No mês passado, Manuel Charlín Gama aceitou dar uma entrevista televisiva, o que há muito não acontecia. “O Velho Charlín”, como é conhecido, estava preocupado – não quer ser recordado enquanto pai abusador, como a série Fariña, da Netflix, inspirada na sua vida, o retrata. À estação espanhola de TV Antena 3, Manuel Charlín pretendeu deixar claro que o pai violento, que massacra com pancada os seis filhos, como aquela série o apresenta, “é uma mentira do tamanho de uma casa”. Nunca teve “necessidade de bater” em nenhum dos filhos, disse. “Foram todos trabalhadores a 100% porque tiveram um maestro” – ele próprio, claro.
Esta entrevista há de ter sido vista com especial sarcasmo pelos operacionais da Brigada Central de Estupefacientes da polícia espanhola. Os mesmos que esta quarta-feira, 8, detiveram “O Velho Charlín” e um seu filho, Melchor, 57 anos, associando-os a um carregamento de pelo menos duas toneladas e meia de cocaína, intercetado ainda antes de ser desembarcado em Espanha. Já lá iremos.
Em Fariña, o “pai tirano” é um pormenor. O que a série verdadeiramente retrata é a barbaridade do submundo do narcotráfico na Galiza, em que Manuel Charlín se impôs, reconhecidamente, como o maior e mais antigo “barão”. Aqui, porém, o entrevistado fez-se desentendido na conversa transmitida pela Antena 3, escudando-se na pose do avôzinho, de 85 anos, de um magote de netos. Com um sorriso de velhote simpático, disse lembrar-se de lhe terem contado uma vez que um tipo, depois de “levar uma coça monumental”, foi “enfiado na arca congeladora de um camião frigorífico”. E de pouco mais se recordava.
De resto, jurou que apenas vivia agora de uma pensão mensal de dois mil euros paga pelo Estado. Reformado, pois. Como se fossem longe os tempos do Manuel Charlín acusado e condenado pelo tráfico de 600 quilos de cocaína, em junho de 1990, a 24 anos de prisão. Cumpriu 20 e saiu em liberdade condicional em 2010, ano em que a Justiça espanhola instaurou um processo de branqueamento de capitais, ainda em curso, no qual investiga membros do clã do velho “barão” da droga na Galiza pela lavagem de 15 milhões de euros a partir de contas offshore. Esta verba terá sido usada pelo clã na recuperação de parte do seu conglomerado de empresas, através de aquisição em leilões, após a Audiência Nacional espanhola, em 1995, ter apreendido a Los Charlines bens num valor superior a 30 milhões de euros.
Para a condenação de Manuel Charlín em 1990 foi crucial a confissão de um “arrependido”, Manuel Baúlo, responsável pelo transporte dos estupefacientes. À imagem de qualquer história mafiosa que se preze, o denunciante Baúlo seria assassinado, em 1994, por dois sicários colombianos – sem que até hoje se tenha provado que Manuel Charlín foi o autor moral do homicídio.
Não se sabe, por agora, se a Brigada Central de Estupefacientes da polícia espanhola está escudada em outro “arrependido” na operação que esta quarta-feira (cerca de um mês depois da surpreendente entrevista do “barão” galego à Antena 3) conduziu à detenção de Charlín e do seu filho Melchor. O que é por enquanto informação pública relata que o carregamento das duas toneladas e meia de cocaína seguia num barco com bandeira do Panamá, intercetado pela polícia a 400 milhas dos Açores. E que, em conjunto com Charlín e o filho, foram detidas outras 20 pessoas.
Também ficou claro para a Brigada Central de Estupefacientes da polícia espanhola que o tráfico de droga na Galiza voltou ao modus operandi de raiz, com origem nos anos 1970. O clã de Charlín foi o primeiro a prescindir de intermediários e a comprar a droga diretamente ao fornecedor, na América Latina, fazendo depois o transporte para Espanha em embarcações próprias. E, uma vez mais, o velho “barão” galego, que ainda agora “limpou o nome” à sua maneira na entrevista à Antena 3, tem o destino nas mãos de juízes.