Há menos de 12 meses, meio milhar de macaenses aceitou participar numa sondagem sobre o futuro da antiga colónia portuguesa, a cargo da Universidade de Hong Kong. Quase metade dos inquiridos confessou não estar confiante sobre o futuro do território que, em 2020, nas previsões do Fundo Monetário Internacional, deverá tornar- se a cidade com o maior rendimento per capita do mundo.
Um resultado surpreendente se tivermos em conta que, atualmente, o rendimento médio de cada um dos habitantes de Região Autónoma Especial de Macau (RAEM) já ronda os 75 mil euros anuais – o quarto mais elevado do globo e só atrás do que se regista no Qatar, no Luxemburgo e no Liechtenstein. Mas não só. Têm direito a Saúde e a Educação praticamente gratuitas, a carga fiscal nunca ultrapassa os 12% dos orçamentos familiares e o governo local ainda oferece, todos os anos, um cheque a cada pessoa – em 2018 foi de 10 mil patacas, qualquer coisa como 1 120 euros. Será que o estudo de opinião conduzido pela equipa do prestigiado académico Robert Chung não é credível? Pouco provável.
Os dirigentes chineses gostam de elogiar Macau como um insofismável caso de sucesso da política de “um país, dois sistemas”
Amores e prioridades
Há mais de uma década que os macaenses se mostram cada vez menos otimistas com os destinos da região, mas convém sublinhar que, em 2009, a mesma sondagem – vulgarmente conhecida por Public Opinion Program – revelava que a confiança pública era então superior a 75 por cento. A explicação é simples. Graças aos casinos e à indústria dos jogos de azar, Macau conheceu um crescimento explosivo no início deste século, e os seus cidadãos beneficiaram igualmente desse maná, que se converteu no principal pilar económico do enclave urbano na margem esquerda do delta do rio das Pérolas, como demonstram vários estudos internacionais. Só que não era possível manter o vertiginoso ritmo de crescimento verificado após o fim da administração portuguesa e a passagem do território para a soberania chinesa, a 20 de dezembro de 1999. Mesmo assim, as estatísticas são impressionantes. Nas últimas duas décadas, o PIB foi multiplicado por nove, o investimento estrangeiro superou os 1 000 mil milhões de euros, o número de visitantes quintuplicou (mais de dois terços oriundos da China Continental), a população residente aumentou 57% e, como se não bastasse, até a superfície da exígua metrópole cresceu e passou de 23 para pouco mais de 30 quilómetros quadrados por obra e graça das terraplanagens e da área conquistada ao mar. Um desempenho que dispensa pormenores adicionais e tem merecido todo o tipo de elogios da República Popular da China, apostada agora em apresentar Macau como um exemplo a seguir pela rebelde Hong Kong, onde há quase sete meses decorrem manifestações e protestos contra as supostas interferências de Pequim.
“Considero que a estabilidade é o mais importante para o desenvolvimento de uma cidade”, afirmou esta semana à CCTV, televisão pública chinesa, Chui Sai on, o líder do governo autónomo de Macau nos últimos dez anos e que a 20 de dezembro cederá o lugar a Ho Iat-seng, personalidade que ocupou o cargo de presidente da assembleia legislativa (o parlamento macaense) desde 2009. Este último, que será o terceiro chefe do Executivo da RAEM, também em declarações à CCTV, garantiu que a passagem de testemunho político será tranquila e sublinhou que a estabilidade e a tradição de “amar a pátria e amar Macau” permanecem como “prioridades”. Palavras que estão em plena sintonia com as autoridades do antigo Império do Meio. No início do mês, Li Zhanshu, número três na hierarquia do Partido Comunista da China (PCC), destacou Macau como um insofismável caso de sucesso da política de “um país, dois sistemas”, sublinhando ainda o patriotismo dos dirigentes da RAEM e o facto de a Lei Básica do Território (a miniconstituição macaense) em nada colidir com a lei suprema da República Popular. Uma clara advertência para os ativistas pró-democracia de Hong Kong e todos os que defendem, por exemplo, o sufrágio universal e o Estado de Direito naquela que é uma maiores praças financeiras do planeta.
As necessidades de mão de obra das indústrias do jogo, do turismo e da construção fizeram crescer de forma exponencial a populaçao nas últimas décadas
Atropelos e protestos
As cerimónias do 20º aniversário da transição de soberania estão a ser preparadas com todo o cuidado, porque vão contar com a presença do Presidente da China, Xi Jinping, e as autoridades de Macau querem evitar a todo o custo qualquer efeito de contágio de Hong Kong, onde no último domingo, mais de 800 mil pessoas marcharam pelas ruas em defesa da liberdade, da democracia e dos Direitos Humanos, ao mesmo tempo que exigiam o fim da repressão policial e a demissão do Governo da região. Ninguém acredita que no dia 20 possa haver marchas e protestos dessa dimensão na antiga colónia portuguesa, mas as medidas para manter a ordem desejada por Pequim parecem óbvias. No passado sábado, 7, dois dirigentes empresariais norte-americanos foram já impedidos de entrar na RAEM, com os média de Hong Kong a avançarem que se tratou de uma retaliação pelo facto de o Congresso dos EUA e de Donald Trump terem aprovado o Human Rights and Democracy Act no final do outubro, legislação que abre portas a novas sanções de Washington a Pequim e ao Governo de Hong Kong. Antes, a 27 de outubro, Macau tinha também barrado a entrada de um ex-deputado pró-democrata da metrópole vizinha, além de não ter regateado esforços para neutralizar quaisquer manifestações de dissidência. Logo no início de outubro, dois jovens terão sido detidos por tentarem colar cartazes de apoio ao movimento insurrecional do outro lado da Baía das Pérolas, num claro desafio às muito propaladas estabilidade e segurança. É exatamente por isso que todas as manifestações têm sido proibidas nos últimos meses, com o Tribunal de Última Instância do território a ter de pronunciar e a dar razão à polícia macaense – que tem sido implacável a desmobilizar os potenciais prevaricadores. E o que sucedeu a 19 de agosto, no Largo do Senado, o centro histórico do território, traduz o atual ambiente. Nesse dia, deveria aí celebrar-se uma jornada de solidariedade com os militantes de Hong Kong, mas em vez de uma multidão apareceu meia centena de mirones e ainda menos manifestantes, os quais foram logo detidos e identificados pela polícia. Uma “clara violação da liberdade de expressão”, como tem repetido o advogado Jorge Meneses, um dos juristas mais conhecidos e respeitados da cidade. Mas as queixas de atropelos às liberdades e garantias dos cidadãos não se ficam por aqui. Que o diga a Associação Novo Macau, principal formação pró-democracia da antiga colónia portuguesa. Rocky Chan, um dos seus diretores, convocou no início deste mês uma conferência de imprensa para afirmar que os direitos dos macaenses estão a ser postos em causa e para manifestar a sua oposição à eventual instalação de um sistema de videovigilância e de reconhecimento facial no território, como pretende o futuro Executivo. Uma postura que contrasta com a aparente apatia democrática da maioria da população, que sabe que terá de viver segundo a fórmula de “um país, dois sistemas” até 2049, data em que termina o período de transição de meio século negociado pelos governos de Lisboa e de Pequim.
Trunfos da grande baía
O bem-estar económico parece ser o suficiente para não haver queixas nem protestos dignos de monta. No entanto, como afirmou à agência Lusa Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses, a crescente influência chinesa no território pode fazer com que a cultura macaense “caia no esquecimento”. As necessidades de mão de obra das indústrias do jogo, do turismo e da construção fizeram crescer de forma exponencial a população nas últimas duas décadas. E, embora não haja estatísticas rigorosas, estima-se que dois terços dos novos habitantes sejam naturais da China Continental e o terço restante de outros países asiáticos. O que alterou por completo a composição demográfica tradicional – já só restam dois mil habitantes nascidos em Portugal – e põe definitivamente em causa a identidade local que muitos reclamam: “O macaense, em princípio, é um indivíduo de Macau, que tem provavelmente ascendência portuguesa, ou pelo menos tem a sua educação à portuguesa de Macau”, como explica Senna Fernandes. Mas esta criatura, fruto da miscigenação, pode estar gravemente em vias de extinção, apesar de o território contar com cerca de 170 mil pessoas com passaporte português. Ou seja, trata-se de um número enganador em relação à antiga metrópole, porque nos dias que correm menos de 3% dos residentes em Macau falam a língua de Camões e de Venceslau de Moraes – isto para já não falar no patuá, o crioulo local que a UNESCO dá como praticamente perdido.Será este um dos motivos que contribuem para o pessimismo crescente dos macaenses? David Bonnet, analista financeiro e consultor da agência Bloomberg, garante que a árvore das patacas pode ter os dias contados e que os 39 casinos de Macau e tudo o que gira à volta deles se assemelha a “uma laranja que já foi espremida”. Mas para os seis consórcios que têm a concessão do jogo na cidade – SJM (de Stanley Ho), Galaxy, Wynn, MGM, Venetian e Melco – esse é um cenário não apenas pessimista como inverosímil. É verdade que as receitas do jogo devem este ano cair 3%, os tumultos em Hong Kong e a guerra comercial entre os EUA e a China também não ajudam, mas o negócio no delta do rio das Pérolas vai de vento em popa. A deslocação de Xi Jinping a Macau não se deve apenas ao 20º aniversário do regresso do território à China. Ele vai sobretudo promover o seu projeto da Grande Baía – a criação de uma nova e gigantesca metrópole global que integre a antiga colónia portuguesa, Hong Kong e nove cidades da província de Cantão, onde se prevê que residam mais de 70 milhões de pessoas. Escusado será dizer que este pode ser um trunfo estratégico para garantir a diversificação da economia macaense e a chegada de novos clientes às mesas de roleta e de baccarat do território. Como já esclareceu Robert Glen Goldstein, presidente do Las Vegas Sands e dono de sete dos maiores hotéis de Macau, a classe média chinesa vai continuar a fazer milagres: “Desde o início que os nossos planos de investimento são claros, temos mil milhões de pessoas aqui ao lado.”
7 perguntas a Carlos Monjardino
‘‘A China tem cumprido as suas obrigações!’’
O fundador e presidente da Fundação Oriente mantém uma forte ligação a Macau, tendo sido um dos administradores do território há mais de três décadas, quando assinou o contrato do jogo com a STDM de Stanley Ho e, entre outros projetos, lançou a primeira pedra para o aeroporto local.
É verdade que ainda vai todos os anos a Macau e continua a encomendar lá os seus fatos por medida?
Sim, tento ir todos os anos. Os fatos enviam-mos depois por correio.
Qual o balanço que faz destes 20 anos após a transição?
Ao contrário do que muita gente pensava, não houve nenhuma catástrofe e julgo que também não havia motivos para tantos portugueses se terem vindo embora. Tem havido uma grande estabilidade nestes 20 anos e ninguém pode dizer que os portugueses tenham sido maltratados. A China tem cumprido as suas obrigações e julgo que podemos ficar sossegados até 2049.
Mas há muita gente a dizer que a cultura macaense está em risco…
Esse é um comentário que já se fazia quando eu lá estava [no Governo]. Não acho nada que a identidade macaense vá desaparecer. Há muita gente a aprender português, em Macau e na China. Se calhar, até há agora mais escolas com aulas em português, com os apoios do IPOR (Instituto Português do Oriente). O ensino tem melhorado e tornou-se também mais cosmopolita. O território pode continuar a ser um polo aglutinador da lusofonia.
E não fica frustrado quando constata que só 3% dos habitantes de Macau falam português? Mais de metade da população de Hong Kong fala inglês…
Isso também já era assim há mais de 30 anos. Não podemos comparar a nossa língua com o inglês, que tem outra dimensão. É também preciso ter em conta que a emigração para Macau era feita por indivíduos adultos, sem disponibilidade para aprender português – muitos nem cantonense falavam.
Como justifica os atuais protestos em Hong Kong e o facto de não haver um efeito de contágio em Macau?
As realidades são muito distintas, a sociedade de Hong Kong sempre
foi muito mais ativa e desperta para as questões políticas.
O RAEM continua a ter uma dependência quase exclusiva do jogo…
Há décadas que se fala da necessidade de diversificação da economia. Quando lá estive, criei uma linha de crédito sem juros, exatamente para esse efeito, para tentar apoiar, por exemplo, o setor têxtil. Sabe quantas candidaturas houve?
…
Nenhuma!