
O relógio ainda nem marca sete da manhã. Está aquela luz duvidosa: já será de dia ou temos de chamar a isto madrugada?
No estacionamento do Colégio São João de Brito, em Lisboa, não restam dúvidas. A agitação anormal de pessoas para a hora assim o comprova. É de dia e um dia memorável. Daqui a nada, há de partir a Missão Ucrânia, uma caravana solidária, composta por cinco carrinhas de nove lugares, rumo à Polónia. Para lá, a bagagem faz-se de bens doados, de comida a medicamentos de primeira linha. Para cá, os lugares serão ocupados por ucranianos fugidos da guerra, mães e filhos, especialmente. Já é de dia.
E quantos dias foram precisos para aqui chegar, ou partir?

Roman Barchuk, 25 anos, despede-se da namorada com um beijo rápido. João Pedro Westwood e Afonso Teixeira já estão sentados nos bancos da frente da carrinha branca, atulhada de mercadoria até ao teto, à sua espera. Daqui a minutos, passarão pelos portões do colégio para dar início a uma viagem de 3500 quilómetros, que só terminará 40 horas depois. A ideia é não parar pelo caminho, irem revezando-se entre os três, enquanto um dorme, outro conduz com companhia, mas há que descansar e esticar as pernas de vez em quando.
Talvez o verbo terminar seja contraditório com o que se passará na Polónia. Para os 29 ucranianos que hão de embarcar nesta caravana rumo a Lisboa, a conjugação mais adequada será começar.
Na verdade, tudo começou há uma semana, quando os cinco organizadores desta Missão Ucrânia, João Westwood, António Correia, Manuel Cardoso Amaral, João Martins e Simão Saraiva Zanatti, todos de 25 anos, e colegas de trabalho, se sentaram à mesa de um café, a decidir como poderiam mexer-se para ajudar o povo ucraniano. A guerra começara oito dias antes. Não podiam ficar indiferentes.
E Roman Barchuk, ucraniano a viver em Portugal desde 2004, é amigo do grupo. As histórias dramáticas chegavam-lhes em discurso direto.

Os jovens consultores da NTT Data já saíram do café com a ideia de montarem uma caravana humanitária e com um grupo de Whatsapp criado para o efeito. Dividiram-se por temas e desataram a disparar para todos os contactos privilegiados que tinham. A empresa japonesa de tecnologia apoiou-os com alguma logística e cedeu-lhes os dias para que pudessem ir e voltar em sossego.
Arranjaram as cinco carrinhas através do Dramático de Cascais, do Futebol Clube de Penafiel, do grupo Barraqueiro e do Colégio São João de Brito. “Não procurámos mais porque quisemos seguir em estrutura de equipa. Se algum veículo tiver um problema, paramos todos”, explica João Pedro, na véspera da partida, por entre telefonemas constantes e entregas de bens de última hora, como uma mão cheia de embalagens de pilhas (um dos pedidos mais urgentes, neste momento). O carregamento das carrinhas só acabou pelas onze da noite da véspera da partida.
A seguradora Frego garantiu que todos os viajantes estão devidamente seguros nas viagens para lá e para cá. E a Cepsa contribuiu com o combustível durante o trajeto.
A associação Ukrainian Refugees UAPT prestou todo o apoio possível e imaginário, servindo de intermediário entre a vontade de ajudar e o desejo de ser ajudado. É através deles que já têm 21 pessoas sinalizadas para regressarem nas carrinhas. Ainda há oito lugares vagos, mas não temem chegar a Lisboa com eles vazios.
Entre esses refugiados de guerra estará um menino de 9 anos, primo de Roman (precisamente a idade que ele tinha quando chegou a Lisboa no início dos anos 2000). Será entregue pela sua mãe na fronteira com a Polónia, deixando-o a salvo com este parente. A restante família de Barchuk não quer deixar o país em estado de guerra.

Antes de apanhar esta criança que irá viver com Roman, numa casa que já conhece de algumas visitas que fez, noutros contextos bem mais felizes, a caravana parará em Pol Cel. É nesta cidade, a cerca de 200 quilómetros da fronteira, que existe um armazém da Help Ukraine – lá deixarão todos os bens recolhidos de domingo, dia 6, a terça, 8, e que encheram por completo o espaço livre das cinco carrinhas. Aliás, à saída de Lisboa, a visibilidade pelo vidro traseiro de qualquer dos veículos era absolutamente nula. “Temos os retrovisores”, desdramatiza Afonso Teixeira, quando se levantou esse problema.
Só depois desta paragem técnica para ganharem espaço nos bancos traseiros é que se deslocarão a Medyka, na zona fronteiriça, para recolher as pessoas já sinalizadas. “Soubemos entretanto que algumas já conseguiram vir, mas até lá chegarmos haverá mais quem queira embarcar connosco”, conta Roman, que vai servir de intérprete no terreno.
É para essas pessoas, maioritariamente mães com filhos, que estes 15 voluntários (cada um escolheu dois amigos da inteira confiança para irem juntos na carrinha), mais umas dezenas de colegas da empresa, preparam kits de boas vindas, compostos por produtos básicos de higiene, água e alguns alimentos. Para as crianças, juntaram ainda biberons, leite em pó, frutinhas, fraldas e brinquedos.
Índia Saraiva, 25 anos, não conhece ninguém da caravana, mas nem por isso está acanhada. É a única mulher do grupo que embarca – aderiu na sua condição de enfermeira. Soube da iniciativa através de um “amigo de um amigo” e cá está, pronta para partir, com a mala cheia de material de tratamento básico. “A minha maior expectativa é não saber o estado de saúde das pessoas que vamos buscar. Mas a intenção será integrá-las ao máximo na nossa equipa”, assegura, apesar de não ter experiência nestas situações-limite.
No caminho até Portugal, ainda haverá tempo para Índia traçar o histórico médico de cada passageiro ucraniano para assegurar que todos terão seguimento adequado, uma vez cá chegados.

Casas para onde irem e muitas oportunidades de trabalho não faltam. Isso tem sido assegurado pela associação Ukrainian Refugees UAPT, mas também através de Roman, a quem chegam muitas das propostas pelo facto de ser ucraniano e de ter já aparecido várias vezes na televisão, desde que a guerra começou.
“A segurança foi uma das maiores preocupações. Afinal, trata-se da vida de uma série de pessoas nas nossas mãos. As carrinhas foram à revisão, temos extintores, kits de primeiros socorros e correntes para a neve”, realça João Pedro Westwood, fazendo conta aos sete mil quilómetros que percorrerão até terça-feira, dia 15.
No regresso, a viagem já não será de um tiro só, porque trazem mais gente, várias crianças incluídas, e não haverá tanta urgência em chegar. Acordaram a cedência de 25 quartos com uma cadeia de hotéis em Frankfurt, na Alemanha, com comida incluída. Ficarão lá, no máximo, durante dez horas, por isso as restantes refeições terão de ser tomadas pelo caminho e financiadas pelos cerca de 20 mil euros recolhidos pelos organizadores em apenas três dias.
Já não restam dúvidas de que o dia nasceu. E só passaram oito dias desde aquele bendito café.
A bagagem pessoal, com mais sacos-cama, almofadas, água e snacks do que roupa, está encafuada nos buraquinhos que encontraram no meio das caixas de cartão organizadas por itens. São horas de estes amigos se porem a caminho, não sem antes darem uns chutos na bola de futebol amarela trazida para os entreter nos poucos momentos de descontração. Índia ainda fica um pouco à parte e não dá nenhum toque.
Sela-se o momento da partida com a alegria da pose à la equipa de futebol. Os últimos abraços à família que veio despedir-se (uma festinha ao cão incluída) e a primeira mudança metida, sem hipótese de marcha-atrás. “Boa viagem!”, grita cá de fora quem ficará aqui à espera – coração de pais apertados, mas seguramente muito orgulhosos.
