Com 74 anos de vida e décadas de fama e de ativismo político, Jane Fonda pode dizer o que lhe apetece. A 26 de junho, dois dias depois de os juízes do Supremo Tribunal (ST) dos EUA terem revertido o direito ao aborto, a atriz, que é um ícone feminista desde os tempos em que se envolveu nos protestos contra a guerra no Vietname, deu uma entrevista ao diário francês Le Monde: “Como é possível que os Estados Unidos da América se tenham juntado ao grupo de países com uma visão quase medieval do papel das mulheres? Mais do que chocante, é quase inconcebível. (…) O ST perdeu toda a credibilidade, tornou-se uma cloaca… uma cloaca da extrema-direita.”
Tal como Jane Fonda, milhões de norte-americanos estão indignados e revoltados com os juízes que integram o mais importante e influente órgão judicial norte-americano, em particular com os seis magistrados tidos como sendo conservadores e religiosos (ver caixa). Em maio, sondagens da Gallup e da CNN revelavam que dois terços da população defendia a interrupção voluntária da gravidez (IVG), e todos os estudos de opinião confirmam essa tendência. Ou seja: ao fazer tábua rasa da histórica sentença “Roe vs. Wade”, com data de 1973 e em que se consagrou o direito federal ao aborto, o ST volta a demonstrar que não representa minimamente a sociedade norte-americana – quer no que toca ao género (apenas quatro mulheres, quando a população feminina se fixa em 51%), à religião (seis católicos num país em que só 22% dos indivíduos seguem a Igreja de Roma) ou à ideologia (seis conservadores assumidos, quando uma clara maioria escolheu, nas eleições gerais de novembro de 2020, preferencialmente candidatos do Partido Democrata para a Casa Branca e o Congresso).