Foi o primeiro país europeu a decretar que todos ficassem em casa e, logo na noite desse 13 de março, pessoas de toda a Itália puseram-se à varanda a cantar. A música escolhida, essa, apregoava que “andrà tutto benne”, tudo ia ficar bem. Mas, três semanas depois, já não há cantorias. Agora o som que sobressai é o de uma enorme agitação social. Outro som acompanha agora a população à medida que, especialmente no sul mais pobre, percebe que nem tudo está bem.
“Neste momento, as pessoas têm medo. Receiam o vírus, mas também a pobreza”, sublinhou ao The Guardian Salvatore Melluso, padre da Caritas Diocesana di Napoli, uma instituição de caridade administrada pela igreja em Nápoles. “Muitos estão sem trabalho e com fome. As filas nos bancos alimentares são enormes”.
É verdade que houve (até este momento…) muito menos mortes por Covid-19 no sul do que no norte do país. Mas no sul levanta-se agora a questão dos meios de subsistência. E a tensão em toda a Campânia, Calábria, Sicília e Apúlia, aumenta à medida que as pessoas ficam sem comida e sem dinheiro.
Há relatos de donos de pequenas lojas a serem pressionados para darem alimentos de graça. Ao mesmo tempo que a polícia patrulha supermercados para impedir roubos. Os trabalhadores independentes, ou aqueles que têm contratos que não garantem benefícios sociais, perderam salários – e muitas pequenas empresas podem nunca reabrir.
“Vamos conseguindo pagar as contas, mas até quando?…”
Paride Ezzine, empregado de mesa em Palermo, na Sicília, deixou de receber salário desde que o restaurante em que trabalhava fechou as portas. “Tenho dois filhos e vamos conseguindo pagar contas, mas não sei durante quanto tempo. Pedimos ao banco para adiar as prestações da casa, mas disseram-nos que não. Estamos a ficar de rastos com tudo isto.”
Agora, o bloqueio já foi alargado até à Páscoa e eis que surgem outro efeitos dramáticos. Estamos a falar dos estimados 3 milhões – dados de 2018 – que, um pouco por todo o país, trabalham sem qualquer contrato. Mais de um milhão, assegura a CGIA Mestre, a associação nacional de pequenas empresas, vive naquela região.
“Na realidade, não conhecemos bem a realidade. Aqueles números são apenas uma estimativa”, comenta Giovanni Orsina, professor de política da Universidade Luiss, em Roma. “Sabemos que um número significativo de pessoas vive dia a dia, fazendo trabalhos ocasionais. Também há muitos lojistas, ou profissionais que trabalham por conta própria, que podem ter algumas poupanças. Mas essas também se esgotarm rapidamente, se ficarem em casa muito mais tempo…”
Perante a crescente agitação social, Giuseppe Conte, o primeiro-ministro anunciou que 4,3 mil milhões de euros recolhidos por um fundo de solidariedade seriam imediatamente adiantados a todos os municípios. Àquele valor acrescentou outros €400 milhões exclusivamente para as regiões distribuírem como cupões de alimentos. Mas os responsáveis regionais já alertaram que aquele valor é manifestamente insuficiente.
“Não, não chega”, contestou logo Salvo Pogliese, o presidente da junta da Catânia. “Estávamos à espera de mais. É uma situação extremamente delicada, pois uma parte significativa da população não tem rendimento algum. Aqueles que antes viviam com dignidade agora encontram-se em dificuldades.”
Crime e “revolução nacional”
Há ainda sinais de organizações criminosas a explorar a situação. Aliás, já foram desencadeadas investigações sobre as atividades de um grupo criado no Facebook sob o nome “Revolução Nacional”, que tem vindo a incitar o saque aos supermercados.
“Por trás deste grupo estão as pessoas que, antes da quarentena, viviam de assaltos a casas e roubos de lojas”, disse ao mesmo The Guardian uma fonte da unidade de Digos, na Sicília, uma unidade da polícia antiterrorista em Itália. “Agora, viraram-se para os supermercados e as farmácias.”
Leoluca Orlando, presidente da junta de Palermo, também interveio, pedindo ao governo que estabelecesse uma “renda de sobrevivência” para os mais pobres. O objetivo é o medo crescente promovido por aqueles grupos organizados.
As autoridades temem ainda que a máfia aproveite a crescente pobreza para recrutar pessoas. “São grupos com muito dinheiro. Torna-se muito apelativo para toda esta gente ir trabalhar com eles”.
Um país frágil e desigual
Enquanto isso, os impostos para pequenas empresas foram apenas suspensos, e não abolidos – o que significa que os proprietários ainda terão de arranjar forma de pagar aquelas contribuições posteriormente. E para isso têm ainda de enfrentar uma burocracia tal que se tornou, para todos, imensamente sufocante.
“As pessoas bem tentaram manter o ânimo no início da quarentena”, remata Massimiliano Panarari, também professor da Universidade Luiss, “mas agora estar a enfrentar a realidade amarga de um país terrivelmente frágil e desigual.”