Quantos pedidos de desculpa são necessários para se ser levado a sério? Segundo Graham G. Dodds, professor na Universidade da Concórdia, em Montreal, no Canadá, o Japão já se desculpou umas 47 vezes pela Segunda Guerra Mundial. Publicamente e através dos seus mais altos dignitários. Mas isso continua a não ser suficiente para milhões de chineses, coreanos, indonésios, filipinos e outros povos que estiveram sob o jugo do Império do Sol Nascente na primeira metade do século XX.
O Papa João Paulo II, ao longo dos seus 26 anos de pontificado, também reconheceu mais de uma centena de vezes os pecados da Igreja Católica. Nada que satisfaça os seus detratores que o acusarão ad eternum de ser um conservador empedernido. Tony Blair, primeiro-ministro do Reino Unido entre 1997 e 2007, penitenciou-se dezenas de vezes pelos erros do Governo britânico ao longo da história mas poucos acreditam que o tenha feito de forma genuína.
Em contrapartida, quase ninguém duvida das intenções de Frederik de Klerk e de Nelson Mandela quando estes assumiram as suas responsabilidades pelo passado, com o propósito de reconciliarem os seus compatriotas. A 29 de agosto de 1993, Klerk, o então Presidente da África do Sul, pediu perdão pelo apartheid, o regime de segregação racial que vigorou mais de quatro décadas no país. Dois dias depois, Mandela, o líder histórico que passou 27 anos encarcerado por defender os direitos da maioria negra, apresentou também desculpas pelos crimes do Congresso Nacional Africano (ANC), o movimento por si dirigido. Um e outro acabariam por receber no final desse ano o prémio Nobel da Paz.
Crimes e teses contraditórias
Devem os estados soberanos e respetivos governantes pedir desculpas públicas e formais por atos cometidos no passado? A questão é polémica e tem alimentado um intenso debate. Nos Estados Unidos, por exemplo, são várias as universidades onde o assunto faz parte integrante dos departamentos de ciência política e Jennifer Lind, professora no Dartmouth College (uma das mais antigas e prestigiadas universidades americanas, no New Hamphshire) até lhe dedicou um livro – Sorry States. Escusado será dizer que ela tem sido uma das personalidades mais ouvidas nos últimos dias devido à viagem que Barack Obama está a fazer à Ásia. Será a 10ª deslocação do Presidente dos EUA a este continente, mas desta vez há um pormenor que faz toda a diferença: o itinerário inclui Hiroxima, a cidade onde, a 6 de agosto de 1945, foi lançada a primeira bomba atómica.
Deveria Obama, o 44º Presidente, pedir desculpa pela decisão tomada há 71 anos pelo 33º presidente, Henry Truman, de incinerar Hiroshima e Nagasaki, provocando mais de 200 mil mortos? Deveria Obama admitir que se tratou de um crime de guerra? Para a maioria das pessoas, a opção de Truman foi absolutamente legítima e permitiu aos EUA garantir a derrota do Japão, evitando que o conflito durasse mais tempo e não fosse necessária a invasão do arquipélago nipónico – agendada para o início de setembro de 1945. Ou seja, tratou-se de uma escolha que, apesar de tudo, ainda poupou dezenas de milhar de vidas e é defendida até aos dias de hoje por 56 por cento dos americanos. No entanto, esta tese está longe de ser consensual. Um dos primeiros a contestá-la foi o historiador Gar Alperovitz, logo em 1965, invocando o facto do Governo de Tóquio querer render-se por saber que não tinha condições para travar a máquina bélica de Washington. E Dwight Eisenhower, comandante supremo das tropas aliadas e que viria a suceder a Truman na presidência, acabou por reconhecer que o lançamento dos dois engenhos atómicos foi “desnecessário” e que “o Japão já estava derrotado”. Idêntica opinião tinham os almirantes Chester Nimitz, responsável pela esquadra do Pacífico, e William Leahy, chefe de gabinete de Harry Truman.
Escravas sexuais e indemnizações
Quanto ao discurso que Obama vai proferir em Hiroxima temos para já uma certeza: não inclui qualquer pedido de desculpas. O seu objetivo é destacar a importância da não proliferação nuclear, a estratégica aliança nipo-americana e o papel dos EUA na Ásia, face à crescente influência chinesa. Ele sabe muito bem que as desculpas podem ser um instrumento diplomático para reaproximar pessoas e regimes mas neste caso seria contraproducente: os mais de 20 mil veteranos ainda vivos que combateram no Pacífico jamais lhe perdoariam. Nem eles nem boa parte do eleitorado que em novembro será chamado a escolher o seu sucessor na Casa Branca. A sua prioridade é não dividir ainda mais os americanos.
No final de 2009, no seu primeiro ano de mandato, deslocou-se a Tóquio e foi desancado pelos seus opositores pela forma como se curvou perante o imperador Akihito: “traição”, “desonra” e “vergonha” foram apenas alguns dos mimos que recebeu. Desta vez, é pouco provável que se deixa apanhar num incidente semelhante, mesmo que deixe frustrados aqueles que o gostariam de ouvir a reconhecer os excessos dos EUA sobre o Japão – seja pelas bombas atómicas, seja pela campanha de bombardeamentos aéreos que durou de março a agosto de 1945 e arrasou 68 cidades (só em Tóquio, a 9 e 10 de março, foram cerca de 100 mil mortos).
Afinal, Obama tem já um lugar garantido na história por ser o primeiro Presidente dos EUA, em funções, a deslocar-se ao Parque da Paz Celestial e a encontrar-se aí com os “hibakusha” (sobreviventes, em japonês, “os afetados pela explosão”). Nixon esteve no local em 1964, antes de chegar à presidência, e Carter também o visitou em 1984, após deixar a Casa Branca. E não é de excluir que Obama faça um convite inédito ao imperador e ao primeiro-ministro do Japão: que estejam juntos nas cerimónias de 7 de dezembro em Honolulu, no Havai, sua terra natal, quando se cumpre o 75º aniversário do ataque japonês a Pearl Harbour.
No domínio da psicologia diz-se que um pedido de desculpas pode eliminar sentimentos de ira e vingança e mudar por completo a imagem que temos de quem prevarica. No que à política e ao poder diz respeito não é tão simples. Por muito que o Japão se esforce em expiar as suas atrocidades no último século, as vítimas e respetivos descendentes jamais serão capazes de aceitar de bom grado qualquer mea culpa. A colonização da península coreana (1910-1945), o massacre de Nanking (em dezembro de 1937) ou as mais de 200 mil asiáticas escravizadas pelo exército imperial e descritas como “mulheres de conforto” são traumas ainda muito presentes. O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, sabe-o melhor que ninguém. Nacionalista assumido, continua a ser visto com suspeição pela generalidade dos seus congéneres asiáticos e há menos de um ano afirmou: “Não devemos deixar que os nossos filhos, netos e as gerações futuras, que nada têm a ver com a guerra, estejam predestinados a pedir desculpa”. Uma declaração polémica se tivermos em conta que ele defende que os livros de história devem omitir os crimes do seu país e já desculpabilizou, em mais do que uma ocasião, o comportamento dos soldados japoneses quanto às “mulheres de conforto”. Por outro lado, convém explicar que Abe é neto de Nobuseke Kishi, um boémio mulherengo que foi ministro durante o conflito mundial e depois julgado por crimes de guerra, acabando por tornar-se chefe do Governo de Tóquio entre 1957 e 1960 – período em que lamentou a política expansionista do Japão.
O Pai Nosso de Francisco
Em dezembro, após décadas de negociações, o Executivo de Shinzo Abe tomou a decisão de indemnizar a Coreia do Sul em 8,3 milhões de dólares que vão financiar uma fundação que vai dar apoio às antigas escravas sexuais. No entanto, poucos acreditam que ele alguma vez seja capaz de mostrar um arrependimento genuíno como o revelado por Willy Brandt em 1970. A 14 de dezembro desse ano, o então chanceler da Alemanha visitou a capital polaca e, junto ao memorial do ghetto de Varsóvia, para surpresa de todos e sem que o protocolo o previsse, ajoelhou-se em memória das vítimas do holocausto e do regime nazi. Um momento simbólico em que Brandt demonstrou que o perdão, como escreveu a filósofa hebraica, pode servir de antídoto a erros do passado que nunca serão devidamente reparados. O mesmo ocorreu com o Papa Francisco quando, o ano passado, na Bolívia, pediu “humildemente perdão pelos crimes cometidos contra os povos nativos durante a chamada conquista da América”. Em que sublinhou ainda o facto de João Paulo II ter denunciado, em 1992, a “dor e o sofrimento” provocados pela Igreja Católica no continente mas que ele o fazia também “com arrependimento”. Desde a sua eleição no conclave de março de 2013 que o Papa do “novo mundo”, como ele se apresentou aos fiéis, se tem multiplicado em desculpas pelos erros do Vaticano. Seja pela escravatura, seja pelos escândalos de pedofilia que envolvem sacerdotes católicos, o jesuíta argentino não se cansa de dizer que “todos somos pecadores” mas que o perdão é essencial como todos os devotos devem saber pela oração do Pai Nosso.