Portugal tem um velho problema de identificação de terrenos. Há 100 anos que se tentava fazer o cadastro de propriedades, com resultados pouco satisfatórios. Um défice de conhecimento que é mau para os proprietários e é trágico para o Estado e para qualquer plano de ordenamento do território. Os fogos de 2017 tornaram o problema ainda mais urgente. Nesse mesmo ano, o governo criou o Balcão Único do Prédio (BUPi) e, com ele, um algoritmo inovador que permite a identificação automática de terrenos. Uma ajuda importante para os proprietários mais velhos e não só. Em dez concelhos-piloto, onde o registo da área era inferior a 3%, o progresso foi enorme. Em pouco mais de um ano, saltou para mais de 50%. Correu tão bem que o Governo decidiu alargar o programa ao País inteiro e diferentes países e organizações internacionais quiseram inspirar-se nele.
“Tradicionalmente, era necessário um trabalho gigantesco para registar propriedades. Ir de município em município, acompanhar técnicos ao terreno… Acabava por ser caríssimo”, explica à VISÃO Pedro Tavares, técnico especialista na Secretaria de Estado da Justiça, que acompanhou de perto o projeto. “Tínhamos informação das Finanças, de fundos comunitários, de apoios à agricultura e de fontes privadas. O algoritmo que criámos é capaz de cruzar toda essa informação e tornar o processo dedutivo. Isso permitia oferecer às pessoas sugestões acerca de onde está o terreno.”
Caracterizado por vezes como uma instituição passiva que absorve os recursos de famílias e empresas, o Estado vai dando contributos inovadores para melhorar a vida dos cidadãos. Invenções cruciais como a internet e o GPS nasceram no setor público, que também deu um empurrão importante ao desenvolvimento da Google, da Apple e da Tesla, lá fora. Em Portugal, o BUPi permitirá “uma melhor noção do território e capacidade de planeamento florestal, por exemplo, na prevenção de incêndios”, espera Pedro Tavares.
Talvez o caso mais famoso de inovação de serviços do Estado seja a criação das Lojas do Cidadão. A ideia de se deslocar de repartição em repartição pode parecer uma memória longínqua, mas era a realidade até 1999, quando o governo decidiu juntar serviços públicos e privados no mesmo espaço, com as mesmas orientações e os mesmos sistemas de informação. Outra inovação que damos hoje por garantida é do Cartão de Cidadão. Outros avançaram ao mesmo tempo com soluções semelhantes, mas não tinham um obstáculo que Portugal teve de contornar: a Constituição proíbe a existência de um número nacional único para todos os cidadãos. Foi necessário criar uma estrutura comum para todas as entidades trabalharem em conjunto, sem troca de informação. “Foi revolucionário. Fomos um exemplo em todo o mundo”, recorda Pedro Tavares. E as pessoas deixaram de ter a carteira cheia de cartões.
Do lado das Finanças, tem sido feito um esforço para reduzir a evasão e simplificar o pagamento de impostos. Não é totalmente desinteressado: o Estado procura sempre maximizar a receita. Mas fazer com que o processo totalmente digital, com pré-preenchimento das declarações, foi uma inovação importante que tornou menos penoso um dos momentos mais amargos do ano.
Há outros exemplos, muitos deles nascidos do famoso Simplex: da não necessidade de renovar matrículas, da marcação de consultas online até à criação da Empresa na Hora e à identificação automática da localização das chamadas para o 112. Portugal tem uma boa pontuação no indicador eGovernment Benchmark da Comissão Europeia. Há apenas seis países à sua frente e quase todos têm progredido mais lentamente. É o segundo melhor na disponibilização de serviços online. A nível mundial, os dados das Nações Unidas são menos simpáticos, mas ainda colocam Portugal no 29º lugar.
Olear as engrenagens
Esse é o primeiro nível de influência do Estado, mas é apenas uma pequena parcela. Em Portugal, o setor público funciona como o carvão que alimenta direta e indiretamente o motor da inovação. Além dos serviços que nascem no coração da Administração Central, os fundos públicos suportam universidades e institutos que promovem mudanças tecnológicas, e não faltam mecanismos de apoio a novas empresas privadas.
“Se não fossem os programas do Estado, quase não haveria parcerias com empresas”, reconhece Marcelino Pousa, investigador do Instituto de Telecomunicações (IT). O IT é um bom exemplo. Tecnicamente, é uma “organização privada sem fins lucrativos de interesse público”, mas utiliza infraestruturas públicas, e os fundos privados constituem uma percentagem baixa do seu financiamento (10% a 20%). A maior parte vem da FCT e, depois, de fundos comunitários. “O Estado é fundamental e somos mais dependentes dele do que outros países. Não temos assim tantas empresas que invistam em tecnologia da linha da frente”, acrescenta Pousa.
Organizações como o IT são decisivas para o ecossistema de inovação, como mostram os dados enviados à VISÃO pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) acerca das entidades mais inovadoras na esfera pública. Classificados como “organismos do Estado”, há dois que se destacam: o já referido IT e o INESC. Cada um deles tem 88 e 87 patentes publicadas. Em terceiro lugar aparece o Instituto de Medicina Molecular, com 54, seguido pelo INETI, com 51. No total, são 558 patentes, espalhadas por 22 entidades.
Mesmo quando a inovação não sai destes organismos, é muitas vezes lá que é colocada a semente. Foi esse o caso da Vision-Box e da sua tecnologia de identificação, primeiro utilizada no passaporte eletrónico, e que hoje é a referência mundial nos sistemas de controlo automatizado de fronteiras. O projeto começou no INETI. “Quem é que em Portugal tinha essa tecnologia?”, questiona António Bob Santos, administrador da Agência Nacional de Inovação. “Dois investigadores que tinham trabalhado no laboratório público fundaram a empresa. Hoje, equipa 80 aeroportos.”
A influência do Estado fica mais clara se incluirmos o Ensino Superior. O Instituto Superior Técnico é o que tem mais patentes publicadas (528), seguido pela Universidade do Minho (445), pela Universidade do Porto (384) e pela Universidade de Aveiro (362). Quanto a politécnicos, o líder destacado é o de Leiria, com 120 patentes.
No ano passado, os institutos de investigação representaram 5% dos pedidos de patentes de invenção e as universidades, 15%. O resto do bolo é composto por empresas (38%) e inventores independentes (42%). Porém, no top 10 de entidades com mais pedidos feitos em 2018 está apenas uma empresa privada, a Bosch. O ranking é dominado por instituições do Ensino Superior. “Essas percentagens de organismos públicos e universidades são muito significativas. Este Estado inovador é muito importante para darmos o salto”, explica Ana Bandeira, presidente do INPI, instituição responsável por assegurar e promover os direitos de propriedade industrial.
O pedido de patentes procura garantir retorno a quem investe na tecnologia que está na sua base. Portugal tem uma relação bipolar com este sistema. Por um lado, somos um dos países líderes na Europa no registo de marcas, à frente de França, Reino Unido e Alemanha. Por outro, nas patentes de invenção – as mais apetecíveis – estamos na cauda da Europa. Porquê? “Temos um tecido empresarial de pequenas empresas, de comércio e serviços. É mais fácil registar marcas”, acrescenta Ana Bandeira. Mas também há um problema de mentalidade. Como reconhece a presidente do INPI, “não é instintivo para as empresas portuguesas patentearem tecnologia”.
Força da Academia
As universidades são decisivas, mesmo quando o resultado dessa inovação se manifesta no privado. Um caso exemplar disso mesmo é a história de Susana Sargento. A tecnologia que desenvolveu nasceu de um projeto de investigação das universidades de Aveiro e do Porto, financiada com fundos do Estado e, mais tarde, da União Europeia e que acabou por se materializar comercialmente na empresa Veniam.
Hoje, a Veniam tem 150 patentes e tecnologia que permite a um automóvel verificar dez vezes por segundo que redes estão disponíveis e evitar falhas de comunicação. Um avanço importante, numa momento-chave para o desenvolvimento de carros autónomos, mas que, no início da década, recebia menos atenção. “Seria impensável na altura em que começámos, em 2010, haver empresas privadas interessadas em brincar com tecnologias de comunicação de carros”, diz Susana Sargento.
Essa é uma das vantagens dos setores público e académico: a capacidade de apostar em áreas que não trarão necessariamente resultados no curto prazo nem garantias de, um dia, darem sequer dinheiro. “A grande diferença é a liberdade. Podemos trabalhar naquilo que queremos, desde que consigamos ter financiamento. No privado temos de pensar naquilo que o cliente quer e pode ser menos inovador”, acrescenta a investigadora. Ou seja, muitas vezes o curto prazo predomina, e isso não traz necessariamente a solução mais inovadora.
Ao longo dos últimos anos, “houve mais necessidade de recorrer ao mercado, seja com empresas privadas, startups ou spin-offs de projetos de universidades”, nota Bob Santos. Além da Veniam, lembra que “a Critical Software veio da Universidade de Coimbra”. Neste campo, os exemplos mais citados são a Via Verde (inovação portuguesa nunca patenteada) e o portal Sapo, ambas com raízes na Universidade de Aveiro.
A patente portuguesa mais lucrativa também tem origem no mundo académico e envolve uma forma inovadora de melhorar a eficiência de conversão de energia solar em elétrica. Aquilo que começou como um projeto de doutoramento na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto obteve o apoio de fundos comunitários e, com a colaboração da EFACEC, foi vendido a uma empresa australiana por cinco milhões de euros.
Entretanto, a faculdade já tem outros projetos no forno, com potencial comercial ainda maior. O trabalho da investigadora Helena Braga com o recém-galardoado Nobel da Química John Goodenough resultou no desenvolvimento de baterias em estado sólido, que podem constituir uma nova geração de baterias. “Trabalhamos de forma livre em áreas disruptivas, que podem só ter impacto daqui a 20 anos. Há muitas coisas que nem sequer saem do laboratório. Muitas vezes isso é incompatível com os interesses das empresas”, refere Pedro Coelho, responsável pela Unidade de Apoio à Investigação e Inovação da FEUP.
Ainda que as universidades hoje sejam mais autónomas, “a verdade é que é um ecossistema de inovação suportado pelo Estado”, acrescenta. “As empresas estão a investir em I&D com fundos comunitários ou incentivos fiscais. Mesmo os fundos privados não o são bem, como é o caso da Portugal Ventures. Os business angels que atuam em Portugal fazem-no enquanto o Estado está presente e assume o risco.”
De facto, além de puxar pela inovação no setor público (ou adjacente ao público), o Estado assume também a tarefa de estimular o nascimento e o desenvolvimento de empresas privadas. É o seu nível final de influência. A lista de apoios é enorme e bastante virada para startups, com linhas de crédito, incubadoras, assunção de risco, etc. “O Estado tem um papel importantíssimo no seu apoio ao sistema empresarial, e os estudos dizem que as políticas públicas portuguesas são bastante completas, muito alavancadas em fundos estruturais, e que têm ajudado as empresas a adotar tecnologias recentes e novos modelos de organização”, explica Manuel Mira Godinho, professor catedrático do ISEG e especialista na área da Inovação.
Além disso, o Estado também cria mercados. Isso aconteceu, por exemplo, na mobilidade elétrica. “Havia um objetivo político de desenvolver a mobilidade sustentável, portanto criou-se uma rede nacional de veículos elétricos e foram contratados privados que desenvolveram tecnologia para responder aos objetivos do Estado”, nota Bob Santos. “Hoje, esses privados exportam essa tecnologia para fora.”
Reabilitar o Estado
Até à viragem do século, as empresas eram apenas o terceiro maior investidor em I&D, com 22% dos gastos. Hoje, já rondam os 50%, mas à escala europeia há poucos países com valores tão baixos (a média da UE é 2/3). O Estado perde relevância desde os anos 80, com as universidades portuguesas a terem o segundo maior peso da Europa (43%). Mas estes dados podem ser enganadores. Quem gasta não é necessariamente quem paga. E, pelo menos até 2010, o Estado – através de universidades, empresas e outras organizações – era ainda o principal financiador de investigação em Portugal. “Houve uma intervenção pública nas últimas décadas, com um grande investimento no sistema científico e na formação”, afirma o professor do ISEG Mira Godinho. “Hoje, as universidades estão razoavelmente bem equipadas, com produção científica na média da UE. Isso também se repercute no sistema empresarial.”
O debate acerca do papel do Estado regressou em força e poucas pessoas terão contribuído mais para isso do que Mariana Mazzucato. Entrevistada há poucos meses pela VISÃO, a professora de Economia da Inovação no University College London defende que as histórias têm peso e que, durante 40 anos, a narrativa vencedora alegava que o Estado só tinha de sair do caminho do privado. “Esta ideia de que [o Estado] está lá apenas para administrar e regular é relativamente nova”, explica. “Alguns dos gestores de topo queriam trabalhar em instituições públicas. Hoje, quem vai trabalhar para o setor público, em vez da Goldman Sachs ou da Google, é visto como um falhado.”
Nos seus livros, Mazzucato desmonta estes preconceitos e dá vários exemplos de invenções e empresas que vemos como conquistas da iniciativa privada mas que talvez não existissem sem apoio público. É o caso da internet, do GPS, do touchscreen, até da Siri – ela costuma dizer que “todas as coisas que tornam o iPhone inteligente foram financiadas pelo setor público” –, o rato ou o airbag. A Apple e a Tesla receberam apoios do Estado, assim como desenvolvimento do algoritmo da Google. E, historicamente, o setor da Defesa é o laboratório de desenvolvimento de muita tecnologia que depois habita e molda o espaço civil.
Isto não significa que não haja muitos problemas na trincheira pública. Falta de eficiência e risco de corrupção são críticas frequentes. Na área da inovação, há muito para fazer. “É preciso melhorar o financiamento. As propostas demoram demasiado tempo a serem aprovadas”, refere Susana Sargento. Maior agilidade é também o que muitos pedem na contratação de doutorados, uma área em que a gestão do governo anterior foi muito criticada.
Para Mira Godinho, embora o Estado tenha cumprido o seu papel de auxílio às empresas, não foi bem-sucedido na criação de um ambiente onde a inovação possa florescer sem a sua intervenção. Um pouco como aquela história de dar o peixe vs. ajudar a pescar. “Temos uma produção científica algures entre o Reino Unido e a Alemanha, mas estamos muito atrás na emissão de patentes. E, embora tenhamos dado o salto de uma economia de baixa tecnologia para média, não chegámos à alta tecnologia.”
Talvez a crítica mais estrutural tenha de ver com falta de ambição. “Vê-se o Estado de forma muito instrumental, mas devia ter uma intervenção mais estratégica junto dos privados. Olhar a 10, 20, 30 anos. Falta essa visão.” Ao Estado e às empresas.
Inovação nacional
Algumas das inovações promovidas pelo Estado português nos últimos anos
BUPi
O Balcão Único do Prédio chegou acompanhado de um algoritmo que sugere aos proprietários a localização dos seus terrenos, através do cruzamento de fontes de informação. Nos dez concelhos-piloto, a identificação do território saltou de 3% para 50% em ano e meio. Além de dar mais segurança aos proprietários, este conhecimento permitirá melhorar o ordenamento do território, com consequências, por exemplo, na prevenção de incêndios.
Lojas do Cidadão
Quando muda de casa ou perde a carteira, deixou de ter de ir a cinco repartições públicas diferentes para resolver tudo. As filas não desapareceram, mas passou a ter todos os serviços públicos – e também muitos privados – concentrados num só local, organizados da mesma forma e partilhando sistemas de informação. As primeiras Lojas do Cidadão foram inauguradas em Lisboa e Porto, em 1999. Hoje existem no País perto de 60, a que se somam mais de 600 Espaços do Cidadão.
Cartão de Cidadão
Fomos um dos primeiros países a juntar todos os cartões num só, mas tínhamos um obstáculo adicional. Como a Constituição da República Portuguesa proíbe a criação de um número nacional único, o mecanismo criado tinha de permitir a existência de uma estrutura comum, mas sem troca de informação. Com ele pudemos reduzir o número de cartões e, mais tarde, receber a chave móvel digital, que permite a autenticação em sites públicos e privados.
Orçamento participativo
Não é uma inovação tecnológica, mas é uma forma diferente de gerir os recursos do País. Portugal criou o primeiro orçamento participativo do mundo a nível nacional, pretendendo estimular a participação democrática. Curiosamente, no ano passado, dois dos três vencedores defendiam projetos antagónicos: um queria promover as touradas, outro a sua abolição.
Inovação internacional
Os exemplos internacionais são mais impressionantes, beneficiando dos amplos recursos do Governo dos EUA
Internet
O pai da internet é a ARPANET, um programa dos anos 60, financiado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América, que permitiu o envio da primeira mensagem em 1969. Vinte anos depois, o cientista inglês Tim Berners–Lee inventaria a World Wide Web e, em poucos meses, o primeiro servidor e browser. Fê-lo enquanto trabalhava para o CERN, instituto financiado com dinheiro dos contribuintes europeus.
GPS
O GPS partiu de uma iniciativa do Departamento de Defesa dos EUA para melhorar a coordenação e a eficácia do posicionamento das forças militares. Em 1983, a União Soviética disparou sobre um avião civil sul-coreano que tinha entrado no seu espaço aéreo, o que motivou a Administração Reagan a permitir a utilização civil do GPS por todo o mundo. A sua manutenção chega a custar mais de mil milhões de dólares por ano ao Governo norte-americano.
Touchscreen
Foi Steve Jobs que ficou famoso por declarar que “à frente, só há um botão”, referindo-se ao iPhone. Mas a tecnologia touchscreen foi criada por um doutorando da Universidade de Delaware. Outra inovação do smartphone da Apple, a Siri, tem raízes num projeto de Inteligência Artificial financiado pela DARPA, que fazia também parte do Departamento de Defesa dos EUA.
Airbag
Não foi o airbag propriamente dito, mas “as tecnologias que tornaram o airbag uma realidade nos anos 70 – aquelas que permitiram que um aparelho registasse uma colisão e inchasse mais depressa do que um piscar de olhos – vieram todas de investigação anterior na área militar e espacial, financiada pelo Estado”, explicou Mazzucato ao blogue das TED Talks.