez mais conhecido pelas suas conquistas em todo o mundo, incluindo na comunidade somali, de onde é originalmente. Certo dia, uma mulher abordou-o num restaurante em Londres e deu-lhe uma cassete com uma mensagem gravada. Ao escutá-la, Farah foi surpreendido por uma voz que não ouvia há muito tempo, mas que nunca poderia esquecer, a voz da sua mãe, Aisha. “Era mais do que uma cassete”, explicou Farah. “Era uma voz e cantava canções tristes para mim, como poemas ou canções tradicionais. E eu ouvi-a durante dias, semanas”.
A acompanhar a cassete, estava também um pequeno bilhete com um número de telemóvel e uma mensagem: “Se isto é um incómodo ou vai causar problemas, não precisas de entrar em contacto comigo”. Farah não hesitou: “Claro que quero entrar em contacto contigo”, lembra-se de ter pensado.
Aisha conta à BBC o que sentiu quando, num dia que parecia como tantos outros, atendeu o telefone e, do outro lado da linha, ouviu a voz do filho que não via há décadas. “Quando o ouvi, tive vontade de atirar o telefone para o chão e ser transportada para ele de toda a alegria que senti”, contou, a sorrir. “A emoção e a alegria de receber uma resposta dele fizeram-me esquecer tudo o que aconteceu.”
Durante o documentário, Farah levou o seu filho, a quem chamou de Hussein, em honra à sua verdadeira identidade, até à Somalilândia para conhecer Aisha e os seus dois irmãos. “Nunca na minha vida pensei que te veria ou aos teus filhos vivos”, disse Aisha ao seu filho no momento do reencontro. “Estávamos a viver num lugar sem nada, sem gado e com terras destruídas. Todos pensávamos que estávamos a morrer. Bum, Bum’, foi tudo o que ouvimos. Mandei-te embora por causa da guerra. Mandei-te para o teu tio em Djibuti para que pudesses ter alguma coisa”.
O que Aisha não sabia foi que Farah nunca chegou até ao seu tio e que se encontrava no Reino Unido, resultado de um esquema de tráfico infantil. “Ninguém me contou. Perdi contacto contigo. Não tínhamos telefones, estradas nem nada. Não havia nada aqui, a terra foi devastada (pela guerra)”, admitiu.
Nacionalidade ilegal
Uma vez que foi obtida sobre circunstâncias ilegais, a cidadania britânica de Farah é, tecnicamente, ilegal. No documentário, um advogado explicou ao atleta que, embora tenha sido traficado para o país em criança e tenha contado a verdade às autoridades competentes, ainda há um “risco real” de que a sua nacionalidade britânica possa ser retirada.
Um funcionário do Ministério do Interior do Reino Unido disse, no entanto, à BBC, que não serão tomadas medidas no que toca à nacionalidade do tetracampeão já que se supõe que uma criança não terá sido cúmplice quando a sua cidadania foi obtida por engano. “Se a pessoa era uma criança no momento em que foi perpetrada a fraude, falsa representação ou ocultação de facto, a assistente social deve assumir que eles não foram cúmplices de qualquer engano”, explica.
No documentário, Farah admite pensar frequentemente na pessoa cujo nome hoje usa como seu. “Muitas vezes penso no outro Mohamed Farah, o menino cujo lugar eu ocupei naquele avião, espero realmente que ele esteja bem”, referiu o atleta. “Onde quer que ele esteja, carrego o nome dele e isso pode causar problemas agora para mim e para a minha família”. O atleta disse ainda que manterá Mohamed Farah como o seu nome oficial.