Os médicos russos que acompanham o estado clínico do político da oposição Alexei Navalny dizem agora que não encontraram qualquer vestígio de envenenamento. Mas, a confirmar-se a suspeita sobre a origem do coma em que um dos principais críticos do presidente russo se encontra, não seria propriamente inédito.
Navalny, de 44 anos, adoeceu num voo de regresso a Moscovo esta quinta-feira, 20, e foi levado para o hospital, depois de uma aterragem de emergência, na Sibéria. Segundo um seu aliado, Ivan Zhadanov, a polícia teria encontrado “uma substância muito perigosa” no corpo do político. Já as autoridades de saúde locais ainda não têm um diagnóstico, nem confirmam a presença da dita substância.
Alexander Murakhovsky, médico-chefe do Hospital de Omsk, onde Navalny foi internado, começou por assegurar que seu o estado de saúde melhorou um pouco, mas não o suficiente para aguentar uma transferência hospitalar – como pretendia desde o início a família. Kira Yarmysh, secretária de imprensa da Fundação Anticorrupção, fundada por Navalny em 2011, garantiu logo que só podia ser mais uma manobra de distração. “É para garantir que o veneno no corpo não possa ser encontrado.” A família recorreu para o Tribunal dos Direitos do Homem e a UE de imediato veio a público exigir a rápida investigação do casa. Tal como a sua transferência imediata para a Alemanha, entretanto autorizada.
A lutar pela vida nos cuidados intensivos, Navalny terá sido alegadamente envenenado por uma substância misturada no chá que lhe foi servido durante a viagem. A prática, reza a história do país, não é propriamente uma surpresa.
Desde o início do século passado
Recue-se a 1916 e ao fim da vida de Rasputine, monge de enorme influência na corte do último czar russo, Nicolau II. Foi envenenado em 1916 no palácio do Príncipe Félix Yusupov, depois de beber cianeto dissolvido em vinho. Nas suas memórias, o dito príncipe justificou que o consideravam um perigo para o futuro da monarquia russa. Mas, como depois de beber vários copos nada acontecia, Rasputine acabaria morto a tiro. O corpo, soube-se depois, seria atirado para o gelado rio Neva, em São Petersburgo.
Encontrar a perfeição da síntese de toxinas e usá-la massivamente foi algo depois aperfeiçoado durante o tempo de Estaline. Na década de 1930, surgiu o chamado “Laboratório-12”, também conhecido como “Câmara”. Ali se conta que foram criados venenos poderosos que podiam matar rapidamente sem deixar qualquer vestígio no corpo. Trata-se da instalação cuja existência foi revelada por Oleg Kaluguin, um antigo general do KGB exilado nos Estados Unidos.
Uma das mais conhecidas vítimas desses poderosos venenos terá sido o reconhecido diplomata sueco Raoul Wallenberg. Terá sido eliminado em 1947, nas masmorras da conhecida Lubianka, a sede do KGB. Essa é pelo menos a tese das autoridades suecas, que há menos de uma década pediram a reabertura da investigação sobre a sua morte. Famoso pelos esforços bem-sucedidos para resgatar dezenas de milhares de judeus da Hungria, então ocupada pelo regime nazi, Wallenberg seria detido pelos soviéticos em janeiro de 1945. Era acusado de espionagem.
Depois, simplesmente desapareceu. Seria relatado que morrera dois anos depois, enquanto estava preso. Em 1957, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia informou que a morte se devera a um ataque cardíaco. Mas o país nunca se conformou com aquela versão.
Mortos ou… desfigurados
Esse foi pelo menos o desfecho do bem mais recente caso do ex-presidente ucraniano Viktor Yushchenko, envenenado com uma dioxina que não o matou, mas desfigurou-lhe o rosto. Presidente do seu país de 2005 a 2010, foi durante a campanha que protagonizou o episódio.
Estávamos em setembro de 2004. No dia 5, Yushchenko jantou com o chefe e o vice-chefe dos serviços de segurança da Ucrânia. No dia seguinte, o candidato da oposição sentiu-se mal e no dia 10 foi internado de urgência numa clínica austríaca. Ao que relatou depois, aquele foi o único momento em que os serviços de segurança que o acompanham não provaram os alimentos. A ementa incluía lagostins do rio, vodka e outras bebidas. As autoridades russas bem negaram a autoria de qualquer envenenamento. Mas depois de ter sido sujeito a uma análise, numa clínica fora do país, foi detetada a presença de uma determinada dioxina no seu organismo.
Tratava-se de TCDD, sigla do químico tetraclorodibenzo-p-dioxina, a mais tóxica das mais de 70 dioxinas conhecidas – como explicou em tempos à AP Abraham Brouwer, professor de toxicologia ambiental na Free University em Amsterdão. Quatro dias depois do referido jantar, Yuschenko apresentava fortes dores abdominais e lesões na face e tronco. Eram-lhe também diagnosticados vários problemas graves no fígado e pâncreas, além de várias úlceras no aparelho digestivo. A erupção, depois, de uma grave forma de acne em adultos, deixar-lhe-ia a cara completamente desfigurada.
Outro espião…
Pouco depois, seria a vez de Alexander Litvinenko, um ex-espião soviético, exilado em Londres. Nascido em 1962, seria mobilizado para o exército aos 18 anos e, nas duas décadas que se seguiram, subiu de soldado raso para tenente-coronel. A partir de 1988, serviu nas agências de contraespionagem do KGB soviético. Três anos depois, especializou-se na ação antiterrorista e no combate ao crime organizado. Mas depois de várias vezes preso, e de a sua família sofrer ameaças do serviço federal de inteligência, resolveu sair do país.
Instalado com a família no Reino Unido, onde lhe foi concedido asilo político, ali viveria entre maio de 2001 e novembro de 2006. Durante esse tempo publicaria dois livros — Blowing Up Russia: Terror from Within e Lubyanka Criminal Group — nos quais acusava os serviços secretos russos de encenarem atentados à bomba e outros atos terroristas. Entre eles, a crise de reféns do teatro de Dubrovka, em 2002, e a crise de reféns da escola de Beslan, em 2006. Tudo de forma a favorecer a ascensão de Vladimir Putin ao poder.
…que saberia demais
Em outubro de 2006, Litvinenko voltou a apontar o dedo a Putin, acusando-o de ordenar o assassinato da jornalista Anna Politkovskaya, depois desta acusar o agora presidente vitalício de corrupção e violação dos direitos humanos, durante a recente guerra da Chechénia. A resposta não demorou. A 1 de novembro de 2006, Litvinenko adoecia repentinamente. Ou nem por isso. Nesse dia tinha-se encontrado com outros dois ex-agentes Dmitry Kovtun e Andrei Lugovoy. Ambos negaram qualquer envolvimento, mas acabou por se saber que Kovtun tinha deixado vestígios de polónio-210 em casa e no carro. Um micrograma daquela substância é suficiente para matar um adulto. Um grama pode arrasar milhões de pessoas. A 22, a equipa médica que acompanhava Litvinenko no University College Hospital informava que o seu estado de saúde se agravara. Morria no dia seguinte. Putin diria apenas “Infelizmente, o Sr. Litvinenko não é Lázaro”.
Incógnitos, mas nem tanto
Há ainda a acrescentar o caso de Sergei Skripal e da filha, Yulia, dos poucos a sobreviverem à ação do reagente químico conhecido como novichok. Em março de 2018, os dois foram encontrados num banco de um centro comercial, em Salisbury, no sul de Inglaterra. Ela desmaiada e ele a fazer movimentos estranhos, enquanto olhava para o céu. Conduzidos ao hospital, seriam internados nos cuidados intensivos. Quando se descobriu a identidade de ambos, o enredo adensava-se.
Tratava-se do antigo espião russo que, em agosto de 2006, fora considerado culpado de alta traição por um tribunal militar de Moscovo. Supostamente, teria passado a década de 1990 a passar segredos russos aos serviços secretos britânicos. Acabaria por beneficiar do indulto do presidente Medvedev, em 2010, e seria, depois, libertado, no âmbito de um programa de troca de prisioneiros entre a Rússia e os Estados Unidos. Exilado em Inglaterra, ali vivia desde então, mais ou menos incógnito.
Mas naquele dia de março de 2018 tudo se alterou, depois de a filha viajar da Rússia para o visitar. Segundo a BBC, os dois estavam a ser vigiados havia meses pelas autoridades russas, através da conta de email de Yulia. Seriam envenenados com novichok, conhecida arma química desenvolvida na antiga União Soviética e que demora entre 30 segundos a dois minutos a surtir efeito. Ainda assim, sobreviveram. Yulia foi a primeira a recuperar e teve alta em abril seguinte. O pai apenas em maio.
Como outros na oposição
Tal como todos estes casos, Navalny também foi frequentemente detido pela polícia e ameaçado por grupos pró-Kremlin. Em 2017, foi mesmo atacado por vários homens que lhe atiraram antisséptico para o rosto, ferindo-o num olho. No ano passado, fora levado de urgência da prisão, onde cumpra pena após uma prisão administrativa, para um hospital. Já na altura, os seus colaboradores mais próximos suspeitaram de envenenamento. Os médicos disseram que se tratava apenas de um grave ataque alérgico e devolveram-no ao estabelecimento prisional no dia seguinte.
Além disso, a sua Fundação para o Combate à Corrupção não se tem cansado de expor a corrupção entre funcionários do governo russo, incluindo alguns à mais alta escala. E Navalny tinha ainda feito campanha para desafiar Putin nas presidenciais de 2018. Acabou impedido de concorrer.