Quando se nasce em Moçambique, o caminho para a escola é feito de curvas apertadas, encruzilhadas e becos sem saída. São as mãos que fazem falta na machamba e a falta que as escolas fazem no país. São os pais que não estudaram, os casamentos precoces e as gravidezes prematuras. São os irmãos mais novos que precisam de colo e o ensino que, a partir do secundário, é caro e longe para quase todos. Aqui, quanto mais se estuda, mais difícil é estudar.
Desde 2008 que a Helpo está no país a ajudar a remover estes e tantos outros obstáculos. A abrir caminhos para que mais crianças cheguem à escola.
Os conflitos armados no norte de Cabo Delgado destruíram casas, escolas e vidas. Fizeram milhares de crianças dispersar por caminhos desconhecidos até ao sul.
E fizeram a Helpo tornar sua nova missão encontrá-las. É o que já conseguiu fazer com muitas. E continua, em busca das muitas mais. Crianças e adolescentes com longos percursos em tão curtos anos de vida.
Audácio, 8 anos – 2ª classe
Audácio é primeira sorte. Filho primogénito. Gosta de arroz, massa e chima. A mamã Telma estava a cozinhar um dos seus pratos favoritos quando os terroristas entraram na aldeia de Muambula.
Ao abrigo do mato, não se alonjaram. Trouxeram apenas o tapete da sala como conforto. A esperança era de conseguirem voltar. Durante quatro noites, o pai abrigou-se nas trevas para espreitar a aldeia. E foi em quatro noites que a esperança morreu e nasceu novo plano: ir a pé até Mueda.
Lá teriam forma de chegar a Pemba. Longe, seguro e onde havia um pequeno terreno em seu nome. Aqui, no bairro da Expansão onde vivem hoje, já fizeram casa de canas e chapa. Até o tempo e o dinheiro chegarem para construir uma de tijolos e cimento.
As três primeiras noites foram passadas com toda a família aninhada no mesmo tapete debaixo de um cajueiro. Único teto que tinham. Depois um vizinho emprestou uma divisão. E por lá se arrumaram até terem paredes a que chamarem suas.
O Audácio já está na 2ª Classe. No Colégio Tempo de Alegria. Filho de professores encontra sempre o caminho de volta à escola. Mesmo que tenha que percorrer mais de 350 quilómetros.
Num país onde tudo se carrega sobre a cabeça, Audácio traz quase tudo dentro da sua. É lá que transporta o abecedário, as contas de multiplicar, as três línguas que fala e um medo do escuro que não sabe contar. No coração traz sempre Carmen, a irmã mais nova. “Quando estou na escola fico com saudades dela.”
Julião, 12 anos – 5ª classe
“Português sei falar pouco-pouco.” É o que diz Julião. Mas apressa-se a acrescentar que é bom a jogar à bola. Estava num jogo de rua com os amigos quando o som dos tiros irrompeu pela partida. Depois foi a urgência nos pés. Na hora de fugir a equipa era só um: Julião.
Encontrou a família já em fuga. Juntou-se à correria sem abrandar o passo. Partiram para morada mais segura: o mato.
Ao abrigo do capim, fizeram nascer caminho até Magaia. Não podiam saber que pela estrada já feita, os terroristas seguiam na mesma direção.
O pai Gabriel apressou-se a salvar todos de novo para a proteção da vegetação. Deixou-se para último. E os homens armados fizeram-lhe as mãos atadas. Assim, amarrado, ficou para trás.
A noite chegou e encontrou Julião e a família entre as árvores. Bem perto da povoação. Na esperança de rever o pai. Na esperança de que a esperança não lhe morresse. O pai Gabriel, protegido pela ausência de luz conseguiu escapar. E foi só instinto que o guiou até Julião e aos irmãos, por entre o escuro do nada. Durante horas Julião tinha pensado o pior. Já o tinha visto acontecer. A outros.
Juntos chegaram a Nanili e apressaram-se a encontrar boleia para Mueda. Onde não demoraram. Só a distância oferecia segurança. Partiram quando possível para Montepuez e daí para Mapupulo. Aqui foram reencontrar a sua comunidade. Antigos vizinhos do norte. Lá de Chinda.
Unidos pela memória comum de uma terra que não sabem se ainda existe, aqui ficaram. Julião já chegou à escola. Vai a pé nos dias em que há sala para o receber. Mesmo sem machamba onde possa crescer a mandioca e algum dinheiro, sentem-se entre os que tiveram sorte. “Muitos morrem pelo caminho.”
Martins, 12 anos – 6ª classe
Chama-se Martins. Nome próprio mesmo. Gosta de jogar à bola e brincar com o seu novo amigo Felismino. A história desta amizade começou longe. Lá em Chinda. No dia em que Martins conheceu a palavra terrorismo com os seus olhos.
Já não era a primeira vez que os homens armados entravam na aldeia. Em maio tinham vindo e voltado a ir. Quando em junho receberam chamada de Awasse a dizer que voltavam, Martins escondeu-se rápido no mato. Apenas para ver a sua casa ter o mesmo destino que as outras: saquearam tudo. E no fim chegaram fogo ao que não conseguiram levar.
Foi um mês e meio a viver no mato. Anfitrião pouco generoso. Ofereceu a Martins e aos seus cama dura, áspera e poeirenta; mandioca escavada à força de dedos e uma escuridão feita de pavores.
Voltaram ao mundo mapeado em Diaca. Onde o terror já tinha feito casa. Seguiram a pé para Mueda. Foi aí que, graças às comunicações telefónicas, o tio Chimuémué soube que estavam em perigo. Este homem polícia exigiu que Martins e todos se juntassem a ele na segurança de Nampula.
Para Martins o braço longo da lei são dois. Abertos para o receber. O tio-polícia albergou todos. De cinco passaram a 15. Chimuémué é o único rendimento de mulher, filhos, sobrinhos, irmãs e mãe. Na hora das refeições usa as mãos sábias da filha Ângela para inventar farinha, matapa e arroz suficiente.
Martins está de novo a estudar. E conheceu Felismino. O novo amigo. O tio gostaria que ele e todos fizessem faculdade. “Para eles futuramente serem capazes de contar. Escrever a sua história. A sua origem. E todos os episódios que estão a passar.”
Ana, 16 anos – Não está a estudar
Desde pequena que Ana gosta de jogar à bola. Aos 16 anos continua a dar toques de pé e cabeça, mas reserva algum tempo para as conversas com as amigas. A sua disciplina preferida é o Português. Ou era. Antes de os terroristas lhe terem cortado o caminho para a escola.
Foi certo dia, lá em Chinda, que Ana ouviu pela primeira vez a voz das armas. Gritavam balas e ordenavam terror. Acatou as ordens e escondeu-se com a família nos terrenos do mato.
Foi nessa terra de ninguém que Ana mergulhou 2 meses. A memória desse tempo ficou lá. A boca não se consegue encher de palavras para contar esses dias.
Voltou ao mapa em Awasse. Apenas para reencontrar as vozes que ouvira em Chinda. De novo em fuga, deixou que o mato a acolhesse mais uma semana. As suas pernas recusaram-se a continuar e incharam para que parasse. Assim obrigada, ficou na pequena povoação de Namandaia. Ao longe ouviam-se armas disparar ofensas.
Mal o corpo lhe deu licença andou até Mueda. Aí apanhou transporte para Montepuez. Bem longe dos sons do medo. Mas as grandes cidades trazem outros perigos. O mais assustador? O preço que tudo tem, sempre demasiado alto para quem fugiu sem nada. Tentou viver aí 5 meses. Ana e a família tiveram que desistir.
Tinham ouvido falar de Mapupulo. Ali, a pouco mais de 17 quilómetros havia antigos vizinhos de Chinda que se estavam a reorganizar em casas feitas com as mãos e as matérias da Natureza. Encontraram caminho até um pedaço de terra livre. Aí fizeram casa. Distante, no horizonte, continua a escola. No cruzamento entre a esperança e a dúvida. “Talvez no próximo ano… mesmo isso não tenho certezas.”
Lura, 17 anos – Não está a estudar
Foi registada Lurdes, mas desde menina que todos a chamam de Lura. Nome de casa que saiu para a rua e para a escola. Vivia no bairro da Josina, em Chinda, e aos 7 anos já estava na 2.ª Classe. A mãe deixou os estudos na 9.ª para cuidar dos sobrinhos órfãos que a sua irmã deixou. Sempre quis mais para Lura.
Antigamente tocava-se o batuque nas aldeias para avisar o perigo que vinha. Hoje tocam telemóveis. Trazem o som de balas e fogo. Foi assim que Lura e a família souberam que a guerra estava a caminho.
Lançaram-se à sorte do mato. Vegetação desleixada é boa proteção. Fugiram sem nada que não fosse a roupa que as cobria. Lura trazia mais. Carregava nova vida dentro de si.
Foi à força de pernas e pés que chegaram a Mocímboa da Praia. Uns dias mais tarde chegavam os homens armados nos seus carros. Vinham com a energia inesgotável das balas. Lura refugiou-se nos caminhos sem fim do mato por mais uma semana.
Chegadas a Mueda encontraram descanso num chapa que as trouxe até Nampula e à casa da tia. Ainda pouco mais do que uma criança, Lura estreou-se como mãe aqui mesmo: no Bairro Militar de Nampula. Iuran é um bebé saudável com mais história de vida do que anos de idade. “Quando o bebé andar, é voltar a estudar.”
Mesmo com tanto onde tropeçar a caminho da escola, Lura sabe que pode contar com a mãe para a ajudar a levantar. A mãe só pode contar com encontrar ajuda para segurar a filha.
Zena, 13 anos – 6ª classe
Zena gosta de árvores. Desenha-as em forma de flor. Nos desenhos de Zena é sempre Primavera.
Foi numa quinta-feira no início de junho que Zena teve de se esconder entre árvores e capim alto. Os bandidos polinizaram terror por Mocímboa da Praia.
Quando a voz das armas se calou, pensaram voltar. Mas logo vieram helicópteros gritando no céu. Pássaros da guerra. Os disparos voltaram a ecoar bem alto.
Presa no mato há quase uma semana, Zena e a família viram solução para comer apanhando mandioca nas machambas de outros. Não se orgulham de tirar o que tinha dono. Só lembram uma fome que não se deixava domesticar.
Foi assim que andaram dias no mato. Caminhando mais de 100 quilómetros. Carregando crianças e medo até Nangade. Lá, perto da Tanzânia. O pai já tinha atravessado essa fronteira em criança. Em tempos do passado. Fugindo de outra guerra. Zena não precisou de o fazer. Uma tia em Silva Macua salvou todos.
Vive agora em casa emprestada com tia, pai, mãe e 6 irmãos. Já conseguiram terreno para pequena machamba. Faz ainda falta semente para lá deitar. E a ver florir como as árvores de Zena.
Já vai à escola aqui em Silva Macua. Ainda não sabe o que quer ser quando for grande. Mas se a guerra acabar? Não te, dúvidas de onde quer viver. “Tenho falta de ver mar de Mocímboa.”
Joana, 14 anos – 6ª classe
Joana é quase toda timidez. Sobra-lhe espaço para um enorme sorriso sempre que a conversa é sobre Helena e Adelaide, as suas melhores amigas.
Vivia na aldeia de Manica, Mucojo, no norte de Cabo Delgado.” Ia à escola todos os dias. A Avó Filomena, que não conseguiu chegar além da 4.ª Classe, fez tudo para garantir destino melhor à descendência.
Quando os insurgentes entraram na aldeia e incendiaram a casa da família, Joana fugiu para Macomia. E já estava de novo a estudar quando os conflitos se cruzaram mais uma vez no seu caminho. Escondeu-se no mato durante 6 dias. Sem água, sem comida, tinha apenas a esperança de poder voltar. Uma granada pôs fim à esperança e à sua casa. A escola foi incendiada. O medo ardia dentro de Joana.
Encontraram proteção a 225 quilómetros, em Pemba. É aqui que partilham a casa do filho mais velho da Avó Filomena. Ao todo são 15. Dormem repartidos entre quatro pequenas divisões.
Dizem que em África nunca estamos sozinhos. A Joana, a dividir casa com 14 pessoas, nunca está só.
Não é só em casa que há muita gente. As escolas de Pemba encheram-se com milhares de Joanas que também fugiram. E com a Covid é preciso garantir segurança e distância. Só há aulas duas vezes por semana para cada turma. Talvez este não vá ser o melhor ano escolar. Mas Joana não tem dúvidas do que quer:
“Eu quero estudar.” Um pouco afastada, sempre atenta, a avó Filomena ouve-a. E sorri.
Tony, 17 anos – 10ª classe
Tony adora maçanicas. Uma espécie de maçã muito pequena. Talvez seja o sabor adocicado que lhe agrada. Talvez seja por ser fácil de encontrar. Desde os 16 anos que Tony sabe que para difícil chega a vida.
Sendo filho de um Diretor Pedagógico, o seu caminho até à escola esteve sempre assegurado. Em 2020 deixou de ser seguro.
Tony estava a viver na casa de Mocímboa da Praia para seguir os estudos na secundária. O resto da família mudara-se para Chinda quando o pai lá foi colocado.
Foi por isso que, no dia em que os terroristas entraram na aldeia e obrigaram a família a fugir por entre árvores e capim, Tony se encontrava a mais de 50 quilómetros de distância. Longe dos pais e de saber que o perigo se aproximava.
Depois de deixar a mulher e os mais novos a salvo em Awasse, o pai de Tony continuou a andar, até chegar a Mocímboa. “Meu filho, aqui já não há coisa boa. Vamos ter que sair.”
A urgência na voz do pai foi suficiente para Tony partir sem perguntas na boca nem bagagem nas mãos.
A família reunida caminhou e viveu mais uma semana com o que o mato tem para oferecer. Um quase nada feito de chão duro e tubérculos escavados à mão.
Conseguiram chegar a Pemba em finais de Maio. Para trás ficaram roupas, móveis, livros e duas casas a arder.
E é de facto isso que têm: uns aos outros. Pouco mais. Dormem numa esteira estendida no chão com uma capulana ou duas a disfarçar a falta de mantas quando as noites trazem o frio. O caminho até à 10.ª classe ficou mais longo e mais duro. Mas Tony chega lá duas vezes por semana. Os dias que a escola tem aulas para lhe dar.