Há já sete dias que uma milícia radical de direita libertária ocupa os edifícios federais do refúgio do parque natural de Malheur, numa área rural e isolada do estado do Oregon. Não serão mais de duas dezenas. Estão armados, vestem-se à cowboy ou com camuflados militares e fazem parte de um movimento «patriótico» que tende a acreditar em teorias da conspiração – a ONU querer promover o comunismo ou Obama ser na realidade um queniano muçulmano socialista. São liderados por Ammon e Ryan Bundy, um construtor civil e um gestor de frota automóvel, filhos do agora famoso «herói» da causa da «supremacia condal» Cliven Bundy. Trata-se de um criador de gado que, há quase dois anos, reuniu cerca de 150 «cidadãos livres» e enfrentou, com táticas militares e snipers incluídos, as forças federais que retinham novecentos animais seus, para o obrigarem a pagar as taxas de utilização da terra pública, pelas quais, ao longo de décadas (desde 1992), acumulou uma dívida de 1,1 milhões de dólares. Não pagou, resgatou os as vacas e os bois e assistiu a uma retirada «vergonhosa» dos agentes da BLM – a administração federal dos terrenos públicos – continuando, até hoje, a fazer a sua vida normal, largando ocasionais tiradas desafiadoras às autoridades.
Agora, os filhos de Bundy dizem protestar contra a prisão de dois rancheiros locais, Dwight Hammond Jr. e o seu filho, Steven, que foram detidos por fogo posto em terras federais (alegam que foi tão só uma queimada que alastrou). E que viram a sua pena agravada por um tribunal federal, recomeçando a cumprir pena na passada segunda-feira (de nada importa que os Hammond digam não se sentirem representados pelo movimento). Os Bundy afirmam-se pacíficos, mas ameaçam ripostar a tiro se as autoridades tentarem recuperar o complexo – que ocuparam no sábado passado, munidos de água, mantimentos e combustível, quando os edifícios estavam vazios. Mas na realidade, pretendem nada menos do que provocar uma revolução. Para resistir à «tirania», disse Ryan Bundy a um repórter norte-americano, estão dispostos a «matar ou ser mortos». Estão acompanhados de vários ex-militares, alguns declarados islamofóbicos, já investigados pelo crime de disseminação de ódio racista.
A lei no faroeste
Esta é uma guerra antiga do Oeste dos EUA. Homens brancos zangados, individualistas, forjados nos territórios inóspitos do que já foi a fronteira da civilização americana, montados nos seus cavalos, defensores do uso livre de armas e com uma história de gerações de luta contra o poder «intromissivo» e «escravizante» de Washington. Um conflito tão antigo que precede a própria guerra civil dos EUA (1861-65), que eles vêm como um conflito entre o poder local e o estatal e não como uma luta pela libertação dos negros. A rebelião do whiskey, na Pensilvânia, quando os locais pegaram em armas para protestar contra uma taxa federal imposta à bebida, que era então usada como moeda de troca, datada de 1791.
Ao longo dos últimos três séculos o movimento teve diversos nomes mas foi na década de 1970 que começou a ressurgir em força, sob a designação latina de Posse Comitatus («poder da comunidade» ou do «condado») formado por um conhecido racista e anti-semita, Willian Potter Gale. Foi também nesta década que finalmente o estado federal norte-americano acabou com a doação de terras do oeste aos rancheiros que estivessem dispostos a trabalhar nela durante um período de tempo (normalmente 5 anos). Este lei, que efetivamente passou para controlo de Washington a maioria das terrenos dos 13 estados do Oeste – conhecidos como os «Estados da Terra Pública» – está na origem da Rebelião da Artemísia (o arbusto mais comum na zona), um movimento que pretendia obter a reversão da propriedade dos terrenos, que curiosamente teve em Ronald Reagan, então recém-saído do cargo de governador da Califórnia, um fervoroso apoiante.«Count me in as rebel», disse. Ainda hoje uma das frases preferidas destes supremacistas parafraseia Reagan: «O Estado não é o problema. O Estado é o inimigo».
Reagan já faleceu e de qualquer forma abandonou as suas convicções localistas anteriores quando chegou à Casa Branca. O que explica, agora, o protagonismo deste movimento e da própria família Bundy? A família diz-se descendente direta dos primeiros peregrinos e ainda hoje são mormons, embora de uma corrente pouco conhecida desta fé. São um clã numeroso – Cliven Bundy teve 14 filhos e todos eles perfilham a ideologia paterna. A sua guerra com o estado federal já vem de longe, pelo menos desde 1950 – quando o pai de Cliven Bundy já se envolvia em confrontos parecidos com as autoridades. Têm estado envolvidos em vários protestos semelhantes, ora contra leis de proteção do ambiente ora contra a gestão pública das águas, sempre em declarada desobediência civil. Pai e filhos trazem sempre consigo uma cópia da constituição norte-americana, que interpretam de forma enviesada e parcial. Mas o seu motto preferido vem da declaração de independência: todos os homens tem pelo menos três direitos inalienáveis: «a vida, a liberdade e prossecução da felicidade». Mesmo que – sobretudo se – contra o Estado.
O apoio de Trump, Cruz e Rubio
A eleição de Obama catapultou o movimento em que se filiam outra vez para a ribalta: um presidente negro, de nome que soa a islâmico e ainda por cima «socialista» deve ter-lhes parecido um fardo demasiado humilhante para suportar: de 2009 a 2014 os grupos de direita radical, como contabilizados pelo Southern Poverty Law Center (SPLC) passaram de pouco mais de 100 para mais de 1000. Estes libertários vêem em Bundy um verdadeiro herói e referem-se aos acontecimentos de abril de 2014 como «batalha de Bunkerville», que evocam como o momento em que «um novo espírito de resistência se espalhou pelo Oeste», em que o «poder do povo» bateu um «estado tirânico» de instituições – a EPA (ambiente) e a BLM – «infiltradas por comunistas». De facto, os acontecimentos de Bunkerville (nome do lote onde o gado de Bundy pastava) parecem ter insuflado os egos e as vontades: ainda segundo a ONG antirracista SPLC o número de milícias populares ativas aumentou quase 40% entre 2014 e 2015 – de 202 para 276.
E os Bundy tiveram apoios políticos. No duelo entre o soberanismo local e o federalismo, o partido republicano sempre tendeu a apoiar o primeiro. A transferência de terras para os 13 estados do Oeste ainda hoje figura no seu programa. Na mesma linha, grupos conservadores como o American Legislative Exchange Council, financiado pelos irmãos Koch, dois dos magnatas mais anti-regulamentações dos EUA, apoiantes do Tea Party, fazem pressão para essa transferência e a razão é simples: se as terras estiverem sob controlo local, os regulamentos ambientais são mais lassos e torna-se mais fácil «abrir» as áreas à exploração privada de minerais, madeiras, petróleo. Mas não só.
Donald Trump, por exemplo, afirmou sobre Cliven Bundy: «Gosto dele, gosto do seu espírito, da sua coragem e determinação». Ben Carson, também candidato à presidência pelo partido do Elefante, elogiou os Bundy como «honrados cidadãos americanos». Ted Cruz e Marco Rubio, também na corrida à Casa Branca pelos republicanos, expressaram igualmente, de forma mais ou menos direta, a sua simpatia pela «causa». Sean Hannity, um dos mais aguerridos pivots da Fox News, também era conhecido pela sua «compreensão» face às queixas dos Bundy e a estação cobriu com frequência as acções da família de forma acrítica, pelo menos.
Racismo e passividade
Até que Cliven Bundy meteu uma argolada, dizendo ao New York Times que os negros estavam melhor nos tempos da apanha de algodão do que agora: «Eles abortam as suas crianças e põem
os seus homens na cadeia. Perguntei-me muitas vezes se eles estavam melhor a apanhar algodão, tendo uma família e trabalhando do que agora, que vivem de subsídios. Eles não têm mais liberdade. Têm menos liberdade». Face a estas declarações, o apoio republicano esvaziou-se. O problema é que, uma vez saído da garrafa, é muito dificil ao génio tornar a entrar. Pouco tempo depois, em junho de 2014, Jerard e Ammanda Miller, um casal que tinha feito parte da milícia da «batalha de Bunkerville» matava a tiro dois agentes de polícia numa pizzaria de Las Vegas. Ao pé dos cadáveres deixavam uma bandeira Gadsden, associada ao Tea Party, uma insígnia nazi e a mensagem: «A revolução começou». Outra razão para o recrudescimento destes grupos extremistas é o desvio de verbas do contraterrorismo interno para o terrorismo internacional desde o 11 de Setembro, que fez com que se acabasse com o Comité Executivo para o Terrorismo Doméstico, criado após os atentados de Oklaoma, em 1995. E diminuiu fortemente o número de agentes dedicados a este tipo de ameaça. Também a sombra de Waco, o famoso cerco à seita de David Koresh, em 1993, que acabou com mais de 70 mortos e inúmeras comissões de inquérito à atuação «musculada» das autoridades, ainda paira sobre o FBI. Basta dizer que foi buscar à reforma um dos negociadores que se opuseram à intervenção armada contra os davidianos para tentar lidar com a ocupação do parque natural. A estratégia passa por cortar a electricidade aos edifícios e esperar que as temperaturas abaixo de zero que se fazem sentir à noite forcem o grupo a desistir, quando o combustível para os geradores se acabar.
Mas o assunto divide a sociedade americana. Muitos criticam a passividade das autoridades, que suspendem o estado de direito face a uma milícia armada. Outros, normalmente os democratas, afirmam que, se esta ocupação fosse realizada por um grupo de afro-americanos ou muçulmanos já estariam todos mortos. E nem todos estão convencidos de que os Bundy e os seus acólitos constituam aquilo a que o FBI chama VAGG’s (Violent Anti-Governement Groups) e portanto terroristas domésticos. A revista New Republic, por exemplo, entende que a ocupação de Malheur não difere muito da de um campus universitário e que os Bundy não estão a aterrorizar ninguém, já que não fizeram reféns nem ameaçam civis com violência. Como nota um agente federal: «Eu invado a tua casa e digo que não sou violento. A não ser que tu queiras voltar a entrar nela».