O primeiro caso além-fronteiras a ser relatado na imprensa ocorreu na Áustria. No início da semana passada, soube-se que o presidente da câmara da cidade de Feldkirch, na região de Vorkerlberg, com 65 anos de idade, tinha recebido a primeira toma da vacina que estava a ser distribuída num lar de idosos – mesmo sabendo que a estratégia nacional de vacinação do país exige prioridade para os residentes, funcionários e pessoal médico dos lares. Segundo explicou o autarca, Wolfgang Matt, citado pelo The Guardian, apenas se pôs na fila, para o caso de haver doses por usar, depois de inoculados todos os candidatos prioritários. “Também não deitaria fora pão duro, usá-lo-ia antes para fazer torradas”, comparou.
Mas a versão dos acontecimentos foi logo contestada pela médica que habitualmente ali presta cuidados de saúde, Susanne Furlan, dizendo que havia vários candidatos na categoria de alto risco que deveriam ter tido prioridade nas 14 doses restantes. “Havia tantas pessoas à espera lá fora que precisam da vacina primeiro”, assegurou, depois de assumir que se recusou a administrar pessoalmente a vacina ao presidente da câmara. Seria o diretor da instituição em causa a sair em defesa de Matt, dizendo que se cumpriram os procedimentos já que o responsável político faz visitas regulares às suas instalações e havia doses extra.
O mesmo aconteceu na cidade de Rankweil, também no estado de Vorarlberg, onde a presidente da câmara de 44 anos, Katharina Wöss-Krall, também recebeu uma primeira dose da vacina a partir de uma dose de sobra. “Sim, tomei a vacina, mas não passei à frente de ninguém”, garantiu. Igual cenário ocorreu ainda na cidade de Eberschwang: dois deputados foram vacinados no início de Janeiro e a justificação foi que eram vacinas destinada a um lar que cancelou as inoculações em cima da hora. Nem o chefe regional da Cruz Vermelha escapou, acabando admoestado após autorizar a vacinação não só dos seus empregados, mas também dos seus familiares.
Demissões em Espanha
Histórias semelhantes surgiram, entretanto, também em Espanha: em meados da semana passada, soube-se que, dias antes, uma ambulância que estava a responder a urgências foi desmobilizada para se deslocar ao conselho de saúde de Múrcia, e que lá chegados, os profissionais de saúde administraram a vacina contra a Covid-19 a Manuel Villegas, o conselheiro de saúde daquela comunidade autónoma espanhola. E depois, foram também vacinados outros algos cargos e funcionários, alguns não ligados sequer àquela instituição – tal como, avançou a imprensa local, a própria mulher do conselheiro. Ao todo, foram 400 pessoas que não constam da lista de prioritários.
Perante isto, o ministério da saúde espanhol insistiu que é preciso reforçar o controlo do plano, pedindo que evitem a administração das vacinas a pessoas que não pertencem a nenhum grupo prioritário – impondo medidas preventivas e corretivas, se necessário, sublinha-se no documento, avançado pelo El Mundo, para que o plano seja realizado em consonância com o acordado na referida estratégia. Ao mesmo tempo, as demissões sucediam-se em catadupa, desde o chefe do Estado-maior da Defesa a vários autarcas e dirigentes partidários -e os dois maiores partidos espanhóis exigiram o afastamento de todos os abusadores
Mas, perante outras acusações semelhantes, no Reino Unido, onde a prioridade são os residentes nos lares, a British Medical Association assumiu que “no caso de doentes elegíveis não comparecerem para a vacinação, o princípio primordial será evitar desperdícios”, pelo que “as vacinas podem ser administradas aos trabalhadores das instituições de saúde”.
Como assim, doses-extra?
São casos que, como cá, estão a provocar indignação, tendo em conta que, de momento, as vacinas contra a Covid-19 são um recurso finito. Para já a produção das poucas vacinas que foram aprovadas pelos reguladores é limitada, com uma procura que excede a oferta. A agravar o panorama, os fornecimentos estão a ser reduzidos em alguns países, depois de os fabricantes assumirem que não estão a conseguir aumentar a produção – além de haver casos como o de Israel, que está a pagar mais por dose às farmacêuticas para ter prioridade na entrega.
Assim, a aposta internacional é de dar vacinas àqueles que mais precisam. Na maioria dos países, os trabalhadores da saúde e os idosos estão em primeiro lugar, com poucas exceções. Mas parece haver circunstâncias, alegadamente inesperadas, que estão a propiciar a toma da vacina por pessoas mais jovens e menos vulneráveis.
A explicação oficial é que se tratam de sobras, que não seria possível distribuir por outros em tempo útil e acabariam por ser inutilizadas. Isso acontece quando um paciente que estava agendado para receber uma vacina não comparece – o que cria o dilema, porque as vacinas têm um prazo de validade limitado. Por exemplo, uma vacina fabricada pela Pfizer/BioNTech, como explica a bula do fármaco, tem de ser injetada no prazo de cinco dias após as doses terem sido descongeladas. Caso contrário, vão para o lixo, privando alguém da imunização.
“No momento, é preciso tomar uma decisão rapidamente, porque a vacina não pode ser mantida”, justificou a professora Heather Draper da Faculdade de Medicina de Warwick, no Reino Unido, à BBC. “E é melhor que alguém seja vacinado do que ninguém”.
Daí também se terem registado casos do que se pode chamar “estar no lugar certo, no momento certo”. O exemplo apontado por aquele diário britânico é o do deputado conservador britânico Brendan Clarke-Smith, que o assumiu nas redes sociais. É verdade que recebeu a vacina “depois de passar uma tarde a fazer voluntariado num centro de vacinação” – mas aceitou a dose porque, caso contrário, “teria sido desperdiçada”. Mas, a ver pelas reações que gerou no Twitter por causa disso, não se pode propriamente dizer que a explicação tenha sido bem aceite.