“A necessidade maior está com as famílias que vivem nos bairros mais pobres, sobretudo com as que têm muitos filhos”, diz sem hesitação a Ir. Anna Fontana. Em entrevista por telefone, a religiosa, que vive na Beira há 16 anos salienta que é preciso não esquecer que “houve uma destruição intensa e que quase todas as pessoas ficaram sem casa e vivem, como aqui se diz, ‘maneira-maneira’. Para além disso, há imensa gente que foi deslocalizada e que não tem qualquer previsão de quando poderá voltar e se poderá voltar àquilo que eram as suas terras”.
Quando se assinalam oito meses da passagem do Idai pela Beira, a Ir. Anna confirma à VISÃO aquilo que já os relatórios da ONU, da UNICEF e do Disasters Emergency Committee nos disseram: “A comida vai ser um problema” sobretudo agora, que vai recomeçar a época das chuvas. Muitas organizações não-governamentais que estiveram no terreno doaram sementes e material agrícola aos sobreviventes, para que pudessem começar a recuperar as suas machambas (hortas), mas se num primeiro momento o problema foram os solos pantanosos, logo a seguir foi o período de seca intensa que não ajudou às colheitas.
Ainda assim, Ana Oliveira, a coordenadora de projetos da Médicos do Mundo Portugal que está responsável por um centro de acolhimento que alberga mais de 2000 pessoas, revela à VISÃO que apesar de o clima não ajudar, as “famílias já conseguem nesta altura comer algumas verduras” que ajudam a suprir necessidades nutricionais. Mas, alerta a Irmã Anna, “o problema é que agora vão começar as chuvas. E com elas não há nada que comer”.
Para além dos caprichos da natureza, as preocupações desta religiosa que faz investigação na Universidade Católica da Beira são também outras. “A ajuda que chegou à região foi massiva e aliviou alguma coisa daquilo que eram as necessidades básicas. Houve cerca de 250 organizações que estiveram presentes, mas a previsão é que no final do ano saiam daqui… Isso significa que as ajudas em termos de comida vão escassear ainda mais”, lamenta. “Janeiro já é o mês da fome em Moçambique, porque muitas famílias viajam no Natal e porque se cometem alguns excessos em dezembro. Imagine como vai ser em janeiro de 2020”, realça.
Num relatório libertado recentemente, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) estima que atualmente haja 67 mil crianças a sofrer de subnutrição na região, e salienta que este número “poderá aumentar drasticamente sem um apoio sustentado e iniciativas resilientes. Espera-se que a situação se deteriore nos próximos meses e que dois milhões de pessoas enfrentem níveis de crise e emergência no que diz respeito a comida”.
Numa altura em que o país ainda vive uma espécie de período pós-eleitoral, com a Renamo a ter dificuldades em aceitar a recondução de Filipe Nyusi no cargo de presidente da República, a Ir. Anna sublinha que “agora, nestas situações de emergência, é que se vê bem o que quer dizer ser parte da oposição”. É que a região da Beira é, historicamente, um bastião da Renamo, e apesar de em época de campanha ter havido bastante atenção dedicada àquelas províncias, os responsáveis de várias organizações ouvidas pela VISÃO admitem algumas dificuldades em conseguir que as coisas continuem a mexer, agora que as eleições já passaram.
Muitas estruturas por recuperar
A religiosa trabalha há vários anos com comunidades desfavorecidas, como é o caso da de Nhangau, tentando que as pessoas consigam subsistir com o que têm e fazendo o melhor uso das suas potencialidades. À VISÃO sublinha o trabalho que tem sido feito pelos responsáveis provinciais e municipais, nomeadamente na tentativa de acelerar a criação de baías de recolha de água e do reforço das barreiras da praia. Sendo a Beira uma cidade situada abaixo do nível do mar, estas são questões fundamentais para que não haja mais inundações assim que começarem as chuvas – mesmo que a pluviosidade permaneça em níveis normais. No centro da cidade ´muitos edifícios estão já a ser reabilitados, fruto sobretudo do investimento estrangeiro – nomeadamente chinês e de países de língua árabe – e finalmente começam a chegar barcos com material de construção e consequentemente os preços começam, ao fim de vários meses, a dar alguns sinais de alívio.
Também o centro histórico da Beira tem já um mega projeto em marcha, que pretende requalificar 20 mil casas, revela-nos a mesma religiosa. Mas “houve muitas estruturas que ainda não foram mexidas. Muitas escolas ainda estão sem teto, eventualmente com uma lona que foi oferecida por uma empresa particular ou que foi deixada por uma organização internacional. Mas tenho a certeza de que daqui a uns anos vamos perceber alguma repercussão negativa deste descaso que tivemos com a educação nestes meses”, avisa ainda.