Aos 70 anos, o franco-libanês Amin Maalouf não para de surpreender desde que publicou As Cruzadas Vistas pelos Árabes. O seu mais recente livro, O Naufrágio das Civilizações, lançado há cinco meses e ainda sem edição portuguesa, é uma mistura de memórias e de reflexões sobre o atual estado do mundo. Como seria de esperar, o escritor e académico demonstra ser uma vez mais um homem de ideais, razão pela qual já recebeu todo o tipo de distinções e honrarias – do Goncourt, ao Príncipe das Astúrias, sem esquecer o seu estatuto de imortal da Academia Francesa. Denunciando os dogmas e o “egoísmo sagrado” dos tempos modernos, o também antigo repórter disserta sobre os “paraísos perdidos” e os principais desafios da Humanidade. Das mudanças climáticas às derivas nacionalistas e identitárias, da corrida aos armamentos passando pela forma como o capitalismo não foi capaz de cumprir as suas promessas e acelerou a fragmentação das sociedades, Maalouf revela uma desconcertante capacidade de análise sobre o que é essencial. Eis um singelo pretexto para a entrevista exclusiva que o autor concedeu à VISÃO, por email, ainda a partir de Paris e quando já se preparava para fazer as malas rumo a Lisboa, onde esta sexta-feira, 19, vai receber o Prémio Calouste Gulbenkian 2019 – uma distinção, no valor de 100 mil euros, que tem por objetivo destacar a obra de um “incansável construtor de pontes”, sempre empenhado na construção de um mundo melhor, mais justo e em paz.
No romance O Século Primeiro Depois de Beatriz, publicado em 1992, já manifestava um inquietante olhar sobre o futuro. Depois de As Identidades Assassinas e Um Mundo Sem Regras, o seu novo ensaio intitula-se O Naufrágio das Civilizações. Será que Amin Maalouf se tornou um pessimista inveterado?
Prefiro definir-me como um otimista inquieto. Quando observamos a evolução do mundo ao longo das últimas décadas, não podemos deixar de nos surpreender com um paradoxo perturbador: no plano da ciência, da tecnologia e também da economia, há avanços sem precedentes na História. Vivemos durante mais tempo e com melhor saúde. Temos à nossa disposição todo o saber dos homens e muitos instrumentos que nos facilitam a vida. Testemunhamos o desenvolvimento económico das nações mais populosas do mundo, como a China ou a Índia. Tudo isto é, sem dúvida, fascinante, mas o progresso moral da Humanidade não segue o mesmo ritmo. Alguns acontecimentos parecem mesmo uma verdadeira regressão moral…
Este seu último livro é um grito de alerta? Podem os escritores influenciar o curso do mundo?
O primeiro dever de um escritor é ser honesto com os seus contemporâneos e alertá-los quando está convencido da iminência de um perigo, para que eles abram os olhos e tomem consciência dos desafios. Se irão recuperar, reagir e evitar as armadilhas que encontrem no seu caminho, teremos de esperar para ver, sem demasiadas ilusões. Escrevem-se muitos livros que não passam de clamores no deserto ou garrafas lançadas ao mar.
Em 2004, numa entrevista exclusiva que deu à VISÃO, já falava de uma “deriva identitária” como ameaça global. Agora, fala de um “mundo em decomposição”. Porquê?
Porque nada foi feito para travar essa deriva. Infelizmente, observamos isso em relação a vários domínios. Tomemos, como exemplo, a questão das alterações climáticas. Falamos disso constantemente, exprimimos as nossas preocupações, mas será que estamos a usar todos os meios para suster esta deriva? De modo algum. É como se, no fundo, não acreditássemos que o risco é real. Ou como se esperássemos que o problema se resolvesse sozinho, como por magia, sem termos de lidar com ele. O mesmo acontece com as derivas identitárias. Falamos disso sem cessar, mas a verdade é que não procuramos resolver os problemas…
São os problemas identitários os responsáveis pelo caos que se vê por todo o mundo?
Em parte, sim. Vivemos num mundo onde, graças ao progresso nas comunicações, estamos em permanente contacto com os nossos contemporâneos. Podemos até dizer que cada um de nós tem milhares de milhões de vizinhos, alguns dos quais no mesmo país, na mesma cidade, na mesma rua. Como organizar as relações entre todas estas pessoas, de inúmeras origens, para evitar as tensões, as discriminações, as incompreensões, os ódios e as violências? Todas as sociedades contemporâneas enfrentam esta situação, algumas delas vivendo num estado de tensão permanente que perturba o seu clima político e intelectual, que pesa sobre a sua vida diária.
A propósito desse ambiente que descreve – podemos comparar os Coletes Amarelos em França às revoltas do passado ou a outros movimentos de indignados?
Eu vejo este movimento sobretudo como um sintoma da doença que afeta a sociedade francesa e que poderá, igualmente, abalar outras sociedades europeias. Uma parte significativa da população sente-se marginalizada, perdeu a fé no futuro e sente que os responsáveis políticos não se preocupam com o seu destino, porque têm outras prioridades.
E como olha para a tragédia migratória no Mediterrâneo?
É, realmente, uma tragédia, mas é preciso não esquecermos que ela começa nos países de origem dos migrantes. Devemos perguntar-nos por que razão tantas pessoas não se importam de arriscar a vida em embarcações improvisadas em vez de ficarem no seu país natal. Sendo eu próprio um migrante mediterrâneo [Amin Maalouf mudou-se para França em 1975, quando começou a guerra civil no Líbano que durou até 1990], sei que, por vezes, é preciso tomar a decisão de partir, para assegurar à família uma vida mais pacífica e gratificante.
A política migratória da União Europeia é o espelho do fracasso da nossa civilização?
Diria antes que a tragédia migratória é reveladora dos fracassos da nossa civilização, e são muitos os responsáveis. A maior responsabilidade é dos dirigentes dos países de onde vêm os migrantes. As potências mundiais e regionais também são culpadas. A União Europeia tem, igualmente, uma quota-parte de responsabilidade, mas não lhe devemos atribuir todos os pecados da Terra.
Qual é a sua opinião sobre o Brexit? Como pode ser resolvida esta crise?
O Brexit entristece-me profundamente. Porque a construção europeia é, para mim, um dos projetos mais promissores da nossa era, e o seu enfraquecimento representa, inegavelmente, uma regressão. O referendo sobre o Brexit foi uma ideia muito má, inútil e irresponsável. A campanha para a sua aprovação conduziu a uma explosão de demagogia que raia a fraude moral. Mas é preciso dizer também que a gestão do projeto europeu, nas últimas décadas, tem sido deficiente. Era nosso dever cativar a opinião pública britânica para a ideia europeia, e não o soubemos fazer. A imagem da Europa deteriorou-se consideravelmente em muitos países, e não podemos excluir, no futuro, outros dramas como o do Brexit.
A derrota de Donald Trump nas presidenciais de 2020: um cenário impossível, pouco provável, obrigatório?
A lógica do sistema político dos Estados Unidos da América faz com que seja impossível saber os resultados antes da noite eleitoral de 3 de novembro de 2020. Neste momento, a incerteza é total. É impossível dizer quem será o adversário democrata do Presidente cessante [depois das eleições primárias no partido] e quem será o vencedor. Se tivesse de resumir hoje o meu sentimento de observador, diria que é plausível a reeleição de Trump e que as suas probabilidades de um segundo mandato são grandes se a economia norte-americana continuar a ter bons resultados.
Recentemente, declarou que já não há personalidades, instituições ou países que sejam referências, com ideais e credibilidade moral. Isso é inelutável?
Sim, impressiona-me o facto de muito poucos dirigentes, muito poucas instituições – políticas, religiosas ou mediáticas – terem, hoje em dia, uma verdadeira credibilidade moral. Mais do que nunca, a Humanidade parece-me desorientada. É uma situação desconcertante, mas esperemos que seja o prelúdio de uma verdadeira tomada de consciência…
Na qualidade de antigo jornalista do [diário libanês] An-Nahar e da [revista francesa] Jeune Afrique, gere bem a loucura das fake news?
Eu cresci à sombra de um pai jornalista, trabalhei durante muito tempo na Imprensa e sempre segui a atualidade de muito perto, por todos os meios à minha disposição: jornais, rádios, televisões e livros. Por isso, todos os dias me confronto com a necessidade de separar o que são factos verificáveis, rumores a verificar, mentiras e manipulações. Ainda antes de as fake news se tornarem um fenómeno global e diário, elas já existiam e era necessário sermos cautelosos. Devo acrescentar que não sou um homem crédulo. Cultivo a dúvida e gosto de verificar e reverificar tudo o que leio ou ouço.
Quais são hoje as suas pátrias? É ainda um cidadão do Líbano e da França? Ou simplesmente um refugiado na pequena ilha de Yeu [situada ao largo da costa atlântica francesa e local onde Amin Maalouf costuma escrever as suas obras]?
Não me considero nem um refugiado nem um exilado. Abraço plenamente os países onde cheguei sem nunca abandonar aqueles de onde parti. Por isso, sinto-me apaixonadamente francês, apaixonadamente europeu, sem nunca deixar de ser libanês, mediterrânico, árabe ou levantino.
Depois de 40 anos de criação artística e dezenas de prémios e louvores, qual é agora o desafio de Amin Maalouf, o imortal?
Não vejo o futuro em termos de desafios pessoais. Gostaria, acima de tudo, que os meus netos vivessem num mundo menos impiedoso do que o que parece emergir. Eu continuo a escrever na esperança de que os meus contemporâneos recuperem, elevem a fasquia e evitem o naufrágio que espreita o conjunto das sociedades humanas.