Menos 5 mil milhões de pares de sapatos vendidos em todo o mundo em 2020, o ano em que a pandemia começou a pôr o mundo de pernas para o ar, tirou o tapete à indústria e nos deixou descalços. Para avaliar bem o impacto desta descida no consumo, diga-se que 5 mil milhões corresponde a 60 anos de produção de calçado em Portugal.
Se, até 2019, o setor de calçado português estava a crescer todos os anos, e numa década registou um aumento de 50% nas exportações, 2020 foi o ano do balde de água fria: 16% menos nas exportações e menos 290 milhões de euros na faturação para o exterior. Itália e Espanha, os dois países concorrentes de Portugal terão sentido impacto equivalente. “Pelo menos, não estamos a perder terreno para os nossos concorrentes”, comentou à VISÃO o porta-voz da APICCAPS (Associação Portuguesa da Indústria de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Sucedâneos).
Para este ano, a World Footwear prevê o início da recuperação do setor e um aumento do consumo de 2,8%. Recuperação lenta. Tão lenta, que só em 2023 se estima que sejam atingidos os níveis pré pandémicos. Mas ninguém sabe como se vai comportar o vírus e se vai continuar a baralhar os industriais. A única certeza parece ser a de que vai continuar a ser um ano de incerteza. “Há muita ansiedade. Não sabemos quando isto vai parar. As últimas noticias não têm sido muito animadoras na Europa e, tudo isto, acaba por mexer inevitavelmente com os mercados. Fazer planos a curto e medio prazo é impossível”, diz à VISÃO Luis Onofre, presidente da associação do setor.
Ancorado pelas ajudas ao lay off, o setor tem conseguido manter os seus cerca de 40 mil postos de trabalho. A ausência de festas, eventos, casamentos penalizou o salto alto, emprateleirou-o à espera de que cheguem os novos loucos anos 20. A moda ficou em stand-by, para dar lugar ao sapato confortável e desportivo.
Dusseldorf, na Alemanha, é, neste fim de semana e até terça-feira, palco da primeira feira do setor realizada desde há longos meses. Mas, inesperadamente, também é a região onde o número de contágios voltou a aumentar. Estarão presentes apenas 4 empresas portuguesas (alguns recorrendo a agentes locais) na Gallery Shoes, quando a representação costumava andar facilmente na casa da centena e meia. Todo o cuidado é pouco para quem teme que um novo confinamento pode ser fatal para o setor.
Quais são então os grandes desafios que os industriais portugueses de calçado enfrentam neste contexto? O que fazer para escapar à incerteza dos dias? Fomos saber junto dos responsáveis do setor, elencamos alguns, não necessariamente por ordem de importância.
Presença digital e vendas online
“Temos de nos afirmar nesta área”, defende Luis Onofre. “Temos uma oportunidade única para o fazer, o shopping online e o e-commerce acaba por ser transversal e acessível a todos os países. Temos é de saber colocarmo-nos bem e enfrentar as dificuldades que isso traz. Uma loja virtual, ao contrário do que possa parecer, é uma despesa brutal: cada clique é pago e o próprio google quando vê que estamos a subir ajuda, e, automaticamente, quando estabilizámos é o primeiro a descer-nos para nos fazer pagar mais para conseguirmos ter mais visualizações. Mas o comércio online veio para ficar. É um instrumento fantástico e mitigou um pouco as perdas da pandemia, que foram brutais.”
Acesso aos mercados
A reativação a 100% dos mercados tradicionais está dependente do evoluir da pandemia e do processo de vacinação. Mas quando for necessário regressar em força aos mercados, os industriais estão descapitalizados. “Precisaremos de instrumentos de apoio fortes, como seguros de crédito e reforço dos apoios à internacionalização”, avança Paulo Gonçalves. Mas também é necessário reequilibrar o comércio livre. “Qualquer país exporta livremente para a Europa. Já o calçado europeu, para chegar ao Brasil, China, Japão ou Estados Unidos enfrenta várias barreiras, tarifárias e não tarifárias”, diz o mesmo responsável.
Diversificar mercados
Num setor que trabalha para exportar “mais de 95% da sua produção”, com a Europa a ter “um peso muito expressivo”, será necessário encontrar novas alternativas nos mercados de destino. “Os EUA deverão ser a nossa prioridade. Mas mercados como a Austrália, China, Japão ou Rússia terão de ser uma aposta consistente”, aponta a APICCAPS.
Insistir, internamente, no ‘comprar português’ será outra via a não descurar. Pois “o mercado doméstico deve ser visto como uma oportunidade”. Luis Onofre apela: “Através de loja física ou online, temos de ajudar os nossos”.
Criar marcas próprias e valorizar o made in Portugal
O private label (produção, por subcontratação, para grandes marcas internacionais) tem sido o grande suporte da base industrial. Mas insistir na criação de marcas portuguesas que saltem fronteiras é imperioso. “É talvez o maior desafio de todos”, ressalva Luis Onofre. “Que as marcas portuguesas se possam afirmar a nível internacional de uma forma global. Que consigamos chegar a todos os mercados e continentes, com lojas próprias, online ou físicas. Mas que chegue ao público com um poder de persuasão ao cliente final e com uma identidade portuguesa.”
Por vezes, isto significa a inversão da prioridade dos investimentos. A Associação tem reforçado a necessidade de “valorização da oferta portuguesa, para ganhar escala e projeção internacional”. O apelo parece não estar a cair em saco roto. Em 2019 e 2020, foram investidos cerca de 3 milhões de euros na criação de marcas. Mas, nos primeiros meses deste ano, já foi investido igual valor – assegura a APICCAPS, que contabiliza a criação de mais de 300 marcas portuguesas na última década.
Sustentabilidade
Já era um desígnio em 2020, como se pode ver neste video, mas agora impõe-se mais do que nunca. Explorar novos modelos de negócio, que ajudem à rentabilidade, é um desafio constante, e a sustentabilidade é a grande oportunidade, além de poder tornar-se fator de diferenciação. Tanto na atividade produtiva, como no produto final. “É importantíssimo transformar o setor numa indústria verde, que entre na economia circular, que seja um exemplo não poluidor. É uma tarefa dantesca, mas em que podemos marcar a diferença. Mais dia menos dia, todos vão ter a consciência de que é das coisas mais importantes: lutar pelo planeta e pelo futuro dos nossos filhos. Os nossos industriais têm de ter isto em atenção. Também na confederação europeia conseguimos, em janeiro, uma grande vitória: a ausência total de embalagens plásticas no calçado. Green shoes for all”, congratulou-se o presidente Luis Onofre.
Digitalização da produção
Indústria 4.0, que mais não é do que a digitalização do processo produtivo, abre todo uma nova via de desenvolvimento e modernização. “Investir e desenvolver o calçado do século XXI, com novos materiais, novas soluções técnicas e design vanguardista, assumindo a capacidade de o fazer chegar rapidamente aos mercados externos e aproveitando a capacidade de resposta rápida, mesmo em pequenas séries”, elenca o porta-voz Paulo Gonçalves. “Aí seremos verdadeiramente líderes, porque apresentaremos argumentos ao alcance de muito poucos”, acredita.
Dar formação em áreas específicas da sustentabilidade, da produção digital ou da robotização quando a indústria está mais parada – ou por exemplo, com trabalhadores em lay off – é a sugestão que fica.
Atrair talento… sempre
É uma necessidade contínua. “Renovar os profissionais ligados à atividade produtiva para assegurar novas competências em áreas críticas como a gestão, o design, a área comercial ou a logística”, aponta Paulo Gonçalves. Aqui, abre-se caminho para atrair uma nova geração e integrá-la no mercado de trabalho.
O presidente Luis Onofre adianta que “é bom que sejamos os eternos insatisfeitos”. Mais concentrado na moda e no design, o estilista defende “os novos valores de designers com consciência ecológica e visão de um mercado internacional”. E assegura que, em conjunto com a Anivec – Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confeção, estão a tentar chegar a acordo para a criação de uma “escola internacional da moda, com cursos superiores dedicados única e exclusivamente ao design”. Na sua opinião, será “fundamental para a que a industria tenha futuro”.