O seu negócio podia ter sido sempre contar histórias. Histórias mais ou menos rocambolescas, com uma voltinha no final e sem palha – apesar de cheias de pormenores para dar cor à narrativa. “Eu conto-lhe em quinze segundos”, começou José Correia Guedes uma e outra vez naquela tarde, na sua casa, no Estoril, com os minutos a passarem e nós a não darmos por isso. Porque foi piloto de aviões durante 36 anos, mas na verdade nasceu contador de histórias ou, melhor ainda, escrevinhador de memórias.
Há cinco anos, após outros tantos de reforma, não resistiu a pegar numa história verdadeira, a do hidroavião que se despenhou no Tejo, em 1943, e – “cúmulo do atrevimento” – fazer dela um romance (Na Rota do Yankee Clipper, Chiado Editora, €14). Mas, há dois meses, fez melhor: juntou sem esforço duas dezenas de histórias mais ou menos divertidas da sua vida passada dentro dos aviões da TAP e começou a publicá-las no Facebook.
Ali é O Aviador, a piscadela de olho ao filme sobre Howard Hughes a dar o mote para contarmos como foi nos States que aprendeu a voar. E como os dois anos na Califórnia podiam não ter passado de vinte horas de voo – um dia, o motor do Cherokee de serviço parou pouco depois da descolagem e ainda hoje ele não sabe como conseguiu aterrar.
Para trás ficava o curso de Engenharia Mecânica meio feito e os dois anos de guerra em Angola. Mais para trás ainda ficaria a banda Os Condes, onde tocava desde os 15 anos. Depois da reforma, voltou com tempo aos motores e à música: fundou um clube de automóveis antigos e toca piano com uns amigos que também gostam de jazz. Mas é o Facebook, sobretudo a interação com os leitores dos seus posts, que mais o tem ocupado e deliciado ultimamente.
‘O português fugiu!’
O episódio aconteceu com brasileiros, “só podia”, e teve como cenário o mundo pós-11 de Setembro. Depois do atentado às Torres Gémeas, andar de avião passou a ser um outro filme, com a segurança reforçada antes e durante os voos. Só o facto de alguém se enfiar num avião era sinal de coragem.
Por isso, quando, ainda em setembro de 2001, dois holandeses se envolveram numa cena de pancadaria, num voo de Lisboa para S. Paulo, foram muitos os viajantes a ficarem assustados. Os protagonistas eram grandes e fortes, e podiam fazer parte de alguma coisa maior. O comandante pôs dois comissários à porta do cockpit. E, quando os homens foram finalmente dominados, acabando de pés e mãos amarrados com cintos de calças, havia sangue por todo o lado. “Parecia um filme de guerra”, lembra José Correia Guedes.
O pior foi aquilo que ouviu à chegada a Fortaleza, onde pedira para aterrar: os holandeses seguiriam viagem, a não ser que fizesse queixa deles. Nesse caso, a polícia precisava de dois dias para ouvir os 300 passageiros.
José Correia Guedes bateu o pé – não correria mais riscos, mas também não tinha vontade de estragar a vida a toda a gente. Então, o polícia saiu-se com uma solução brilhante e com rima no final: “Daqui a uns minutos, volto para o gabinete onde decorre o interrogatório. Entretanto, o senhor fecha as portas do avião, arranca os motores e vai para a pista. Quando decolar, aponto para a janela e grito: ‘Puta que pariu, o português fugiu!’.”
Quase tão boa só a resposta que o português recebeu de um outro brasileiro, algures nos céus africanos. De terra tinham-lhe pedido ajuda – a ver se conseguia contactar um avião que teimava em não ligar aos apelos via rádio. Quando chegou à fala com o colega e lhe perguntou pela sua posição, o “cara” respondeu em tom Duh!: “A minha posição? Decolei, não pousei. Tô voando, né?”
Ele e o ‘piratinha’
Dessa vez, José Correia Guedes esteve meia hora a rir, mas houve várias ocasiões no ar em que o seu coração bateu a duzentos – e é o primeiro a admiti-lo. “Se me disserem que o comandante não tem medo de nada, saio do avião logo a seguir porque significa que é louco, vai-se matar.”
Uma das ocasiões em que teve medo veio a ser notícia nos jornais e telejornais da época e pede mais uns parágrafos. Aconteceu em maio de 1980, num voo entre Lisboa e Faro.
Tinham passado poucos minutos de viagem quando viu a porta do cockpit abrir-se e ouviu um jovem gritar “Vamos para Madrid!”, enquanto apontava uma arma à cabeça do Operador de Sistemas. Naquela altura, havia aviões desviados todas as semanas; era a vez de um Boeing da TAP ser alvo de um pirata do ar.
Na verdade de um “piratinha”, chama-lhe ainda hoje o comandante, porque R. tinha apenas 16 anos. Era um miúdo, sim, mas um miúdo que empunhava uma pistola e exigia receber, à chegada a Barajas, vinte milhões de dólares e um salvo conduto para a Suíça. José Correia Guedes começou logo a tratá-lo por “tu”, para criar uma relação “amistosa”, estratégia que resultou.
Dali para a frente, seria ele o interlocutor do pirata do ar que, apesar de muito novo, não queria desviar-se um milímetro do seu plano e tinha feito o trabalho de casa. Não ia ser fácil enganá-lo. A única hipótese era oferecer-lhe uma saída airosa, pensou o nosso homem. Dizer-lhe que meteria uma cunha ao pai, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, para que o caso fosse tratado com benevolência. “Tens a vida pela frente…”
José Correia Guedes faria bem mais do que isso, no final. Mentiria descaradamente sobre a arma, dizendo que estava sem munições, e haveria de ir à Penitenciária de Lisboa, onde R. esteve preso preventivamente. No julgamento, ficou claro que se passara para o lado da defesa – tivesse ou não sido vítima da Síndrome de Estocolmo, acreditou sempre que tudo não passara de uma aventura disparatada.
‘Para o céu só com Nossa Senhora’
O medo de voar é a sensação de impotência, palavra de comandante. “Uma pessoa está entregue a um caramelo que nunca viu”, diz, “mas se a colocarmos no cockpit e ela vir a calma dos pilotos…”
Foi exatamente isso que fez quando uma noite, imediatamente antes de descolarem no Rio de Janeiro, o chefe de cabina veio comunicar-lhe que havia uma adolescente portuguesa agarrada a uma das portas, com um ataque de pânico. Voltar atrás provocaria horas de atraso, estava fora de questão.
Marta tinha 13 ou 14 anos, José Correia Guedes sentou-a atrás de si, deu-lhe a mão e foi-lhe explicando o que iam vendo. As luzes da pista que “pareciam da árvore de Natal” e até a tempestade lá ao fundo, que haviam de passar ao largo. Quando chegou a hora de jantar, a miúda regressou à sua cadeira. E várias horas depois, à descida para Lisboa, pediria para ir de novo ao cockpit.
José Correia Guedes aproveita esta história para lembrar que estar num avião é hoje uma coisa benigna. “Há muito menos acidentes porque o fator humano estava envolvido em 90% deles. Com a chegada dos computadores, tudo mudou.”
Claro que a tecnologia também retirou grande parte do prazer de voar. “Agora parece uma Playstation, não tenho a mínima nostalgia.” Mas isso são outros quinhentos e ele anda interessado em ajudar as pessoas a perderem o medo, confirma-se pelos comentários no Facebook. Já sugeriu que lhe enviassem mensagens durante a viagem (há wifi em muitos voos), para “consultas” privadas.
O seu trunfo é explicar a razão por que as coisas acontecem de determinada maneira. “Episódios como os da Dona Aurora são escusados”, diz, e lá vem a história que começa com o trem de aterragem do avião a não subir e a terem de voltar ao aeroporto de Pedras Rubras para reparar a avaria.
Sempre que um avião aterra com um problema é acionado todo um aparato de emergência, provocando naturalmente o pânico a bordo. Quatro horas depois, quando os passageiros voltaram a embarcar, chegou a informação de que uma senhora optara por ficar em terra e deixara um bilhetinho para o comandante: “Muito obrigada por nos ter salvado a vida, mas para o céu só volto com a Nossa Senhora. Vou de autocarro para o Luxemburgo.”
Champs pelos ares
Também lhe aconteceu muitas vezes estar lá em cima de sorriso na cara. Uma delas foi quando o FC Porto fretou um avião da TAP, por ocasião da final da Liga dos Campeões em 2004. Sabia-se que José Correia Guedes nascera no Porto, era sócio do clube e um charme de pessoa – quem melhor do que ele para fazer as honras da casa?
Se a viagem para a Alemanha, com jogadores, equipa técnica, jornalistas, adeptos e convidados, decorreu em clima festivo, o regresso ao Porto do Airbus A340, já com a taça, seria épico. Começou com o comandante a pedir para o call sign ser alterado: em vez de TP9224, queria voar como CHAMPS, de champions. A partir daí, foi a euforia. “Cantava-se, bebia-se champanhe como se fosse água, faziam-se discursos, tiravam-se fotografias com a taça, trocavam-se abraços.” Só os tripulantes do avião e José Mourinho, com a mulher e dois filhos pequenos, mantinham “um prudente recato”.
Muita graça teve também o voo para Ponta Delgada em que o costureiro Augustus fez de um Boeing 727/100 uma passerelle para apresentar uma nova coleção. As modelos eram lindíssimas e davam os últimos retoques na parte traseira do cockpit, distraindo o nosso homem. A meio da viagem, José Correia Guedes ouviria do futuro estilista Zé Carlos, então ainda cabeleireiro: “Pelo amor de Deus, já viram as meninas três ou quatro vezes. Agora, virem-se para a frente e concentrem-se na pilotagem.” Teve de ser.
(Artigo publicado na VISÃO 1252, de 2 de Março de 2017)