Nasceu como uma atriz obcecada com a perfeição, mas, entretanto, conforme revela, descobriu que o erro também pode ser sinal de “humanidade”. Três filhas, 45 anos de vida, 25 dos quais dedicados a uma arte que, diz, já não é só para si. Até dia 14, esteve de regresso ao São Luiz para interpretar a mítica Sarah Bernhardt.
Vimo-la na série de televisão Sara e, agora, voltamos a vê-la no teatro como Sarah Bernhardt. Cada uma tem a sua tristeza?
São ambas devotas ao trabalho e cada uma paga o seu preço por isso. Não têm vida pessoal, não constituem família. Sarah Bernhardt teve filhos, mas era abandónica, estava sempre a viajar… Era muito obsessiva na forma de representar, com a modelação do som e das frases, com uma fórmula que considerava perfeita para poder tocar e chegar às pessoas. Também tinha uma obsessão com ela própria, com a construção da sua imagem. Foi, aliás, uma das primeiras atrizes, talvez a primeira, consciente do poder da imagem, criou rumores, deu entrevistas falsas, manipulou a imprensa…
Muito à frente do seu tempo.
Sim, ela própria tirava partido dos mitos que se iam criando, alimentando-os. A outra Sara, pelo contrário, na sua culpabilidade de esquerda, opõe-se a todo esse universo. Herdou isso do pai e, como tal, não consegue ultrapassar essa relação com o artificial e com a imagem. Está muito agarrada ao conteúdo, à seriedade dos conteúdos.
Aprendeu ao representar essas duas atrizes? Também é uma forma de questionar o seu próprio trabalho?
Ajuda-nos a refletir sobre a nossa identidade como atores, obriga-nos a rirmo-nos de nós próprios, daquilo que foi a construção da identidade que fizemos para nós, das máscaras que escolhi para a Beatriz Batarda, para a figura da Beatriz Batarda, seja lá o que isso quer dizer aos olhos dos outros.
A arte de representar também pode ser, portanto, uma boa matéria de ficção?
Não é só aqui, trata-se de um movimento que está a acontecer em todo o circuito europeu (não posso pretender saber o que se passa no resto do mundo). Ocorre-me que isso aconteça porque estamos a assistir a uma transformação real entre o papel do intérprete e do performer, uma multiplicação das formas de diálogo com o público, cruzando as artes plásticas, as artes performativas, a dança, o cinema, o documentário…
Como vê o papel dos artistas nos dias de hoje?
Mais do que transmitir mensagens morais, penso que a função dos artistas é a de levantar questões, de mostrar com uma lupa, de criar uma espécie de efeito de ampliação das inquietações, de tudo o que transpira na sociedade atual. Quando trazemos à cena tragédias gregas, clássicos de Racine ou de Shakespeare, há sempre alguém que pergunta: isto é pertinente nos dias de hoje? Claro que sim, a atualidade, o contexto, condiciona sempre as nossas leituras.
Numa entrevista recente, afirmou que era possível ser ator sem ser artista. O que isto significa?
São ambições diferentes. Há um lado do nosso trabalho que pode ser considerado como uma prestação de serviços. Somos uma peça num puzzle e, antes de tudo, temos de ser eficazes naquilo que é a engrenagem maior. Precisamos de compreender o lugar que ocupamos nessa engrenagem para mais bem servirmos. Noutros projetos, há lugar para um gesto mais artístico, colaborativo, em que o ator se desafia a ele próprio a criar um objeto maior. É um pouco como sermos músicos numa orquestra e, depois, por momentos, sermos o solista. Mas não existe uma interpretação maior e outra menor, é só uma diferença de foco.
Que opinião tem do movimento #MeToo?
A cultura americana é muito diferente da nossa… O princípio da igualdade é válido em qualquer parte do mundo, uma batalha importante. A partir daqui, está tudo dito. Não podemos é, em nome do respeito pelo próximo, misturar tudo. A expressão da individualidade através da moda é muito antiga, a relação com o corpo da mulher, com o belo e com o nu vem da Antiguidade, está presente na pintura, na escultura, na fotografia, no cinema… Trata-se de uma expressão que não só faz parte da cultura como também do impulso de adoração do ser feminino. O seu corpo é belo e traz ao mundo o milagre da criação do homem. Acho que, de facto, as mulheres têm de ser adoradas, idolatradas.
Sara venceu agora um prémio Sophia e um da Sociedade Portuguesa de Autores. Os prémios são “apenas” agradáveis?
Quando era mais nova, tive a felicidade de ver o meu trabalho reconhecido e, se calhar, com o receio de desvirtuar o meu caminho, protegi-me muito da minha relação com os prémios. Nessa altura, talvez fosse capaz de dizer que eram “apenas” agradáveis. Agora, já estou noutra fase. Dediquei 25 anos da minha vida, do meu corpo, da minha energia e da minha saúde (da minha família também, a que já existia e a que fui adquirindo) a uma arte que não me satisfaz só a mim. Já não a faço só para mim. Faço-a com uma consciência mais abrangente, como parte de um todo, de uma vida cultural, da Cultura de um País.
Então, já vê os prémios como um reconhecimento?
Sim, um reconhecimento do nosso esforço e da nossa dedicação. Mais: um agradecimento. Sentir esse agradecimento, para mim, apazigua muitas das mágoas que adquirimos nas personagens, que vamos acumulando quando nos apropriamos das suas vidas e das suas dores. Gostaria de pensar que se trata de um agradecimento por aquilo que um artista proporcionou do ponto de vista da experiência humana, emocional, sensorial.
Já a ouvi elencar as personagens que mais a marcaram, acrescentando que não tem saudades delas.
[Risos].
Massacraram-na?
Como é evidente, sou eu que faço isso a mim mesma. Há um lado masoquista nisto tudo, que é aliás bastante triste de assumir. Os atores sujeitam-se às personagens que interpretam, numa espécie de masoquismo. Acredito que o fazem por amor, não consigo é ser muito específica sobre o destinatário desse amor. Amor-próprio não será certamente.
Pode ser autodestrutivo?
Sim, há alturas em que temos de nos travar. Temos de dizer a nós próprios que não, que já chega, temos de nos proteger um bocadinho. Porque as personagens não se vão embora, ficam a pairar, permanecem no nosso corpo.
De que personagens não se livrou?
No teatro: da Ella, a criatura horrível de De Homem para Homem [de Manfred Karge, com encenação de Carlos Aladro]; da desgraçada da Ifigénia [Ifigénia na Táurida, de Goethe, com encenação de Luís Miguel Cintra]; e do pequeno monstro que era a Solange de As Criadas
[de Jean Genet, com encenação de Marco Martins]. No cinema: da Carla, de Noite Escura [de João Canijo]; da Ana, de Quaresma, que era bipolar ou, pelo menos, nós decidimos que ela seria bipolar [de José Álvaro Morais]; e da mãe de Alice [de Marco Martins].
Que atores admira?
Todos sabem que sou fã incondicional de…
Luís Miguel Cintra.
O meu mestre, não seria justo chamar-lhe outra coisa. Quando trabalhei com ele pela primeira vez, tinha 17 anos. Pouco tempo depois, aos 19, comecei a fazer teatro na Cornucópia [Conto de Inverno, de Shakespeare]. E foi esse encontro que definiu toda a minha relação com o trabalho de ator: todo o lado obsessivo, a dedicação, a exigência comigo própria, a intolerância em relação ao erro, à preguiça, ao desleixo… Tudo isso ficou impregnado em mim. Já para não falar da inspiração que é crescer a assistir a toda aquela glória, glória física, glória intelectual, toda aquela dádiva que ele tem. Como se houvesse uma força inexplicável que o habita e que nos transporta para outro espaço, para outro tempo. Tive muita sorte.
E atores estrangeiros?
Sou fã de Daniel Day-Lewis, de Meryl Streep, que continua a ter um registo muito atual, fresco.
Uma atriz doce.
Ah, mas, apesar de eu ser um bocadinho furiosa/dramática, não é isso que gosto num ator. O que aprecio nesses dois atores é precisamente aquilo que nunca consegui fazer: uma delicadeza no detalhe e na precisão, sem nunca perder a relação com a verdade. Acho que nunca consegui chegar aí. Para me sentir relacionada com a verdade, com o ponto de vista das personagens, eu preciso de me violentar. E gostaria de não ter de fazê-lo. Quando estou a trabalhar com jovens atores, o que peço é disponibilidade para experimentar, para errar, para acreditar.
Mesmo que não seja perfeito?
Hoje em dia, sim. Houve uma peça que, para mim, foi um ponto de viragem no que toca à questão da perfeição: Menina Júlia, de August Strindberg, com encenação de Rui Mendes, no Teatro Nacional D. Maria II [2009]. Nessa altura, eu estava muito obcecada em encontrar o virtuosismo como o da Sarah Bernhardt, nas modelações das intenções, nos tempos, nos gestos… Luís Miguel Cintra cumpriu a sua função de mestre e foi brutal comigo, implacável. Doeu bastante, mas estou-lhe eternamente grata porque foi o que me permitiu dar um salto noutra direção, explorar a zona do grão e do erro, da sujidade, da humanidade. Quando se está obcecado com a perfeição, no fundo, está-se dominado pelo medo de, aos olhos dos outros, o nosso ego morrer. Metaforicamente, claro. Ao começarmos a rejeitar esse medo, ao não querermos ser seus reféns, há todo um mundo de descoberta no abraço à nossa humanidade. E isso é, realmente, generoso porque também permite a um membro do público sentir um ator que, ao falhar, ali à frente, toma uma decisão no aqui e agora, que não estava prevista. E, então, esse membro do público, ao pensar nos momentos em que também falhou, perdoa-se a si próprio.
Gosta de ensinar?
Gosto muito da juventude. Ontem, fui a um concerto com a minha filha mais velha, que vai fazer 15 anos [concerto de Shawn Mendes, no passado dia 28 de março]. O Altice estava à pinha, à pinha de juventude, cheio de miúdos entre os 12 e os 17 anos. E eu chorei, não sei se é por estar deprimida… [risos]. De repente, comoveu-me ali ser tão palpável uma coisa que, naturalmente, eu já perdi: a inocência (que nada tem que ver com a ingenuidade), o encanto, a alegria de estar vivo.
Também o sente nos seus alunos?
Nos meus alunos e nos jovens, em geral. É muito difícil crescer nos dias de hoje. Com estas dispersões todas que os miúdos têm, as redes sociais, as mudanças de canais, com o facto de não se ver nada até ao fim, não se acabar um livro ou uma notícia… Tudo é interrompido. É muito difícil os jovens conseguirem definir um objetivo na vida, um foco, quanto mais definirem-se a si próprios.
O que sinto é que o papel do professor não é dizer-lhes quem é que eles têm de ser, mas é ajudá-los a escolher informação, ajudá-los a abrir janelas novas que estão para lá daquilo que eles já conhecem, ajudá-los a definir o que satisfaz mais a sua identidade. Para depois poderem construir a sua identidade com verdadeiros pilares e definir, interiormente, um objetivo de vida que não é só para amanhã.
Que geração de atores é que aí vem?
É tudo muito imprevisível. Levanto muitas questões éticas sobre o trabalho que faço com os jovens (em dezembro, no Porto, vou apresentar um texto sobre este assunto, uma reflexão em forma de monólogo que se chama A Humanidade é a Primeira Virtude). Tenho vindo a acumular muitas dúvidas, às vezes quase diariamente. Estou sempre a pensar: “Não posso dizer isto, não posso obrigar o miúdo a fazer isto, não devia…” Tenho muitas dúvidas sobre a maneira como ensino, como estimulo, como ponho em causa. Talvez por ser muito exigente comigo própria, fui ficando dura e, por isso, em relação aos meus alunos, fico dividida entre uma amorosidade e uma dureza