A memória do Idai, que devastou o centro de Moçambique em março de 2019, ainda está demasiado viva na cabeça e nos corpos dos milhares de pessoas que este fim-de-semana se preparam para receber mais um ciclone. Em dezembro já enfrentaram a tempestade tropical Chalane, que afetou mais de 70 mil pessoas, numa altura em que o país se debate com sérias consequências provocadas, segundo os especialistas, pelas alterações climáticas.
“A nossa leitura é a seguinte: vem aí um ciclone, que pode não ser tão grave em termos de ventos e de como vai atingir a costa, mas é sem dúvida preocupante em termos de cheias”, começa por dizer à VISÃO Joana Martins, fundadora e responsável pelo movimento civil VAMOZ [Voluntários Anónimos de Moçambique], que nasceu como resposta ao Idai e que esta sexta-feira, 22 de janeiro, já estava de mangas arregaçadas a preparar-se para responder aos efeitos do Eloise.
O ciclone chegou à costa moçambicana com ventos de cerca de 200km/h, às 4h da madrugada, hora local.
Para além de a região centro de Moçambique ter registado elevados níveis de pluviosidade nas últimas semanas, os leitos dos rios Buzi e Pungué já estão significativamente elevados, e os terrenos profundamente encharcados. “Não ajuda o facto de na África do Sul as barragens estarem abertas”, acrescenta ainda a portuguesa que há 10 anos vive em Moçambique e que falou à VISÃO desde Maputo. “O nosso alerta vem também daí: os sistemas de alerta do Instituto Nacional de Gestão de Catástrofes (INGC) estão presentes, as populações foram alertadas, mas as pessoas estão traumatizadas com o que aconteceu da última vez, pelo que a reação de prevenção está a acontecer. Mas isto vale o que vale e a prevenção só previne até certo ponto”, diz em jeito de aviso. “As machambas vão ficar destruídas novamente, as pessoas voltaram a construir em muitos dos terrenos que foram alagados no Idai…neste momento o que estamos a fazer, enquanto sociedade civil e rede de parceiros é prepararmo-nos para as evacuações”, continua.
O VAMOZ é um movimento que atua como uma espécie de conector de pontos: agrega parceiros que possam ajudar em bens e serviços essenciais, durante as várias fases da resposta, e agiliza a sua atuação garantindo que as ofertas suprem as reais necessidades. “E não aceitamos dinheiro!”, apressa-se a salientar Joana. Basicamente, o que o VAMOZ faz é pedir que cada contribuidor, seja individual ou empresarial, contribua com aquilo que lhe é mais fácil e rápido – transportes, bens, serviços, alimentos, comunicação – e depois coordena-se com as organizações que atuam na linha da frente deste tipo de emergências. Para responder ao Eloise, revela, já “estamos a garantir que temos o pessoal dos barcos, temos helicópteros e um avião que já está posicionado no Chimoio. Está tudo pronto para que, assim que for possível, fazer voos de reconhecimento e evacuação; temos já a ligação com o mundo diplomático para perceber com a comunidade internacional como se poderá reagir e é obvio que já temos os voluntários preparados”. Logísticas mais complicadas em tempos de pandemia, porque fazer mais pessoas chegar a Moçambique nesta altura implica, para além dos vistos, testes à Covid-19 e todos procedimentos consequentes da pandemia que atravessamos.
A trabalhar em estreita colaboração com as sul-africanas Rescue SA e a Mercy Air, por exemplo, que garantirão os tais voos de reconhecimento e salvação, é para elas que Joana pede que sejam alocados donativos, se alguém fora de Moçambique tiver vontade de ajudar.
“Estas organizações aceitam ajudas para cobrir custos com combustível – tentamos ter uma bolsa que chega para um dia de voo, mas isso são 8 horas, que vai ser muito pouco, desconfio. Mas para as pessoas terem uma ideia, 10 a 15 mil dólares chegam para 10 dias de operação da Rescue SA, por exemplo. Paga o combustível, a alimentação e o material. De resto, tudo é feito por voluntários”, garante, explicando que para responder ao Eloise estão já cerca de 70 pessoas envolvidas na operação.
“Neste momento estamos a fazer um teaser para as redes e media, a coordenação destas várias frentes e a prepararmo-nos para o que vier”, confidenciava numa conversa ao início da noite de sexta-feira, pouco antes de os alertas do INGC terem confirmado que Eloise passara de tempestade tropical a ciclone depois de atravessar o Canal de Moçambique. Estimava-se que atingisse terra com ventos na ordem dos 200km /hora, o que se viria a confirmar.
“Desde o Idai criámos uma plataforma de coordenação em várias frentes, em que juntamos a Vodacom, a Mercy Air, a Rescue SA a Medic Response entre outros, e monitorizamos a evolução dos acontecimentos e preparamo-nos para o que está a acontecer”, explica ainda.
“Os problemas climáticos que só vemos na televisão a hora de jantar, estão à porta”, avisa Joana, pedindo que estejamos todos mais atentos não só às alterações climáticas, mas uns aos outros. “As pessoas têm de estar preparadas e predispostas para agir”, explica esta profissional das Relações Internacionais, especializada em desenvolvimento e ajuda humanitária, e que não consegue deixar de se envolver voluntariamente sempre que uma catástrofe acontece.
As autoridades locais davam conta de que 3000 mil pessoas, na província de Sofala, teriam sido já realocadas como medida de prevenção, mas atualmente mais de 90 mil pessoas ainda vivem em campos de reassentamento. Ao início da tarde, as imagens davam conta de que a água já tinha alagado grande parte da região da Beira.
Recorde-se que Moçambique e toda aquela zona do continente africano, com especial incidência em Madagáscar e Zimbabué, tem sido das mais fustigadas com tempestades tropicais. Os ciclones Idai e Kenneth – que em 2019 atingiram o centro e o norte de Moçambique, respetivamente – foram dos mais violentos da história do País e ocorreram com menos de um mês de diferença entre eles, com os especialistas a avisar para o perigo da maior frequência deste tipo de catástrofes, em períodos muito mais reduzidos do que o habitual. O Idai deixou cerca de um milhar de mortos e dezenas de milhares de desalojados.