É mais do que o que custa pagar a todos os funcionários públicos, praticamente o mesmo que todas as funções sociais do Estado e mais do dobro daquilo que a China Three Gorges está a oferecer pela EDP e EDP Renováveis. Dar aos portugueses 200 euros todos os meses, e sem contrapartidas, custaria €25,3 mil milhões por ano.
Esta estimativa de aplicação de uma versão minimal do Rendimento Básico Incondicional (RBI) foi feita por Pedro Alexandre Teixeira – doutorando do Instituto Otto-Suhr de Ciência Política (Universidade Livre de Berlim) e investigador da Universidade do Minho – que fez as primeiras contas mais aprofundadas sobre as possibilidades de financiamento de uma medida deste género em Portugal. Num artigo que ainda está em processo de revisão, o autor conclui que mesmo um RBI de montante relativamente baixo custaria 25,3 mil milhões de euros, mas, se considerarmos as poupanças conseguidas com outros apoios sociais – que seriam substituídos por esta prestação –, o custo descerá para €16,2 mil milhões.
O debate sobre o rendimento básico tem-se centrado nos seus possíveis méritos e fragilidades, mas normalmente com poucos números para sustentar o debate. Estes valores mostram que, mesmo que haja vontade política para avançar, será um desafio encontrar fontes de financiamento que permitam pagá-lo.
À VISÃO, o autor lembra que ainda o Estado Social era um embrião e já havia quem argumentasse que era impossível pagar esses apoios. Hoje, os países mais desenvolvidos do mundo têm arquiteturas complexas e dispendiosas das quais não abdicam. “É uma discussão que tende a surgir sempre que o Estado foi alargando as suas competências sociais”, sublinha Pedro Alexandre Teixeira, acrescentando que isso, “do ponto de vista estritamente económico, é possível”. Ainda assim, admite que “seria muito difícil” justificar politicamente um reforço de mais de €16 mil milhões em impostos pagos pelas famílias e empresas portuguesas. Por comparação, isso é mais ou menos a quantia que o Estado arrecada por ano com o IVA.
E mesmo que se encontrasse um modelo viável de financiamento, €200 por mês não cumpre um dos objetivos centrais do RBI: assegurar o mínimo necessário para uma vida digna. Se quisermos ser mais ambiciosos e ter um programa mais eficaz, a dimensão do problema financeiro torna-se ainda mais evidente. Um rendimento básico de €420 por mês para todos os portugueses custaria mais de €53 mil milhões (€37 mil milhões se contar com a extinção de outros apoios sociais). E se fôssemos até aos 1000 euros/mês? Bom, nesse caso, estaríamos a falar de um gasto “bruto” de €126 mil milhões. O equivalente a quase 150% (!) da despesa pública total deste ano.
Licenciado em Economia, Pedro Teixeira não dá uma receita definitiva sobre como cobrir estes valores, mas os seus cálculos mostram que fazê-lo exclusivamente através do IRS será muito complicado num País cuja estrutura de rendimentos dita que 13% dos agregados familiares são responsáveis por 80% da receita desse imposto. Qualquer solução implicaria provavelmente uma mistura de opções: integrar o RBI em todas as prestações da Segurança Social e da CGA; rever as isenções e deduções à coleta, assim como as taxas marginais de IRS, aliviando os escalões intermédios, e procurar novas formas de financiamento que podem passar por impostos sobre o consumo, transações financeiras, património, grandes fortunas ou impostos “ecológicos”.
O que é o RBI?
Mas afinal em que consiste o Rendimento Básico Incondicional? É uma ideia simples mas radical. Criar uma transferência regular do Estado para todos os cidadãos, independentemente do seu rendimento ou situação profissional, que lhes permita ter uma vida digna. Nada tem de ser dado em troca. Em parte, o objetivo é garantir segurança financeira às famílias com mais dificuldades, mas o facto de se estender o cheque também a pessoas que estejam a trabalhar, e que até tenham salários razoáveis, poderá revolucionar a nossa relação com o trabalho, quebrando a ligação histórica do mesmo com a obtenção de rendimento. Algo que será ainda mais útil se comprarmos a tese de um futuro com escassez de trabalho, devido à vaga de robotização que muitos defendem estarmos a viver.
Os defensores do conceito notam que um programa deste género teria a vantagem de oferecer uma saída para a armadilha da pobreza e da estigmatização em que muitas famílias estão presas. Sem serem obrigados a trabalhar para viver, os cidadãos de um país com RBI poderiam encarar com mais tranquilidade momentos de transição entre empregos, dar mais atenção a ações de voluntariado e a atividades domésticas. As relações familiares – do cuidado de crianças aos idosos – também teriam potencialmente mais espaço e mais tempo.
O RBI tem conquistado popularidade em alguns meios académicos, com apoio à esquerda e à direita. Essa é uma das curiosidades do conceito. Pessoas com conceções muito diferentes de Estado apoiam-no por motivos diferentes. Uns veem no RBI um instrumento de combate à desigualdade, outros gostariam que ele servisse de caminho de liberdade individual que permitisse dispensar o Estado da obrigação de prestar certos serviços nas áreas da Educação, Saúde ou apoio social. Alguns dos mais fervorosos apoiantes do RBI estão em Silicon Valley, como é o caso de Mark Zuckerberg e de Elon Musk.
Ricardo Arroja está na trincheira da direita que vê méritos na ideia, numa perspetiva liberal. Num artigo publicado no Eco, o economista sublinha três vantagens na criação do RBI: “A primeira é o princípio da liberdade individual, a primazia do indivíduo sobre o Estado; a segunda, o princípio igualitário, todos têm direito a uma fatia igual dos recursos acumulados pela sociedade ao longo de várias gerações; e a terceira é a possibilidade de o RBI se assumir como alternativa ou, ao invés, como complemento ao Estado Social.”
As críticas são tão transversais ao espectro político como os elogios. Mais à direita, teme-se que o RBI desincentive a procura de trabalho e arrase a produtividade do País. À esquerda, o receio é que acabe por representar um cavalo de Troia que abra as portas ao desmantelamento do Estado Social. Para os sindicatos e outras formas de representação coletiva, a questão é ainda mais complexa. O trabalho tem sido a principal arena de combate social. O que acontece se desaparecer?
Manuel Carvalho da Silva está convencido de que esse cenário é pouco provável. “O trabalho tem uma função de integração na sociedade e de socialização”, refere o antigo líder da CGTP que, como outras pessoas no seu espaço ideológico, não leva a sério o rendimento básico. “É um idealismo absoluto pensar que uns vão trabalhar e outros não, mas que todos vão conviver de forma pacífica. É uma ilusão total”, diz à VISÃO. A reflexão e estudo de novos modelos sociais é importante, mas não nos devemos esquecer do que se passa à nossa volta. “Procuremos dar espaço a todos os cenários imagináveis, mas a vida é dar resposta a um presente contínuo”, alerta Carvalho da Silva.
Caro e pouco eficaz?
No seu estudo, Pedro Alexandre Teixeira assume aquilo que se poderia chamar um RBI “de esquerda”. Isto é, não admite que haja um recuo da presença do Estado na economia. Como seria de esperar, essa opção coloca uma pressão maior sobre o financiamento da medida. O custo estimado e referido anteriormente – €25 mil milhões – ilustra bem essas dificuldades.
E o próprio autor reconhece que talvez haja formas mais eficazes de cumprir alguns dos objetivos de alívio das desigualdades, por exemplo, através da expansão de programas sociais já existentes, como o Rendimento Social de Inserção (RSI), tanto em dimensão como em elegibilidade. “Eu prefiro essa solução. O RBI talvez não seja a política social mais desejável, mesmo para quem queira expandir o Estado Social”, explica.
Essa perspetiva está em linha com as conclusões do FMI num relatório publicado no final do ano passado. Segundo as contas do FMI, os países mais desenvolvidos são aqueles que têm menos a ganhar com um rendimento básico. Fica caro e pouco reduz a desigualdade. “É improvável que o RBI seja um substituto eficaz” de outros programas, conclui.
Exemplo do Alasca
O facto de nenhum país aplicar um RBI pleno dificulta a avaliação do seu impacto. No entanto, as experiências aproximadas que temos disponíveis não parecem apontar para consequências desastrosas, do ponto de vista da participação laboral.
rovavelmente, o exemplo mais próximo é o Fundo Permanente do Alasca que, há quase quatro décadas, distribui anualmente dividendos aos residentes do Estado, num valor que pode chegar a €160 por mês. A análise ao impacto do mesmo não parece detetar mudanças significativas no mercado de trabalho, embora se tenha registado uma transferência para empregos em regime de part-time. Ainda assim, estamos a falar de valores baixos. Quantias mais elevadas poderiam ter outro efeito.
Tal como os €200 das simulações de Pedro Teixeira, os 160 dólares do Alasca não chegam para uma família viver. E já vimos que, quando metemos mais carvão na fornalha, os custos vão-se tornando mais intoleráveis, pondo a nu as dificuldades de financiamento de qualquer RBI que faça diferença no bolso das famílias – ou, como sublinhava Luke Martinelli num texto sobre a possível aplicação do RBI no Reino Unido, “um RBI comportável não é adequado, e um RBI adequado não é comportável”.
Argumentos a favor
Dar a todas as famílias os recursos financeiros necessários para uma vida digna. A preparação para um mundo onde o trabalho será escasso, fruto da robotização. A rutura com a ligação entre trabalho e rendimento, libertando as pessoas para outras atividades. Acabar com o estigma e a armadilha da pobreza. Para os liberais, a valorização da liberdade individual e a possibilidade de substituir funções do Estado.
Argumentos contra
De uma perspetiva conservadora, o receio é que se crie um enorme desincentivo à procura de emprego e haja um rombo na capacidade produtiva do país. Para alguma esquerda, teme-se a perda de peso do trabalho como elemento central da arena política e que o RBI abra a porta ao desinvestimento nas funções sociais do Estado. Os dois lados concordam que é uma medida difícil de financiar.
(Artigo publicado na VISÃO 1318 de 7 de junho)