Há um ano, o Chile assistiu a protestos massivos, com tumultos e estações de metro incendiadas. Milhares de pessoas foram para as ruas do país para protestar contra as desigualdades vividas no país. No centro dos protestos – que se estenderam ao longo do último ano – estava a exigência de uma nova Constituição.
No domingo, a Constituição do Chile foi finalmente a votos, através de um referendo. 78% dos chilenos votaram a favor da substituição da Constituição, que tinha sido elaborada durante o regime do General Augusto Pinochet – o ditador de extrema-direita que governou o país entre 1973 e 1990.
A partir de abril do próximo ano, uma assembleia constituinte composta por 155 membros – com um número igual de homens e mulheres eleitos pela população – vai redigir a nova Constituição e apresentá-la no início de 2022. Depois de ser apresentado, o diploma vai a votos no país.
A Constituição de Pinochet
Augusto Pinochet liderou o país sul-americano durante 17 anos. Durante o seu tempo no poder, o Presidente da República implementou uma Constituição com um modelo económico neoliberal, de privatização da educação, da saúde e das reformas.
Apesar do fim da ditadura, o Chile manteve a Constituição original – com 42 emendas ao diploma realizadas pelo caminho. Ao longo dos anos, o Chile apresentou-se como um bom exemplo de desenvolvimento económico na América do Sul: entre 2000 e 2017, a taxa de pobreza do país caiu de 31% para 6.4%, de acordo com o Banco Mundial.
No entanto, os números à superfície podem ser enganadores. Segundo um estudo da Fundación Sol, um think-thank, 50% dos chilenos recebem menos de 400 mil pesos por mês – cerca de 440 euros. Para além disso, um relatório das Nações Unidas mostrou que mais de um quarto da riqueza do país está concentrada em 1% da população chilena. Apesar da pobreza extrema ter diminuído, as desigualdades mantém-se profundas no país.
Os protestos de outubro de 2019
Em outubro de 2019, o Governo do Chile aumentou em 30 pesos – cerca de 3 cêntimos – o preço dos bilhetes de metro em Santiago, a capital do país. Apesar de parecer uma alteração pouco relevante, esta medida despoletou protestos em grande escala pelo Chile. Foi o culminar do sentimento de revolta do povo contra a sua elite política e as desigualdades vividas diariamente pelos cidadãos comuns.
No dia do aumento do preço dos bilhetes, vários estudantes de Santiago invadiram as redes socais e apelaram à desobediência civil. Em pouco tempo, milhares de pessoas juntaram-se e a capital assistiu a manifestações caóticas, com tumultos na rua, lojas assaltadas e 22 estações de metro incendiadas. Pouco depois da meia-noite, o Presidente Sebastian Piñera instituiu um estado de emergência e enviou militares para controlar as cidades mais afetadas pelos protestos.
Durante a primeira semana de protestos, o foco dos órgãos de comunicação esteve nos grupos de crime organizado que aproveitaram os protestos para roubar lojas e invadir propriedade privada. No entanto, a narrativa mudou quando mais de 1 milhão de chilenos se reuniu numa manifestação pacífica na cidade de Santiago – o equivalente a 5% da população. Foi a confirmação do descontentamento do povo e o primeiro passo para mudar de Constituição.
A exigência de uma nova Constituição
A crítica à Constituição de Pinochet sempre esteve no centro dos protestos chilenos. Os manifestantes repetiam o slogan “não são trinta pesos, são trinta anos” – uma referência às três décadas que passaram desde o fim da ditadura no Chile. O problema não era o aumento do preço dos bilhetes, mas sim os trinta anos de desigualdades.
Devido às regras da Constituição de Pinochet, os políticos chilenos têm muita dificuldade em reformar os diferentes setores. Qualquer alteração profunda precisa de uma “super-maioria” no parlamento para ser aprovada – o que é quase impossível dadas as divisões políticas. Qualquer tentativa de alteração à Constituição torna-se numa intensa batalha política, a que poucos líderes se querem sujeitar.
O Presidente Piñera acabou por ceder aos protestos e, em novembro de 2019, declarou o seu apoio a uma nova Constituição. O referendo estava planeado para abril, mas teve de ser adiado para o dia 25 de outubro devido à pandemia da Covid-19.
Uma estrada sinuosa
No domingo, 78% dos chilenos votaram a favor da redação de uma nova Constituição e da abolição da Constituição de Pinochet. No entanto, o caminho desta reforma não é fácil.
Em primeiro lugar, os 155 lugares da Assembleia Constituinte vão ser decididos em eleições. Isso significa que, em breve, centenas de chilenos vão iniciar campanhas políticas nos seus distritos. Como acontece em qualquer campanha, o país vai assistir debates intensos e promessas eleitorais. No entanto, os candidatos poderão ter dificuldades em cumprir todas estas promessas – quando se reunir em abril de 2021, a Assembleia Constituinte terá um curto prazo de nove meses para redigir uma nova Constituição (com uma opção de extensão por três meses).
Em segundo lugar, a redação do novo diploma coincide com as eleições presidenciais chilenas do próximo ano. Os debates presidenciais podem influenciar a formação da nova Constituição e polarizar a opinião pública sobre o assunto. Isso pode ser altamente prejudicial para aqueles que almejam uma Constituição que abranja os vários problemas sociais do país e garanta a igualdade entre todos os chilenos.
Por fim, apenas metade da população do Chile votou no referendo do passado domingo. Apesar de ser a menor taxa de abstenção dos últimos dez anos no país, continua a ser um número baixo. Convencer os outros 50% dos chilenos a apoiar uma nova Constituição, para a qual não votaram, pode apresentar dificuldades.