Quem por estes dias passa pela cidade de Água Preta, em Pernambuco, pode visitar o jardim Usina de Arte para conhecer a nova criação artística de Juliana Notari: uma vagina vermelha com 33 metros de comprimento, 16 de largura e seis de profundidade. Além das diversas interpretações metafóricas e estéticas, a obra representa a nova divisão entre liberais e conservadores, principalmente se forem apoiantes de Bolsonaro.
Uma vulva vermelha, apelidada de Diva, é a mais recente obra cultural a extrapolar o Brasil para o mundo. Segundo a artista, a escultura tem como principais objetivos sensibilizar os visitantes para as questões de género e fazer refletir sobre a relação entre a natureza e a sociedade. Pelas redes sociais, Notari tem testemunhado comentários negativos em relação ao objeto artístico, com especial destaque para o “guru” político de Bolsonaro, Olavo de Carvalho. Na rede social Twitter, o ideólogo do Presidente deixou uma mensagem provocatória logo na data de inauguração da obra.
O caso já fez manchete em jornais internacionais, como o The Guardian ou a CNN, e vai integrar a caderneta de polémicas culturais do mandato de Bolsonaro. Nos últimos dois anos, o setor da cultura tem sido assolado por descredibilizações e má governação e as controvérsias culturais que se seguem são prova disso.
Não se brinca com a religião numa sociedade maioritariamente católica
A nova Diva veio abrir feridas profundas num país que olha para a cultura com limites à criação artística. Uma das maiores polémicas brasileiras nos últimos anos diz respeito ao filme de Natal do grupo humorístico Porta dos Fundos. Em 2019, o prédio da produtora foi atacado com explosivos, alegadamente por iniciativa de grupos religiosos.
No episódio especial “A Primeira Tentação de Cristo”, Jesus é representado pelo grupo como sendo homossexual, o que gerou uma onda de indignação por parte dos líderes religiosos e da ala mais conservadora do país. “Somos a favor da liberdade de expressão, mas vale a pena atacar a fé de 86% da população? Fica a reflexão”, escreveu, na altura, Eduardo Bolsonaro, filho do atual presidente e deputado federal, no Twitter. Uma petição para retirar o filme da Netflix chegou a ultrapassar um milhão de assinantes.
A história, que satiriza os 30 anos de Cristo, chegou mesmo a avançar para tribunal por uma ação interposta por grupos religiosos e evangélicos. O juiz decidiu sempre a favor da produtora Porta dos Fundos.
Cultura sem ministro ou ministros sem cultura?
A governação de um ministério que no atual executivo foi diminuído a secretaria tem sido instável, difícil e desacreditada. Em 2012, Bolsonaro foi o único deputado entre 327 a votar contra a Proposta de Emenda Constitucional 416, responsável por criar o Sistema Nacional de Cultura. Aquilo que poderia ser entendido como um presságio tem-se confirmado ao longo dos últimos anos do mandato, com nomeações de políticos que fragilizam cada vez mais a pasta.
A atual Secretaria Especial da Cultura, que passou para a alçada do ministério do Turismo no governo de Bolsonaro, é presidida por Mário Frias, a quinta personalidade desde janeiro de 2019. Regina Duarte, a secretária anterior, liderou o setor entre polémicas e falta de experiência. A apologia à ditadura militar brasileira abriu o debate sobre o fascismo e questionou a capacidade governativa da atriz. “Sempre houve tortura. Porquê olhar para trás?”, perguntava, em maio do ano passado. Figuras proeminentes do ramo da cultura exigiram a sua exoneração.
Recordar os tempos de fascismo não é exclusivo de Regina Duarte. Ainda antes dela, Roberto Alvim, secretário da Cultura de novembro de 2019 a janeiro de 2020, declamou um discurso copiado de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda durante o regime nazi. O caso correu o mundo e indignou os brasileiros, culminado com o afastamento de Alvim do cargo e do governo.
Uma área em crise e cada vez com menos dinheiro
Desde 2019 que o setor entra em lutas com o governo devido à diminuição de fundos por parte de empresas estatais. Um dos exemplos foi a empresa Petrobras, cujo financiamento para o incentivo à cultura acabaria por ser realocado em programas de educação e produção tecnológica, explica o jornal brasileiro Folha de S. Paulo. A decisão teve impacto no setor e alguns festivais, como o Festival do Rio e o Anima Mundi, dependeram de práticas de crowdfunding para a sua realização.
Em termos jurídicos, uma das mudanças mais polémicas foi a da Lei Rouanet, que fixava um teto de 60 milhões de reais em apoios públicos a produtores do ramo da cultura e da arte. De acordo com o mesmo jornal, em 2019, Bolsonaro fazia saber que essa parcela de subsídios iria cair para um milhão de reais.
Segundo os dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, em 2018 existiam cerca de 5,2 milhões de brasileiros a trabalhar no setor da cultura. O número representa 5,7% do total de emprego no país.