Janeiro de 2017: seis corpos de migrantes mortos são descobertos em diferentes praias da costa sul de Espanha, perto da cidade portuária de Algeciras, informava o serviço de resgate marítimo espanhol. Agosto de 2017: replicam-se pela internet as imagens de uma embarcação com dezenas de migrantes a bordo a desembarcar na praia de Zahara de los Atunes, em Andaluzia, Espanha, como mostra um vídeo que, na altura, se tornou viral. Junho 2018: a Guardia Civil anuncia o resgate de outras 55 pessoas, perto de Almuñécar. Um mês depois, outra meia centena de pessoas chegava à areia da praia de La Barrosa, na mesma zona. Em novembro, era um um cadáver dava à costa, também junto a Cádiz.
Até dezembro, e enquanto os líderes europeus assobiavam para o ar perante as recusas de Itália e Malta em receber mais migrantes nos seus portos, cresceram e multiplicaram-se as chegadas a Espanha. Um aumento da permissividade das autoridades marroquinas também poderá ter ajudado. Só nos últimos dias, o Salvamento Marítimo espanhol resgatou 472 migrantes, 124 junto ao Estreito de Gibraltar e 331 um pouco mais a mais a leste.
O mais recente relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), divulgado no início da semana, confirma a alteração da rota preferêncial: das 5319 pessoas que chegaram à Europa já este ano, 4507 fizeram-no por mar a partir do norte de África. Itália deixou apenas entrar 156 pessoas. 1575 optaram pela Grécia. 3 588 preferiram Espanha. Uma alteração de costumes confirmado também pela Organização Internacional para as Migrações: em 2018, o número de refugiados que optaram pela rota ocidental do mediterrâneo quase triplicou em relação ao ano anterior.
Uma onda que não pára
Apesar de a provincia de Cádiz estar a muito menos quilómetros do norte de África do que, por exemplo, a ilha italiana de Lampedusa (ora 14,4 km contra 113km, é fazer as contas…), nem por isso a travessia ali junto ao Estreito de Gibraltar é menos perigosa do que as outras. A explicação é simples: há fortes correntes sentidas junto daquele enclave, ali onde o Mediterrâneo se encontra com o Atlântico. Bem-vindos, então, ao Mar de Alborão.
Falamos da parte mais ocidental do Mediterrâneo, limitado a norte pela costa da Andaluzia, a sul por Marrocos e a oeste pelo Estreito, que faz a ligação ao Atlântico. A zona chegou a ser conhecida como o Triângulo das Bermudas andaluz: afinal, durante o século XX registou-se ali uma série de acidentes com aeronaves e ainda o avistamento de objetos não identificados nos radares.
Alborão é também o nome da pequena ilha que se ergue ali no meio, a 55 km da costa marroquina e a 85 da pronvíncia espanhola de Almeria. Na posse de Espanha desde 1540, foi tomada a um pirata tunisino, Al Borani, que usava a ilha como refúgio, fundeando ao largo depois de assaltar os navios mercantes que por ali passavam. Hoje, alberga uma pequena guarnição da marinha espanhola e um farol – e, claro, continua a ser reclamada por Marrocos.
Agora, toda a região parece ter-se tornado o paraíso das máfias que traficam pessoas a partir do norte de África. “Não há virtualmente nenhuma possibilidade de chegar à Europa ilegalmente sem pagar uma máfia”, garante Robert Crepinko, diretor do Centro Europeu de Tráfico de Migrantes da Europol, citado pela agência AFP. “De certeza que 90% dos migrantes fizeram isso, seja qual for a rota escolhida.”
Segundo as ONG que se têm empenhado a ajudar quem é assim enfiado num barco a abarrotar, à espera de ser salvo, tudo isto revela um verdadeiro naufrágio da política europeia para o mar que tem à porta. Há também quem diga que isto se parece cada vez mais a uma guerra. Ou não é a isso que soa Matteo Salvini, o popular lider da Liga do Norte, em Itália, quando propõe bombardeamentos e bloqueio naval para que ninguém se atreva a zarpar dos portos na costa africana?
Pescadores espanhóis também salvam migrantes mar adentro
“Atiraram-se à água, desesperados, não podíamos deixá-los ali, era nossa obrigação salvá-los”. O discurso, feito de pequenas frases que quase se atropelam umas às outras, é do espanhol Pascual Durá, a bordo do pesqueiro Nuestra Madre Loreto, a lembrar os acontecimentos de novembro, em que se viu diante de um cenários dramático. Chamou o chefe, José, que também é seu pai, e que em 2006 também vivera momentos semelhantes àquele. Feita a contabilidade, desde então quase 100 migrantes tiveram a sorte de tropeçar em mar alto com esta família de Santa Pola, na província espanhola de Alicante.
Segundo conta o El País, os imigrantes que José, pai de Pascual, resgatou em 2006, incluindo uma mulher grávida e uma menina de dois anos, garantem que pelo menos dois barcos passaram à sua frente quando já estavam à deriva. “Estamos muito gratos aos espanhóis que nos salvaram, mostraram uma grande humanidade”.
A história saltou para as manchetes dos jornais sobretudo porque tiveram de esperar quase uma semana para voltarem à pesca, enquanto os países em volta negociavam a distribuição dos náufragos. Até que rumaram a casa com os migrantes a bordo, ignorando as palavras do primeiro-ministro, Pedro Sánchez, que lhes sugeriu que os levassem às praias da Líbia, de onde tinham saído. Horas depois, foram informados que os poderiam deixar em Malta.
“Se fosse hoje, faria tudo de novo”, assevera o mesmo Pascual, militante do PP e candidatos do partido por Alicante. No meio do mar, a muitas milhas de distância, não soube que a imigração protagonizou, pelas piores razões, o debate na campanha andaluza para as eleições regionais, que decorreram em dezembro e levaram a extrema-direita ao parlamento local. Nem partilha a opinião que se generalizou na região: os governos devem preocupar-se com os seus habitantes mas também com os direitos humanos”.