Nasceu em Lisboa mas cresceu na ilha açoriana de São Miguel, onde não passavam comboios. Regressado à capital, tirou Engenharia Civil, trabalhou em obras públicas, mas voltou à academia para fazer um doutoramento sobre transportes. “Havia uma euforia em redor da alta velocidade e pensei em dedicar-me ao estudo da ferrovia”, explica Francisco Furtado, que acaba de publicar A Ferrovia em Portugal – Passado, Presente e Futuro (edição Fundação Francisco Manuel dos Santos). O livro foi o pretexto para uma entrevista sobre o estado atual dos caminhos de ferro, coesão do território, alterações climáticas, Greta Thunberg e também sobre o fascínio das grandes e pequenas viagens de comboio.
O investimento na ferrovia vai voltar a estar na ordem do dia? O discurso dos governantes parece ir nesse sentido…
Há sinais de uma inflexão. É a primeira vez, nas últimas décadas, que há mais investimento na ferrovia do que na rodovia. Contudo, não é totalmente verdade que a ferrovia tenha sido abandonada. Entre os anos 90 e o início do século XXI, houve um conjunto de investimentos e um esforço de modernização do setor, com a inauguração da Ponte de São João, no Porto, o comboio na Ponte 25 de Abril, a compra de novas locomotivas, a introdução do serviço Alfa ou a construção do terminal de mercadorias da Bobadela. Mas esse esforço de modernização foi cortado a meio, com a discussão e com os equívocos à volta da Alta Velocidade, e também com a crise severa que se instalou no País. Ficámos algumas décadas…
… a ver passar os comboios?
Exatamente. Até que surgiram sinais de vitalidade. Em 2019, tivemos o maior número de passageiros transportados do século XXI. É certo que “empurrado” pela reforma dos passes sociais, mas isso também nos diz que o setor tem de ser encarado de forma integrada. Há um grande aumento da procura, sobretudo nas áreas urbanas do Porto e de Lisboa, mas se a oferta conseguiu encaixar, em parte, esse aumento da procura, graças ao esforço de investimento feito no início do século, a partir de agora entramos num momento crítico: será que a ferrovia vai ser capaz de dar resposta a um aumento continuado da procura? Se não der resposta, as pessoas não vão aderir. Os serviços urbanos e suburbanos são absolutamente essenciais.
Mas não são bons, do ponto de vista dos passageiros. Carruagens degradadas, horários que não se ajustam à vida das pessoas, alguma insegurança…
Face ao aumento da procura, é preciso resolver os problemas. Mas a linha de Cascais funciona, a linha de Sintra funciona, a linha da Azambuja funciona, a Fertagus [que explora o comboio da Ponte 25 de Abril] funciona, e as pessoas utilizam esses serviços. Também não são o filme de terror como às vezes os pintam. Em França, há linhas suburbanas que pura e simplesmente encerram no verão. Isso não acontece em Portugal…
Pois não. Quando se encerram linhas, é de vez.
[Risos.] Mas não se encerram linhas suburbanas.
Pela primeira vez, há um contrato de serviço público entre o Estado e a CP, há um plano de investimentos [Ferrovia 2020] em curso, e há maior procura por parte tanto dos passageiros como das mercadorias. Quais devem ser as prioridades para o relançamento da ferrovia?
Nos serviços urbanos e suburbanos e na ligação Lisboa-Porto, já existe pressão da procura. Quanto melhor for a resposta, mais pessoas utilizarão o serviço. A prioridade é a Linha do Norte, uma espécie de coluna vertebral da rede, por onde passam mais de 700 comboios por dia para servirem duas áreas metropolitanas com cerca de cinco milhões de habitantes. Se conseguíssemos reduzir os tempos de viagem e aumentar as frequências do comboio, seria o ideal. Em Lisboa, o aeroporto está completamente congestionado, mas todos os dias são feitos dezenas de voos entre o Porto e Lisboa, o que é um contrassenso numa distância de apenas 300 quilómetros.
Foi no Interior que se encerraram linhas. Faz sentido a sua reabertura, em nome da coesão do território?
Nuns sítios não, noutros sim. Em Inglaterra, existe menos de metade das linhas que existiam no início do século XX. O mesmo acontece em Espanha, França e Itália. O desenvolvimento da ferrovia tem de ser integrado com outras políticas regionais. Só por si, não é uma solução milagrosa para a coesão do território. Mas há investimentos em curso. A Linha do Minho, que é uma linha transfronteiriça com enormes potencialidades para o tráfego de passageiros, ligando o Porto à Galiza, já está a ser eletrificada. Também está prevista a eletrificação da Linha do Algarve e a recuperação das linhas do Vouga e do Tâmega, até Amarante. E há outras que precisam de ser reavaliadas e pensadas, como a Linha do Douro, a Linha do Oeste ou o reforço dos serviços na região de Beja.
E novas ligações?
Vale a pena equacionar novas ligações como, por exemplo, a integração da Linha de Cascais com a Linha de Cintura. Na região do Porto, também seria de pensar num acesso a Felgueiras e a Paços de Ferreira. A Linha do Oeste é outra questão premente. Mas, num País com recursos limitados, as prioridades são as áreas metropolitanas (incluindo as linhas do Vouga e do Tâmega) e a Linha do Norte.
Antes da crise, Portugal ponderou a construção de cinco linhas de Alta Velocidade, nomeadamente ligando Lisboa a Madrid. Esses planos devem ser reequacionados?
Não nesses moldes. O projeto era completamente desajustado da realidade. No caso da ligação Lisboa-Porto, claro que precisamos de diminuir os tempos de viagem e de aumentar as frequências. Um comboio Alfa a circular a 220 km/h sobre uma linha renovada já é alta velocidade. Por isso, insisto que a solução para Portugal passa pela modernização da Linha do Norte e pela construção de variantes – como se fez na Linha do Sul, com a variante de Alcácer – para separar os diferentes tipos de tráfego e encurtar a distância. Com um tempo de viagem entre Lisboa e Porto de duas horas, o comboio será muito competitivo em relação ao avião e à rodovia.
E a ligação a Espanha por Alta Velocidade? Já não é necessária?
O caminho de ferro não foi completamente abandonado. Está a ser construída em Portugal a maior linha dos últimos 100 anos, que é a ligação Évora-Elvas. Ela vai permitir uma boa ligação a Espanha, orientada – e muito bem – para as mercadorias, potenciando o porto de Sines e não só. Mas também poderá transportar passageiros, inclusive até à Estremadura espanhola (Badajoz, Mérida…). Como refiro no meu livro, as prioridades, no segmento das mercadorias, podem ser resumidas em três conceitos: portos, produtividade e ligação a Espanha. Se tiverem boa ferrovia, os portos portugueses podem conquistar mercado aos espanhóis. O futuro passa pela articulação entre portos ibéricos, mas sem esquecer que mais de 80% do tráfego de mercadorias ainda é interno. É assim desde 1856. A primeira ligação construída em Portugal foi a Linha do Leste, até Espanha, mas a que registou sempre maior procura, tanto por parte dos passageiros como das mercadorias, foi a Linha do Norte.
De onde virá o dinheiro para o desenvolvimento da ferrovia?
No setor das mercadorias, os dois operadores privados – Medway [resultante da privatização da CP Carga] e Takargo – têm feito os seus próprios investimentos porque apresentam receitas operacionais acima das despesas operacionais. Precisam do Estado, para a construção da nova linha Évora-Elvas, mas investem em material circulante. Agora, é um setor que requer estabilidade na prossecução de políticas e exige um planeamento de longo prazo, porque a ferrovia não é só o carril ou o comboio. Todas as componentes – material circulante, infraestrutura e serviços – têm de estar muito bem articuladas. Os investimentos demoram anos a realizar-se, e por isso tem de haver um consenso muito alargado, que ultrapasse a duração de uma legislatura.
E quanto ao tráfego de passageiros?
Aí, estamos a falar de serviços públicos, pelos quais teremos de pagar. O plano Ferrovia 2020 tem dois milhões de euros, metade dos quais são fundos comunitários. Mas um dos grandes desafios é encontrar fontes de financiamento alternativas. O planeamento da ferrovia entronca com a ocupação e o uso dos solos. As zonas circundantes às estações devem ser zonas de densa ocupação habitacional e comercial. E podem também ser uma fonte de financiamento. Vou dar um exemplo: no Japão, a companhia ferroviária desenvolve projetos imobiliários sempre associados às estações, realizando enormes receitas. Em Hong Kong, o metro dá lucros fabulosos graças ao imobiliário. Em França, os empregadores pagam uma taxa de mobilidade para financiar os serviços públicos de transportes. Em Inglaterra, está em curso um grande projeto chamado Crossrail, na zona de Londres, que será pago pelo imobiliário. Em Portugal, a Expo’98 foi, em parte, financiada pelo desenvolvimento imobiliário. Na Estação de Santa Apolónia, está a ser instalado um hotel. Alguma coisa já está a ser feita, é só continuar.
Que modelos defende para a ferrovia? O Estado deve ser dono de tudo? Ou deve privatizar, concessionar, celebrar parcerias?
Na Suíça, na Áustria e na Holanda, até mesmo na Alemanha, onde o transporte de passageiros funciona bem, existe um operador público que estrutura o setor através do fornecimento de vários tipos de serviços, às vezes em conjunto com privados. Pelo que vejo lá fora, e defendo no livro, não há dúvidas de que a infraestrutura deve ser do Estado. Na operação e no fornecimento do serviço, deve haver um operador público, estruturante, para reter o know-how e a capacidade de investimento no País.
Mas devem existir linhas geridas por privados?
Em Portugal, o comboio da Ponte 25 de Abril é assegurado há 20 anos por um concessionário privado. Se houver operadores que queiram oferecer serviços comerciais, devem poder entrar. Mas não deve ser feito de forma artificial, como se fez nas PPP. O Estado não deve criar condições artificialmente, acabando por ter de suportar custos indiretos para financiar serviços privados.
Mudando a bitola da conversa, o que representa, para si, a atitude da ativista sueca Greta Thunberg quando opta por viajar de comboio?
É simbólica – até podia dizer folclórica –, mas também é uma enorme mais – valia que não pode ser desprezada. A discussão sobre alterações climáticas e independência energética não é um exclusivo da Greta. Há umas semanas, a Comissão Europeia lançou o Green Deal Europeu. Estamos a falar de uma reconversão da indústria para se tornar mais competitiva e ter um papel de liderança na transição para uma economia descarbonizada. Nisso, o caminho de ferro é central. Uma das grandes vantagens da ferrovia é ter baixas emissões de carbono ou até mesmo emissões zero, quando a eletrificação está associada às energias renováveis – e Portugal dá cartas na produção de energias renováveis. Depois, temos a Greta, que não é por acaso que vem da Suécia. A Suécia é o país da Europa cuja economia está mais descarbonizada. Há interesse em empurrar esta transição. A Greta dá grande importância ao movimento “flight shaming” [vergonha de voar], com muito impacto nos países nórdicos, onde o comboio começa a ser procurado como alternativa ao avião.
Qual a melhor viagem de comboio que já fez?
Não foi uma, foram várias. Uma viagem Lisboa-Porto no Alfa é uma excelente viagem. Durante anos, trabalhei em Tomar, ia sempre de comboio. Numa onda mais romântica, fiz Lisboa-Vila Real, o que hoje seria impossível porque parte da Linha do Douro foi abandonada. Não foi uma viagem funcional, mas gostei bastante. Também foi interessante a viagem no Eurostar entre Paris e Londres, atravessando o Canal da Mancha em duas horas e pouco, com muito mais conforto do que num avião. Chegar ao aeroporto de Paris ou de Londres, fazer o check-in, passar pela segurança, seria só por si um horror. Ainda falamos do Montijo… Mas sabe que numa dessas viagens o comboio atrasou-se? [Risos.] Tivemos de ficar à espera em Londres, com pessoas sentadas no chão… Portugal, afinal, não é o fim do mundo.