Ao longo das décadas, poucas decisões do Supremo Tribunal dos EUA geraram o nível de debate, acrimónia e mobilização do que a efetuada em 1973 no processo legal Roe v. Wade. Não é caso para menos: a sentença histórica viria pela primeira a codificar na lei norte-americana o direito constitucional ao aborto. As fissuras culturais, sociais e políticas que advieram da eventual confirmação desse direito ainda se fazem sentir nos dias de hoje, dividindo grande parte da população americana em dois campos: pró-vida e pró-escolha.
À luz da recentemente divulgada intenção do Supremo de anular o direito ao aborto, que terá como efeito precisamente a anulação do precedente imposto pela sentença de 1973, o processo ganhou uma nova relevância. A questão coloca-se: afinal, o que foi o Roe v. Wade?
Tudo começou com Norma McCorvey, inscrita no processo pelo pseudónimo “Jane Roe”, uma jovem de 21 anos que, na altura, estava grávida do seu terceiro filho. Com uma educação equivalente ao 9.º ano português e poucas perspetivas de empregabilidade futura, McCorvey admitiu sentir-se como “uma mulher sozinha, sem ter para onde ir” e que “não havia ninguém no mundo que a pudesse ajudar”, decidindo, por isso, procurar uma interrupção voluntária da gravidez. Mas as circunstâncias não eram favoráveis ao seu desejo: McCorvey vivia no estado do Texas, onde o aborto era ilegal, exceto quando a vida da mãe estava em perigo.
A etapa seguinte na saga de “Jane Roe” iria fazer história: McCorvey, guiada pelas advogadas Linda Coffee e Sarah Weddington, processou o promotor do condado de Dallas, Henry Wade, com vista a anular a lei do aborto daquele estado – um longo processo que começou em 1969 e culminou na sentença de 1973.
Quando argumentou perante o Supremo Tribunal, Sarah Weddington começou por referir a decisão anterior de um tribunal estadual sobre o mesmo caso que declarou a lei do Texas inconstitucional, apontando-lhe duas principais falhas: “primeiro, é ilegalmente vaga”; “segundo, viola o direito de uma mulher escolher entre continuar ou terminar a gravidez”. As advogadas salientaram também que a lei era “cruel” e “inadequada”, e que os seus efeitos negativos recaíam desproporcionalmente sobre os ombros das mulheres mais pobres e desfavorecidas.
O Supremo mostrou-se sensível aos argumentos apresentados a favor da queixosa e os juízes sentenciaram categoricamente, com uma maioria de 7 – 2, que “uma mulher tem o direito absoluto durante os primeiros três meses de gravidez para decidir se quer, ou não, dar à luz ao seu filho”. Para justificar a decisão, Harry A. Blakmun, juiz que redigiu a opinião da maioria, muniu-se da Décima Quarta Emenda à Constituição Norte-Americana, que introduz o direito à privacidade e as devidas restrições à ação dos estados individuais, e da Nona Emenda, que detalha alguns direitos dos cidadãos americanos para além daqueles já consagrados na Constituição.
Samuel Alito, atual juiz do Supremo e autor do projeto de decisão divulgado na segunda-feira, dia 3, pelo jornal americano POLITICO, classificou a decisão de 1973 como “totalmente sem mérito desde o início”, acrescentando que quer “derrubar” o Roe v. Wade porque o direito ao aborto “não está protegido por qualquer disposição da Constituição”. Anteveem-se meses de vigoroso debate entre os políticos e cidadãos dos EUA, especialmente ao longo do eixo partidário Democrata/Republicano, partidos cujas posições sobre o assunto, em geral, se opõem.
Joe Biden, o Presidente americano, já manifestou a sua opinião ao escrever no Twitter que acreditava “que o direito de escolha de uma mulher é fundamental. O Roe [v. Wade] tem sido a lei por quase cinquenta anos, e a justiça básica e a estabilidade da nossa lei exigem que não seja revogada,” adicionando ainda que não vai baixar os braços: “Estaremos pontos quando qualquer decisão for emitida”.