Um dos maiores conhecedores da História e da cultura afegãs, Michael Barry, professor da Universidade de Princeton, escreveu há quase quatro décadas um livro sobre o país e chamou-lhe o Reino da Insolência. A obra retrata aquilo que os comentadores e analistas agora designam por “cemitério de impérios”, mas não se limita a descrever o período em que o Afeganistão proclamou a sua independência do Reino Unido e foi uma monarquia instável e mais ou menos absoluta (1919-1973). Os habitantes deste território da Ásia Central, orgulhosos e guerreiros, desde a Antiguidade que rejeitam submeter-se ao domínio de quem vem de fora e esse é um dos (poucos) traços de união entre as diferentes etnias que habitam junto à cordilheira do Hindu Kush – ou Indocuche. Aliás, as rivalidades locais, entre tribos e clãs, são permanentes e históricas, sem que ninguém consiga impor-se aos demais de forma clara e duradoura.
Tudo isto é do conhecimento do homem que, nos próximos dias ou semanas, vai assumir a liderança do Afeganistão. O seu nome é Abdul Ghani Baradar e parece haver um estranho consenso quanto à sua escolha. Nascido há 52 ou 53 anos numa pequena e pobre vila da província de Oruzgan, no Centro-Sul do país, é descrito como um personagem cordato, bem-disposto, com sentido de humor e sobretudo um diplomata nato. Ou seja, alguém que jamais poderia ser classificado como insolente. No entanto, convém recordar que ele é um ilustre ex-combatente da guerrilha islâmica (vulgo mujahidin) que enfrentou e derrotou as tropas soviéticas no final dos anos 80 e que se tornou um dos fundadores e dirigentes máximos dos talibãs, durante a guerra civil (1992-1996) que eclodiu entre as diferentes fações afegãs e que provocou mais de 25 mortos só em Cabul, a capital. Enquanto comandante militar e braço direito do mullah Omar, o líder supremo dos talibãs e de quem era amigo desde a adolescência, Abdul Ghani Baradar foi um dos responsáveis pelo que aconteceu ao deposto Presidente Mohammad Najibullah. Em setembro de 1996, após passar quase quatro anos refugiado nas instalações da ONU em Cabul, o ex-governante socialista, laico e pró-Moscovo, foi sequestrado, torturado, castrado, decapitado e pendurado num semáforo junto ao palácio presidencial. Permaneceu aí durante mais de 48 horas e só depois foi permitido à família recuperar o cadáver e proporcionar-lhe um funeral digno. Najibullah era a primeira grande vítima da “nova ordem” que os estudantes de teologia e do Corão – significado de talibãs, em árabe – pretendiam instaurar no Afeganistão e que vigorou até ao outono de 2001.