Dezenas de mulheres vestidas de vermelho afinam cânticos de saudação ao homem afável que acabou de chegar ao cais, à frente de uma imensa comitiva de políticos, apoiantes e jornalistas. Uns meses mais cedo, apesar de ministro, cruzaria discreto as águas que separam a luminosa Maputo da obscura Catembe. Agora, arrisca-se a olhar sempre para ele próprio.
A imagem de Filipe Nyusi, 55 anos, candidato presidencial da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) nas eleições gerais de 15 de outubro, ocupa paredes de casas e casebres, mercados informais, postes e candeeiros. Em Catembe, ele está em toda a parte. Em Maputo, agiganta-se em moopies e outdoors. E replica-se nas restantes dez províncias do país, na base de um coqueiro ou numa bandeira no meio do nada.
Face à sua aposta de risco e à imprevisibilidade dos resultados, alimentada por uma dinâmica da oposição inédita desde as eleições de 1999, a Frelimo colocou nas ruas a massificação de um candidato que, embora filho de guerrilheiros, é o primeiro que o partido apresenta sem notoriedade na luta de libertação: “Defensor dos ideais de Mondlane, Samora, Chissano e Guebuza”, garante um dos seus slogans.
A canção “Nyusi, eu confio em ti” está na ponta da língua de toda a gente, “mesmo que as pessoas não o conheçam de lado nenhum para lhe dar essa confiança”, assinala António Francisco, investigador do instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) de Moçambique. “Ele parte em vantagem porque o partido é conhecido, mesmo que ele não seja. É como perguntar às pessoas se conhecem o diretor-geral da Coca-Cola”, observa por seu lado o politólogo moçambicano João Pereira. “A Frelimo fez, a Frelimo faz”, segundo outro slogan do partido.
Filipe Jacinto Nyusi é uma criação política do homem a que aspira suceder na presidência moçambicana, Armando Guebuza, que o convidou em 2008 para abandonar a administração dos Caminhos de Ferro de Moçambique e tornar-se no segundo civil a ocupar a pasta da Defesa. Natural de Mueda, Cabo Delgado, berço da luta de libertação, de etnia maconde, é também a primeira aposta numa figura fora da elite do Sul que sempre governou o país, impôs-se como candidato presidencial face à concorrência de figuras mais óbvias, como os ex-primeiros-ministros Aires Ali e Luísa Diogo.
“Não sou o melhor dos melhores. Posso dizer que sou o candidato possível neste momento”, disse Nyusi, num encontro com a comunidade moçambicana em Lisboa, talvez lembrando-se das palavras do ex-chefe de Estado Joaquim Chissano quando disse que a melhor forma de se chegar a Presidente da República é não pensar sê-lo.
Alvo de desejo
Num “showmício” em Catembe, Nyusi tenta galgar o papel de superstar que a máquina partidária lhe reservou. “Como é que eu me chamo?”, pergunta aos apoiantes, que são ensinados a marcar o voto no batuque e maçaroca (símbolos do partido).
A Frelimo propõe um jogo no fio da navalha, em que o seu candidato é apresentado como alguém que saberá ler a erosão de 40 anos no poder e manter em simultâneo a continuidade da governação. Se for eleito, herda um país na cauda do Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, com mais de metade da população na pobreza e sem benefício do ritmo de crescimento económico acima dos 7%, nem dos megaprojetos de exploração dos recursos minerais.
Esta é a primeira eleição que Moçambique enfrenta sob a promessa de grandes entradas de receitas, provenientes do gás natural da bacia do Rovuma, Cabo Delgado, onde se estima que se encontre uma das maiores reservas do mundo e cuja exploração deverá ser iniciada no próximo ciclo político. Os investimentos anunciados multiplicam várias vezes o atual Produto Interno Bruto de cerca de 14 mil milhões de dólares, fazendo com que o país seja alvo do desejo de um número crescente de governos e empresas, mas também pressionado por uma população que clama pelo fim da miséria.
Fantasmas de guerra
O próximo Presidente recebe também um país com feridas abertas pelo recente conflito entre o Governo e a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), duas décadas após o Acordo Geral de Paz, colocando fim a 16 anos de guerra civil, e cujo reacendimento provocou um número desconhecido de mortos e milhares de deslocados no centro do país.
No fim de 17 meses de hostilidades, encerradas oficialmente a 5 de setembro, o líder histórico da Renamo, Afonso Dhlakama, 61 anos, reivindicou uma vitória militar e milhares de baixas do lado do exército, que, sob as ordens de Nyusi enquanto titular da Defesa durante mais de metade do conflito, foi incapaz de solucionar a rebelião do braço armado do maior partido de oposição, bem como as suas emboscadas num troço de cem quilómetros, em Sofala, da única estrada que liga o Sul e o Centro do país.
Dhlakama insistiu várias vezes que o ataque do exército a 21 de outubro de 2013 à sua base em Satuingira, na serra da Gorongosa, foi também uma tentativa fracassada de o eliminar: “Era o dia destinado para me matarem, só Deus é que não quis. Parecia gingar, os obuses a cair à frente, atrás, mas ia a falar, a comunicar com a minha família, com meus filhos que estão na cidade, para que não chorassem porque se tratava de uma brincadeira”, lembrou.
Afastado do Governo em março para se dedicar às presidenciais, Nyusi pouco fala do seu passado na Defesa. Mas os seus adversários não esquecem: “Teve a mão dura nesse processo e não conseguiu fazer uma leitura clara de que a via armada não podia resolver o diferendo entre os moçambicanos”, acusa Daviz Simango, líder do MDM (Movimento Democrático de Moçambique). “Ao aparecer em Satuingira depois de ter escorraçado o líder da Renamo, é um sinal claro de que é um homem que gosta de violência”, declarou o também candidato presidencial da terceira maior força política.
O senhor da terceira via
Filho de um ex-vice-presidente da Frelimo e pastor protestante, Uria Simango, alegadamente executado em campos de reeducação do partido, Daviz Simango, 50 anos, passou pela Renamo, que abandonou em 2008, quando Dhalakama recusou apresentá-lo como candidato à cidade da Beira.
Depois disso, não só reconquistou a segunda maior cidade como logo a seguir criou o MDM, buscando descontentes dos dois partidos históricos, liderando a ascensão de um movimento que, nas últimas eleições, colocou oito deputados no parlamento, apesar de apenas ter sido autorizado a concorrer em dois círculos.
Com uma forte aceitação no eleitorado jovem e urbano, o MDM juntou à Beira mais três municípios, dois dos quais grandes urbes – Nampula e Quelimane -, além de obter resultados assinaláveis em Maputo e na sua cidade-satélite, Matola.
“Há uma geração nova que vai votar pela primeira vez e para a qual o discurso de guerra não faz muito sentido, porque tem outras causas e aspirações”, observa Tomás Vieira Mário, comentador político moçambicano. Trata-se de “grupos marginalizados pelas políticas da Frelimo” e “um produto da massificação da educação e sem enquadramento ao nível de emprego e de subsídios de desemprego”, prossegue por seu lado o politólogo João Pereira, “mas cujo comportamento eleitoral é volátil”.
“O MDM não tem nada a perder nestas eleições, está a afirmar-se como alternativa. E a bipolarização do bloco ‘Frenamo’ (Frelimo mais Renamo) chegou ao fim”, garante Daviz Simango, manifestando a convicção e que vai ganhar, com as suas propostas centradas na redução dos poderes presidenciais, descentralização e transparência do aparelho de Estado.
O nervosismo da subida do MDM pode ser medido na forma como foi recebido em zonas rurais e onde se encontra mais de dois terços do eleitorado. Em Gaza, bastião da Frelimo, a caravana eleitoral de Simango foi atacada em vários pontos da província, levando a graves confrontos entre apoiantes das duas forças e à acusação, em conferência de imprensa, de uma tentativa de assassínio do líder partidário.
Na mesma semana, a terceira da campanha de 45 dias, nas celebrações dos 50 anos das Forças Armadas em Nampula, elementos do MDM transportaram uma urna envolvida por uma capulana com a imagem de Nyusi, provocando mais confrontos com a Frelimo e com a polícia. “Uma autêntica vergonha”, desabafou o presidente da Comissão Nacional de Eleições, Abdul Carimo, referindo-se à violência, mas também dirigindo sérios avisos para outros atos de intolerância e que incluem prisões arbitrárias, sequestros, destruição de sedes e de material de campanha e ainda a utilização de bens do Estado em ações partidárias.
O Afonso que ninguém esperava
Dado como politicamente morto, Dhlakama saiu a 4 de setembro de parte incerta, algures na Gorongosa, escoltado por membros do corpo diplomático, incluindo o embaixador de Portugal, foi recebido em apoteose em Maputo, que não visitava há cinco anos, e firmou a paz com Armando Guebuza.
A cerimónia do acordo de paz pelos dois adversários, conhecida como “encontro da fotografia”, implicou quase 80 rondas de negociação que resultaram no início do desarmamento da Renamo, sob vigilância internacional, a troco de uma nova legislação eleitoral, outra de amnistia e a transformação do entendimento em leis aprovadas no parlamento. Tal como chegou a Maputo, Dhlakama partiu, com uma semana de atraso em relação aos seus adversários, mas que depressa compensou, arrastando multidões para os comícios nas províncias da Renamo e fazendo soar o alarme nas outras candidaturas, até pela falta de censura popular a um senhor da guerra. “Pelo contrário, acabou por ter uma receção espantosa”, nota o investigador António Francisco.
Sem a capacidade de recrutamento da Frelimo para comícios nem o arsenal de prendas do partido no poder, a Renamo tem beneficiado do carisma do seu líder, embora seja uma incógnita se as multidões são efeito da curiosidade ou do acolhimento à sua eterna causa de despartidarização do Estado e das Forças de Defesa e Segurança.
“Ele perdeu grande parte do eleitorado nas duas eleições anteriores, agora volta com esta pose messiânica e, se conseguir recuperar os dois milhões que desapareceram, isso muda tudo”, diz ainda o investigador do IESE.
Desde o acordo de cessação de hostilidades, não há registo de confrontos entre Governo e Renamo. Por outro lado, o entendimento prevê uma desmilitarização gradual da força de Dhlakama – “a paz armada”, como se ironiza nos cafés de Maputo -, lançando a incerteza para o período pós-eleitoral. Várias instituições internacionais já alertaram para o risco de instabilidade após 15 de outubro, incluindo o Departamento de Estado norte-americano que emitiu um aviso aos seus cidadãos para evitarem viagens a Moçambique.
Dhlakama garantiu que respeitará os resultados, apesar de nunca o ter feito em quatro derrotas anteriores e de ter demonstrado várias vezes o seu à-vontade em dar um sentido literal à expressão “o voto é uma arma”. O risco de fraude, acredita, está mitigado com a nova lei eleitoral por ele imposta, numa votação que será vigiada por sete mil observadores, seis mil moçambicanos e mil estrangeiros. O problema da aceitação dos resultados, segundo o líder do MDM, não se coloca só do lado da Renamo, desafiando também o partido no poder: “Sentimos que os dois não estão preparados. Se o MDM passar para segunda força, a Renamo está preparada para ser a terceira? Se a Frelimo perder, está preparada para ir para a oposição?”
E do mesmo modo se pode perguntar quem está pronto para ganhar e de que modo, num cenário de segunda volta nas presidenciais ou de uma maioria relativa no parlamento, desafiando entendimentos entre grupos políticos que se toleram com dificuldade. “Quem não é da Frelimo, o problema é dele”, avisa um cartaz do partido no poder e que já mereceu resposta nas redes sociais: “Quem não é da Frelimo, a sorte é dele.”