António Costa e Rui Rio foram de choque em choque até aos entendimentos finais. Estava previsto que o debate durasse uma hora mas a – muitas vezes – intensa troca de pontos de vista estendeu por mais quase 20 minutos o primeiro (e único) frente-a-frente televisivo entre os dois principais candidatos às legislativas de 6 de outubro. Do investimento público à política fiscal, do Serviço Nacional de Saúde aos salários dos juízes e ao braço de ferro do Governo com os professores, passando pela regionalização – em quase tudo, Costa e Rio estiveram em lados diferentes da barricada. Mas houve exceções.
Na Justiça, por exemplo, apesar de o líder do PSD criticar a forma como o Governo reviu os vencimentos de alguns juízes, ambos concordaram com a ideia de que há processos judiciais que se arrastam demasiado tempo sem que tenham um desfecho dos tribunais. O tema levou, aliás, Rio a tecer um dos mais inesperados comentários, quando questionou a “autoridade deste regime sobre o Estado Novo” quando permite que os arguidos sejam “pendurados na praça pública”. Costa reconheceu que, pelo senso comum, “há processos que demoram um tempo excessivo”.
Num debate em que Rui Rio – no papel de desafiador – foi quem mais se mostrou ao ataque, os dois candidatos ainda se mostraram alinhados na rejeição do regresso do Serviço Militar Obrigatório e na defesa de medidas urgentes para o combate às alterações climáticas. Mas, para isso, foi preciso chegar quase ao fim. Antes disso, foi muito mais o que os separou na análise dos últimos quatro anos e na proposta para o mandato que ambos pretendem liderar a partir de São Bento.
A “maior carga fiscal”
A discussão sobre a carga fiscal – presente e futura – foi um dos pontos em que os dois candidatos mais se bateram. Mesmo quando os três entrevistadores (numa emissão conjunta entre a RTP, a SIC e a TVI) deram sinais de querer avançar, houve um e mais outro ponto que Costa e Rio fizeram questão de sublinhar.
Aparentemente, até haveria espaço para entendimentos, uma vez que ambos defendem uma redução dos impostos ao longo dos próximos. A diferença está no caminho para lá chegar.
Rui Rio teve quase sempre a primeira palavra, simplesmente porque lhe coube, em sorteio, ser o primeiro interpelado. E quando o debate chegou aos impostos, o líder do PSD apostou no argumento de que o atual Governo promoveu “a maior carga fiscal de sempre”. O líder social-democrata frisou um ponto: “António Costa diz que baixou em mil milhões o IRS, e isso é verdade, mas aumentou outros impostos em 1,2%”. Daí que, conclui, o lema do PS é frágil: “Não são contas tão certas assim:”
Rio admite que, em 2023, terá uma margem de 15 mil milhões de euros para reduzir impostos. O plano do PSD passa por promover “políticas públicas para que as empresas invistam e exportem”, e isso pressupõe um “combate à burocracia”, uma “valorização profissional”, o aproveitamento de “fundos estruturais” e pela “diplomacia económica”.
António Costa defendeu-se na ideia de que a carga fiscal aumentou por uma razão fundamental: há mais emprego, o que gera mais contribuições para a Segurança Social e mais consumo. “O que fez aumentar a carga fiscal foi o funcionamento da economia”, referiu o líder do PS. Rui Rio acabaria por aceder à ideia de que é alguém que estivesse no desemprego prefira trabalhar, mesmo que descontando para a Segurança Social, a manter-se naquela situação.
Antes de o debate avançar, Costa ainda chegou a acusar Rio de “parecer a Dra. Cristas”: por um lado, defende a redução da dependência energética (nomeadamente, dos combustíveis), mas por outro lado acusa do Governo de não suavizar os impostos sobre estes bens.
A saúde do SNS
Outro tema que aqueceu o frente-a-frente. Costa reconheceu que “os constrangimentos financeiros condicionam sempre tudo”, mas logo de seguida lembrou que o Governo “repôs tudo o que tinha sido cortado” em investimento público durante a anterior legislatura. E voltou a percorrer os números do Serviço Nacional de Saúde (SNS): mais médicos, mais enfermeiros, mais técnicos, mais consultas hospitalares e nos cuidados de saúde primários, mais cirurgias e mais centros de saúde. “Quando se diz que SNS está pior do que estava, lamento, não é verdade”, contrapôs. Se a situação é ideal? Não. “É por isso que temos de continuar a melhorar o dia a dia do SNS”, disse ainda.
Aqui, Rio entrou em modo crítico suave. “Não vou dizer que o SNS está caótico, e que quando o PS entrou estava fantástico”, disse o social-democrata. Mas o ataque ainda estava para vir: “Em 2015 como estava? E em 2019 como está? Está pior”, rematou. Mas havia mais. “Podemos ficar empatados em números”, admitiu Rio, “não ficamos é quando pessoas se dirigem ao SNS e veem como ele está”. Um SNS onde “faltam medicamentos”, onde há “ineficiência de gestão” e onde “falta investimento”. Aliás, acrescentou, “o investimento executado foi menor do que na legislatura anterior”, garantiu o líder do PSD. E trazia números, para desempatar a questão: 163 milhões de euros em 2015 contra os 132 milhões em 2018. Há ou não há cativações na Saúde? “Se for ver o Orçamento do Estado, de certeza, que [o investimento] é superior, mas o que interessa é a execução”.
Costa ripostou com o atual nível de “produção” do setor da Saúde, mas não havia forma de os dois se entenderem com os números. “Não posso discutir com Rui Rio, porque é questão de fé. Vamos reduzir impostos, melhorar os serviços públicos e não permitir que a despesa cresça. Isso é fé.” Tal como não se entenderam acerca do o modelo de gestão do SNS, depois de uma legislatura marcada pela discussão sobre as Parcerias Público-Privadas na Saúde.
Entre a sala e o tribunal
Há uma coisa que Rui Rio garante que nunca fará: dizer aos professores que não há forma de reverem o salário que perderam quando tiveram as carreiras congeladas e depois aumentar os salários dos juízes de topo de carreira. “Quando eu disser que não há, não há para todos.”
O tema eram os professores, mas Educação e Justiça acabaram misturados nesta fase do debate e os dois candidatos oscilaram entre os ataques e a condescendência entre si. A discussão começou acesa. Na sua intervenção, Costa acusou de imediato o líder do PSD de ter “uma obsessão contra a Justiça” e de se mostrar como “o líder da oposição aos juízes”. O primeiro-ministro disse que fez o que era “justo”, ao reconhecer parte do tempo perdido aos docentes e desviou caminho para os outros “temas” que o PS está disponível para discutir com a classe: carreiras estabilizadas, com novos modelos de concurso, e mudanças na carreira das educadoras de infância e professores do primeiro ciclo.
Mas Rio não queria largar o tema da Justiça. Primeiro, deu o exemplo de um juiz estagiário que “ganha mais que o pai, que, por acaso, conseguiu chegar ao topo da carreira”. Por arrasto, o social-democrata dizia-se “abismado” com a proposta do PS de entregar a regulação do poder parental aos julgados de paz, “como se fosse um problema de condomínio”:
Costa lembrou a um Rio também “estarrecido” que “a generalidade destes casos” já dispensa a mediação judicial, mas o ponto de Rui Rio estava marcado. O líder do PS ainda voltou à Educação para assinalar que a possibilidade de as escolas poderem organizar autonomamente o processo educativo “foi a maior prova de confiança que o Estado já deu à classe”.
Num pingue-pongue entre as salas de aula e os tribunais, o tom de Rui Rio subiu para criticar o estado da Justiça. “Isto assim não pode ser, as pessoas penduradas na praça publica como têm sido” pela demora das investigações judiciais. “Qual é a autoridade deste regime sobre estado novo quando faz isto? Não é aceitável e eu, como democrata, não posso pacificamente uma coisa destas”, declarou.
O tema – que tinha começado com um aceso confronto entre os candidatos – acabaria por encontrar um ponto de concórdia. “Qualquer pessoa de bom senso pensa o que Rui Rio diz”, assumiu Costa. Mas “a nova relação entre o poder mediático e o poder judicial” resultou numa “transferência para a praça pública” do debate à volta das grandes investigações. E – novo afastamento – “não é alterando a composição do Ministério Público que se vai alterar estes problemas”, vaticinou Costa.
A alta-velocidade até ao Montijo
“O que é preocupante é a inconsistência do PSD à volta de temas fundamentais”, atirou Costa a Rio, para obrigar o líder social-democrata a acertar o discurso com o passado recente do seu partido. Estava a discutir-se a construção do aeroporto complementar da Portela no Montijo e o primeiro-ministro queria evidenciar as voltas que o principal partido da oposição dá deu sobre o tema.
Se Marques Mendes defendeu a “solução Ota”, Passos Coelho começou por questionar a opção por Alcochete até se definir por uma solução complementar ao Aeroporto Humberto Delgado. “Este Governo, por uma questão de estabilidade nas obras públicas, e porque é urgente recuoerar o atraso, aceitou trabahlar na opção do anterior Governo” e validou a solução do Montijo, disse Costa.
Agora, ao questionar o caminho seguido, Rui Rio “não só põe em causa o trabalho do anterior Governo” como ameaça o “trabalho destes quatro anos”. E mais: riscar o Montijo significa “dar uma indeminização muito significativa à ANA”, avisou o socialista.
A posição do PSD, emendaria Rio, até nem é de discordância de fundo. “Aquilo com que não concordamos é que se diga que, independentemente do que der o Estudo de Impacto Ambiental, tem de ser o Montijo”, esclareceu o líder do PSD.
Rio acabaria por reconhecer que “é evidente que o que está à frente é o Montijo”, depois de – esclarecendo outro ponto em debate – garantir que “não há TGV nenhum” no programa do PSD.
A sintonia no “combate de toda a humanidade”
Os dois adversários acabariam por descalçar as luvas já perto do fim do debate, quando o tema das alterações climáticas foi lançado para cima da mesa. Se António Costa defendia que essa “tem de ser uma batalha coletiva de toda a humanidade”, porque é “a maior ameaça” que o ser humano enfrenta, Rui Rio recusava entrar em picardias. “Não é uma matéria para dizer PS contra PSD, é sério demais para entrarmos por aí”, arrumava logo à partida.
Costa ainda lembrou que a preocupação do Governo com o planeta vem de trás, desde que o PS decidiu colocar o dossier dos transportes na esfera do Ministério do Ambiente num trabalho que levaria, entre outras medidas, à redução do preço dos passes sociais nos transportes públicos. Mas Rio estava magnânime. “Todos, da direita à esquerda, temos de nos mobilizar”, diz o social-democrata, que até concorda com um cartaz do Bloco de Esquerda: “Não há planeta B.”
O mesmo alinhamento em relação à eventual reintrodução do Serviço Militar Obrigatório (SMO). “Como jovem da JSD, fui um dos que mais combateram o SMO por ver o que era na altura, em que não servia para nada”. A questão não se coloca, até por “razões de ordem orçamental”, mesmo que haja quem, nas Forças Armadas, veja essa possibilidade com “muito bons olhos”.
“Fiz o SMO mas não defendo o SMO”, esclareceu de imediato António Costa. A revitalização dos ramos militares passa por uma “maior atratividade dos contratos”, já que “a profissionalização tem sido uma mais-valia” e que “é graças a isso que os nossos militares se vêm destacando” nas missões internacionais, defendeu o primeiro-ministro quando já passava mais de uma hora e um quarto de debate.