No momento da separação, Londres e Bruxelas juraram ser amigos, quando cada um for para seu lado, e prometeram pôr os cidadãos em primeiro lugar. “Queremos continuar a ser parceiros e aliados comprometidos com os nossos amigos em todo o continente”, escreveu a primeira-ministra britânica na carta com que acionou o artigo 50º do Tratado, na passada quarta-feira. “Uma relação forte e construtiva é do interesse de ambas a partes”, lê-se no documento europeu conhecido hoje. Os pontos comuns nas duas cartas de intenções esgotam-se aí.
O panorama sobre os 24 meses de negociações para a saída britânica, que agora começam, não podia ser mais diferente. Theresa May está fixada em iniciar um diálogo para um “ambicioso acordo de comércio livre” entre os dois blocos, ciente de que o Reino Unido “não vai procurar ser membro do mercado único”. A União Europeia (UE) nem quer ouvir falar do pós-Brexit. Primeiro há que avaliar e dividir os ativos e compromissos financeiros e só depois de “um progresso suficiente”, nesta fase, é que Bruxelas aceita iniciar uma segunda vaga a concluir quando “o Reino Unido se tornar um país terceiro”.
A separação de bens é um dos tópicos ausentes da carta de May, numa aparente indiferença ao recado deixado, no Financial Times, pelo presidente da Comissão Europeia: a fatura do Brexit deve rondar os 60 mil milhões de euros. O valor é seis vezes o que Londres envia, em média, todos os anos para o orçamento comunitário e superior ao orçamento da defesa britânica.
Os zeros da fatura são o principal obstáculo a uma saída ordeira e suave do Reino Unido, conclui um estudo do Centre for European Reform (CER). No calor da campanha, os eurocéticos argumentaram que o divórcio com a Europa permitiria libertar 350 milhões de libras semanais para o sistema de saúde britânico. A própria primeira-ministra britânica avisou que o período das grandes contribuições para a UE acabou, apesar de deixar a porta aberta a participar em alguns projetos europeus, por exemplo, na área da inovação.
“Os 60 mil milhões de euros cobrem as obrigações potenciais britânicas em três áreas: compromissos orçamentais vinculativos, o sistema de pensões dos funcionários europeus e os passivos contingentes”, que inclui o resgate português, estima o autor do estudo Alex Barber. Os cálculos do CER, com base em três cenários, oscilam entre um mínimo de 24,5 mil milhões e um máximo de 72,8 mil milhões de euros. Tudo depende dos compromissos financeiros e dos passivos.
Desde o Berlaymont – a sede da Comissão em Bruxelas avaliada em 344 milhões de euros – até aos edifícios europeus, perto de Westminster, os ativos europeus tinham um valor de 22,5 mil milhões de euros no final de 2015. Entre 12 e 15% pertence ao Reino Unido. No capítulo dos passivos à divisão é menos linear.
Até ao final de 2018 – o último ano do Reino Unido na UE –, os compromissos financeiros da UE apontam para um total de 477,2 mil milhões, pelos quais Londres é responsável por 12-15% de acordo com Bruxelas. É neste dossier que se irão focar as negociações. O Reino Unido será chamado a pagar o sistema de pensão dos eurocratas, avaliado em 63,8 mil milhões? E vai aceitar que o total dos compromissos assumidos, no valor de 241 mil milhões, como calcula o CER? E quanto a 2019-2020, uma vez que o quadro financeito termina em 2020, qual a parcela que caberá a Londres?
O léxico europeu destaca nesta fase o “reste à liquider” (RAL) – compromissos que ainda não foram traduzidos em pagamentos, como no caso de um contrato assinado para construir uma casa, em que a empresa de construção só será paga de acordo com o progresso das obras. No documento europeu, conhecido hoje, também se “incluem os passivos contingentes”, o que empurra o cheque britânico para o valor mais alto. Por exemplo, as garantias dadas pelos estados-membros para os resgates totalizam os 24,3 mil milhões no caso português ou os 22,5 mil milhões no irlandês. Estas garantias só serão acionados no cenário de uma bancarrota dos estados, improvável no caso irlandês mas que não está fora do radar na economia ucraniana, à qual os estados emprestaram 1,2 mil milhões.
Um exército de técnicos e advogados sobem ao palco nos próximos meses para construir um acordo à medida dos políticos – e sem este, o divórcio pode ir parar ao tribunal de Haia. Desde o referendo de junho passado, em que venceu o ‘não’ à UE, os eurocratas recolhem argumentos em casos como a dissolução da Sociedade das Nações ou nas diretrizes que Londres tinha invocado no caso de uma secessão escocesa em 2014.
O ajuste de contas vai ser uma missão difícil. A União Europeia mostra, por enquanto, uma frente unida, com a certeza de que se o Reino Unido sair em triunfo, outros países podem sentir-se tentados a abandonar o clube. Aliás, a própria saída britânica deixa um ‘buraco’ nas finanças da UE. Muitos contribuintes líquidos – países que enviam mais para a UE do que o que recebem – já sinalizaram que este ‘gap’ não é para preencher por quem fica. Ou seja, o orçamento comunitário deve ser cortado na ordem dos dez mil milhões de euros anuais, o que significa menos política de coesão, menos dinheiro para iniciativas europeias.
Com base num estudo do Instituto Jacques Delors, a Alemanha teria de pagar mais 3,5 mil milhões de euros e a Holanda mais 760 milhões para preencher a falta britânica. E Portugal, ao mesmo tempo que se sujeita a um envelope de fundos europeus menos generoso, arrisca também a pagar mais 7% em contribuições. O Reino Unido sai, mas deixa uma bomba financeira no interior da UE.