Se uma adolescente for violada e engravidar, deve ter o direito de abortar? Se os exames médicos revelarem graves malformações num feto, poderá interromper-se a gravidez? E se uma mulher não sentir simplesmente condições (económicas, sociais, emocionais) para ser mãe, pode decidir não o ser? A todas estas questões, tantas vezes debatidas de forma emotiva por toda a Europa no último meio século, a lei irlandesa continua a dizer “não”. É um dos últimos países europeus a manter o crime de aborto no código penal, prevendo 14 anos de prisão para as mulheres que, em qualquer circunstância, o pratiquem.
O tema, verdadeiramente fraturante num país que tem como pilar identitário o catolicismo, já foi levado a referendo por seis vezes nos últimos 35 anos – mas nunca como agora os defensores do “Sim” tiveram verdadeiras hipóteses de vitória. Ajudará o facto de, a 25 de maio, os eleitores não terem de se pronunciar sobre questões tão concretas como as aqui enunciadas; irão responder apenas se querem revogar o artigo 40.3.3 da Constituição – conhecido como a oitava emenda – que dá aos fetos e às mães gestantes o mesmo direito à vida, tornando inviável qualquer interrupção de gravidez.
Até 2013, o aborto permanecia proibido, mesmo em último recurso para salvar a vida da mãe. A Irlanda era a única democracia ocidental a manter esta posição e, em 2013, foi acrescentada à lei essa única exceção. Foi uma alteração imposta por uma sociedade em estado de choque, revoltada com o caso de uma jovem indiana que estudava medicina dentária no país. Entrara no hospital grávida de 17 semanas, com sinais de um aborto espontâneo. Não havia forma de manter a gravidez, disseram-lhe. Mas também não podiam fazer qualquer intervenção médica para lhe salvar a vida porque o feto ainda revelava batimento cardíaco. A jovem acabou por morrer uma semana depois, com uma infeção generalizada.
Mais de 20 mil pessoas juntaram-se nessa noite à porta do hospital de Galway, com velas na mão. As manifestações estenderam-se a toda a República, com mulheres empunhando cartazes que não defendiam o “Sim” ou o “Não” – pediam apenas “Nunca mais”.
O fim das viagens a Inglaterra?
A oitava emenda foi inscrita na Constituição em 1983, após aprovação em referendo (67% dos votos). Desde então, multiplicou-se o número de mulheres a procurar Inglaterra para abortar: os dados oficiais britânicos referenciam 170 mil irlandesas como utentes.
Ao contrário das britânicas, que têm a interrupção voluntária da gravidez gratuita no serviço nacional de saúde, as irlandesas têm de pagar entre 700 e 2000 euros, consoante o tempo de gestação. Por isso, esta é também uma questão de classes – as mais pobres ficam reféns das parteiras clandestinas na Irlanda, ou compram pílulas abortivas através da internet, com todos os riscos de saúde associados. Em caso de complicações, acabam entre a vida e a morte nos mesmos locais sem condições médicas, porque uma ida às urgências pode implicar uma denúncia que as atira para a prisão.
Este tema subsiste como o último tabu da sociedade irlandesa, que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2015 e, em junho do ano passado, elegeu Leo Varadkar, de 39 anos e homossexual assumido, como primeiro-ministro do país. É ele quem promete liderar a discussão parlamentar sobre a interrupção voluntária da gravidez, caso o “Sim” vença o referendo. O governo irá propor que as irlandesas possam fazê-lo até às 12 semanas de gestação.
Kitty Holland, jornalista do Irish Times, não se atreve a dar como certa a vitória do “Sim” no referendo, apesar de notar uma “grande mudança” na forma como o assunto está a ser debatido publicamente. Na hora de votar poderá haver surpresas, escreveu esta semana no The Guardian. “Aqueles que se dizem contra a revogação da oitava emenda expressam preocupações sobre o fim de uma Irlanda que sempre valorizou a família e os filhos, uma Irlanda construída em torno da comunidade, da proteção dos mais vulneráveis e profundamente respeitadora da sua fé. O aborto, dizendo respeito aos direitos individuais, visto até como uma questão egoísta das mulheres, aparentemente colide com essa ideia de Irlanda. E muitos cidadãos permanecem divididos por isso mesmo.”