As possibilidades de conhecer pessoas são muitas mas, na vida acelerada que temos, é pouco o espaço para apreciar e ser apreciado. Que lugar reservamos para o que desperta a mente e os sentidos? A pergunta foi feita pela então recém-formada psicóloga, em meados dos anos noventa. Vários estudos e trabalho clínico depois, o manifesto de Ana Alexandra Carvalheira ganhou a forma de livro, prefaciado pelo seu mentor, o médico Francisco Allen Gomes, conhecido como o pai da sexologia em Portugal. “Quis despir–me do papel de investigadora para ser a psicoterapeuta a escrever para o público, sem o rigor que a ciência exige”, observa, enquanto bebe café numa das salas do William James Center for Research, no ISPA – Instituto Universitário, um pouco antes da sessão fotográfica para esta entrevista, tendo a exposição de Luís Herberto [As Máscaras de Alex] como cenário de fundo. Em Defesa do Erotismo (Saída de Emergência, 224 págs., €15,50) a psicóloga aborda os temas do costume – desejo, sexo, orgasmo, amor – com descrições de casos clínicos recentes e de voluntários, intercaladas com dados de pesquisas e citações literárias. Sabendo que cabe a cada um o desafio de encontrar o seu bem-estar erótico, deixa esta mensagem: que não se renuncie à atividade sexual “por ignorância, falsas crenças ou medo”.
As crónicas sobre amor e sexo, no site da VISÃO, refletem o que se passa na sua clínica?
A sexualidade na idade sénior, o desejo masculino e o orgasmo feminino foram os temas que mais leitura tiveram. Os dois últimos são os que mais aparecem nas consultas: dificuldades com o desejo e a excitação sexual, sobretudo nas mulheres, mas também em homens jovens.
Afirma que a partilha e o compromisso matam o erotismo. Este está em vias de extinção?
O erotismo é como as impressões digitais, cada um tem o seu. O que é erótico para uns pode ser pornográfico ou antierótico para outros. Se a intimidade trouxer proximidade e familiaridade excessivas, sem espaço para o sentido do eu, isso pode perturbar e destruir o erotismo, que está ameaçado em várias frentes. Uma é a banalização do sexo. Outra é a falta de espaço e de tempo, que têm que ver com o imediatismo em que vivemos e a pequenez do espaço privado, apropriado pela exposição e a esfera públicas.
Como explica o sucesso de cenas lésbicas em novelas de horário nobre e fenómenos como a ficção 50 Sombras de Grey? Há pouca literacia erótica?
Não sei. O que posso dizer é que há pessoas com um património erótico pobre e que, sem imaginação, acabam por entusiasmarem-se e satisfazerem- -se com pouco, indo ao encontro dos estereótipos de género. O cliché do homem sedutor, rico e dominador e a menina inexperiente, deslumbrada e submissa…
Se o sexo é um barómetro da relação, isso aplica-se a relacionamentos casuais e a amigos coloridos ou só aos relacionamentos estáveis?
Obviamente que este assunto diz respeito às relações de compromisso, onde há mais ameaças à mobilização da excitação sexual. Nos ritmos acelerados em que vivemos, uma relação de cinco anos é considerada de longa duração.
A questão agora é como manter a chama após cinco anos, em vez de dez ou 20…
O problema é que, ao contrário do que sucedia há 20 ou 30 anos, queremos tudo ao mesmo tempo: segurança e aventura, conforto e risco. São coisas contraditórias. O erotismo exige a conciliação entre compromisso, segurança e liberdade. Ele flui no movimento entre aproximação e afastamento, mas nunca na fusão.
A fase do afastamento é crítica para muitos.
Porque gera medo. É preciso alguma segurança consigo próprio, porque isso é também atrativo para o outro. E depois há a novidade e o mistério, que fomentam a aproximação.
A indústria dos fins de semana, das escapadinhas e dos programas gourmet, é suficiente?
São necessárias duas coisas: planear o tempo e o lugar para o sexo, sem ficar no registo do “não apetece” e, internamente, investir na intenção.
Há quase 20 anos, o tema era o cibersexo. Hoje abundam os aceleradores de encontros, mas começa a falar-se em exaustão, desencanto e no fim do dating. Quer comentar?
Há uma multiplicação de canais de comunicação que começou com o mIRC [Internet Relay Chat]. Depois vieram as aplicações móveis. Temos o imediatismo, o multitasking e informação a mais, que chega, sob a forma de imagem, texto e voz, por várias portas de acesso. É tudo muito cerebral, no online falta corpo e interação física. O erotismo precisa do toque, do cheiro.
Navegando em aplicações como o Tinder, não faltam perfis sem texto de apresentação, com fotos pouco cuidadas. Isto reflete uma realidade eroticamente pobre?
Sim, a sobre-exposição é tanta que, muitas vezes, nem chega a haver o registo presencial, fica-se no plano superficial, no “poucochinho”. Isso também pode resultar de uma insatisfação erótica com a vida sexual.
Nunca se teve tanto e tão pouco. A pornografia mata o desejo?
Os conteúdos que oferece a qualquer hora do dia e da noite, associados à masturbação, podem permitir que se constitua um padrão sexual a solo que não exige o trabalho de estar numa relação. Há homens jovens, em relações de compromisso, que veem aqui uma maneira fácil de aliviar a tensão e perdem completamente o interesse pela parceira.
Há um estudo seu, sobre o interesse sexual masculino, que talvez faça sentido abordar.
Foi em 2014, com uma amostra de portugueses, noruegueses e croatas. Verificou-se que aqueles situados na faixa etária entre 30 e 40 anos tinham o desejo sexual mais perturbado: devido ao stresse profissional, à ascensão na carreira, ao casamento, aos filhos, aos divórcios.
Voltando às aplicações de encontros, ao sexting e afins: são um entrave ou um facilitador do erotismo?
Servem para brincar, distrair, procurar parceiros casuais ou mesmo parceiros para a vida. Massajam o ego, por vezes são pensos rápidos para as feridas da autoestima e da autoconfiança. Pode haver um sabor amargo ou não, depende das expetativas. Pergunto a amigos sobre o erotismo que pode haver nesses contextos. Os ingredientes do erotismo estão todos lá, a transgressão, as sensações criadas, a imaginação – mas são superficiais. Só no face a face ficam sujeitos ao teste, às vicissitudes do erotismo ou da falta dele.
Porque é que se estuda pouco esta área, sobre o que estimula o prazer em detrimento do que não funciona?
Ainda há uma tendência para ver a sexualidade como uma patologia, até por interesses da indústria farmacêutica, que é o motor da investigação a nível mundial. O erotismo é o coração da sexualidade, mas a ciência não agarra este conceito por ser multifatorial e difícil de operacionalizar.
É uma aficionada do tango. Como despertou para esse universo e o que a cativa nele?
O tango é um exercício de perda de controlo e de entrega ao outro – de aceitar a proposta de quem lidera, permitindo-me ter o papel de seguidora na dança. Transporta-me para o corpo, faz-me desligar do papel analítico e intelectual. O tango, nos dias de hoje, é um palco interessante onde mulheres que exercem um papel dominante na sua vida se permitem descansar desse papel, deixar que seja o outro a liderar, sem que isso se confunda com submissão.
Dizia-se que o feminismo tinha os dias contados. Os movimentos #Metoo e #Time’sUp, que surgiram na sequência da onda de denúncias de assédio feitas por figuras públicas, são de alguma forma o renascer do feminismo? Os homens têm uma palavra a dizer?
Sim, os homens terão uma palavra a dizer. Contudo, é complicado falar sobre isso porque há muita indefinição dos papéis de género nesta fase de transição, em que os modelos emergentes coexistem com outros mais antigos. Persistem fenómenos velhos como a violência, o assédio, a objetificação e a desvalorização da mulher.
Pergunto à terapeuta e mãe de um rapaz: os tempos estão difíceis para eles? Como vê os rapazes que nunca chegam a homens, como na expressão ‘boys will be boys’?
Não há erotismo num rapaz que não se faz homem. Quero educar o meu filho, agora com sete anos, e ajudá-lo a crescer, a ser um homem livre, capaz de evoluir e de ser objeto de desejo de outras mulheres. Num contexto heterossexual, as mulheres gostam de homens com alma feminina e um menino dentro, que só apareça às vezes. No Sul da Europa, muitos só largam a mãe depois dos trinta, o que dificulta as coisas. Lembro-me do que ouvi de Coimbra de Matos (médico e psicanalista): os homens que ainda namoram com a mãe não conseguem foder com mulher nenhuma. É absolutamente antierótico.
Que desafios enfrenta quem já está na faixa etária dos 50? Há quem os considere precocemente seniores, o que também não abona a favor.
Os seniores enfrentam vários desafios, dificílimos, sendo um deles a capacidade de sobreviver aos estereótipos, como o de que a sexualidade e o desejo acabam aos 50 ou com a menopausa. Muito pelo contrário, é possível abrir-se à novidade, enriquecer o património erótico – que vai para lá do coito vaginal – e salvar o erotismo!
Há dois anos publicou uma investigação sobre a satisfação dos homens com próteses penianas. O que encontrou?
Percebi que os homens mais velhos ainda associam muito a masculinidade à função erétil e, por isso, ficam satisfeitos com as próteses, que lhes devolvem a autoconfiança.
Há muitas mulheres mais velhas que estão sós…
E mais viúvas do que viúvos. As mulheres têm muito mais dificuldade em encontrar um parceiro porque há uma assimetria demográfica, ou seja, existem menos homens em faixas etárias avançadas.
As mulheres enfrentam ainda o medo de serem trocadas por outras mais novas…
Os homens vão ter de aprender a erotizar o envelhecimento físico de uma mulher a partir dos 45 anos e a comunicação social tem aí uma responsabilidade enorme. Os milhões gastos em campanhas anti aging… não seria mais interessante usá-los para aceitar o envelhecimento? Eu, que tenho agora 46 anos, estou a preparar-me para viver o meu envelhecimento da melhor forma possível.
Tem vindo a dedicar-se ao mindfulness, ou atenção plena, área em que é certificada. Isso teve impacto no seu quotidiano?
Tenho a minha prática pessoal, que iniciei há onze anos, e mantenho alguma regularidade. Os benefícios são inquestionáveis e traduzem-se na capacidade de usufruir das experiências estando mais focado. Essa experiência suavizou-me, permitiu-me reduzir os níveis de crítica e de dureza, estou mais querida comigo própria [risos]. O mindfulness está a assumir uma importância grande na minha vida e, por isso, comecei a ensiná-lo, em grupos.
O mindfulness vai consigo para a prática clínica?
Sim, uso-o com alguns clientes. Prescrevo a mulheres que têm dificuldades de excitação e estão muito desligadas do seu corpo. Ajuda-as a ligarem-se aos estímulos sexuais e a terem prazer. Também uso em casos de ansiedade, fora do âmbito sexual.
O que é, para si, o momento erótico ideal?
Uf! [Pausa.] Ocorrem-me várias coisas: um momento na natureza, no bosque, na praia ou no mar. Pode acontecer quando estou sozinha e o corpo está mais desperto e recetor de sensações. Agora, para ser ideal, é na presença de um outro, o parceiro