Quando as pessoas se transformam em números, parecem perder a importância. E nunca como agora Moçambique teve tantos números com que nos devêssemos preocupar – e que teimamos em ignorar. Dois milhões de pessoas afetadas – um quinto da população portuguesa. Cerca de 230 mil pessoas a passar fome – toda a cidade do Porto. Milhares de crianças que nem conseguem sair de um grave estado de desnutrição e que vão continuar em necessidade nos próximos meses. Milhares de milhões de dólares (125, para sermos exatos) prontos a ser investidos numa das áreas mais violentas do país por vários consórcios internacionais, enquanto os 100 milhões de dólares necessários para fazer face à insegurança alimentar, à desnutrição e à violência nunca mais chegam.
Mas os números despersonalizam e rapidamente a empatia que se sentiu durante, por exemplo, as tragédias provocadas pelos ciclones Idai e Kenneth, acaba por desaparecer. É disso que falam as várias ONG no terreno, numa altura em que os problemas de segurança e a falta de dinheiro obrigam a redirecionar recursos e repensar estratégias. Organizações como a Médicos sem Fronteiras, por exemplo, já inclusivamente abandonaram a região norte do país, depois de os ataques em Macomia e Mocímboa da Praia terem destruído parte das suas instalações.
Fontes ouvidas pela VISÃO confirmaram o clima de medo e de insegurança, numa altura em que nem os edifícios do Governo e da Igreja Católica, normalmente poupados, têm sofrido ataques. Várias missões católicas foram destruídas nas últimas semanas, e o Bispo de Pemba tem levantado a voz para tentar alertar para a situação. Numa carta enviada recentemente a várias organizações internacionais, e citada pelo portal Sete Margens, Luiz Fernando Lisboa pede ajuda concreta para a região.
“Por amor de Deus, façam alguma coisa por Cabo Delgado”. Na mesma missiva, o prelado salienta que “há muitas crianças separadas dos seus pais, pois quando há ataques nem sempre a família consegue ficar junta, gerando um sofrimento ainda maior”, sublinha o bispo. E conta um caso, de finais de janeiro: uma senhora chegou a Pemba com 12 crianças, “sendo que somente duas eram suas e as outras encontrou no mato”.
Ajuda concreta para pessoas concretas, tem pedido aquele responsável da Igreja Católica, uma das mais ativas vozes no pedido de ajuda para Cabo Delgado. Fontes no terreno, contactadas pela VISÃO, pediram para não comentar o caso com receio de sofrerem represálias se falassem sobre o que se passa atualmente na região.
Em Cabo Delgado, as perdas humanas já superaram o milhar, com o ano de 2020 a deixar adivinhar meses de escalada na violência, numa altura em que o auto-proclamado Estado Islâmico e o tráfico de droga não param de fazer aumentar o número de óbitos. Vilas, cidades inteiras têm sido destruídas e obrigado milhares de famílias a deixar para trás tudo o que conhecem e o pouco que têm para tentar sobreviver.
Enquanto o Governo de Moçambique se tem mostrado incapaz de resolver a questão – apesar de terem reportado que têm conseguido matar alguns dos insurgentes em ações concretas – não é claro se a ajuda externa seria bem-vinda. Emília Columbo, investigadora do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais (CSIS) nos EUA, referiu recentemente à Deutsche Welle que acredita na utilidade de o Executivo de Filipe Nyusi pedir ajuda internacional, mas que “para essa ajuda ter um maior impacto, o primeiro passo é o Governo desenvolver a sua estratégia e é uma estratégia que tem [de ter] um aspeto de segurança e militar, mas também sociais e económicos para ajudar o povo”.
Durante a mesma entrevista, a especialista sublinhava que “o Governo moçambicano é a entidade que tem de ter a maior vontade de ver a estabilidade e capacidade de tomar conta [da situação]. Esta é uma situação que começou em Moçambique e vai ter de acabar lá, o Governo e as suas estratégias, os de fora não podem concertar este problema. Podem apoiar, podem oferecer assessores e apoio de inteligence. Mas, no final das contas, isso acaba lá, com o povo e Governo de lá”, defende.
Para subsistir, a população de Moçambique depende sobretudo de recursos naturais como a agricultura e a pesca. Em 2019, e segundo dados da ONU, 71,3% da força de trabalho daquele país estava empregada no setor agrícola. Em Cabo Delgado, o tabaco, o milho, a mandioca, o sorgo, o amendoim e a ervilha são as culturas mais recorrentes. No entanto, os ataques constantes desde 2017 – pode consultar aqui uma cronologia atualizada da onda de violência – têm elevado os receios das famílias em manter as suas colheitas, aumentado na mesma proporção os riscos de insegurança alimentar.
O início da perfuração e extração de petróleo teve também efeitos na pesca, cuja captura diminui significativamente segundo dados citados pela Al Jazeera em fevereiro deste ano. Recorde-se que Cabo Delgado é uma das províncias que ainda tenta recuperar-se da insegurança alimentar que tem sido agravada pelos choques climáticos, incluído secas, inundações e os ciclones do ano passado. “Uma intensificação da crise da insurgência desacelerará os processos de recuperação e levará as populações afetadas a uma necessidade mais severa”, alerta a ACAPS, um consórcio de organizações não governamentais que integra o Norwegian Refugee Council, a Save the Children e a Mercy Corps.