1 – A resolução do BES não foi decidida numas horas
A 3 de Agosto de 2014, eram usados os poderes públicos para ‘resolver’, de uma forma ordeira, a situação de um banco falhado e evitar o colapso do sistema financeiro. Era o fim do BES como o conhecíamos. Carlos Costa passou sempre esta mensagem: a resolução foi decidida numas horas entre o dia 31 de julho e o dia 1 de agosto. Factos que o contradizem: o processo junto da Direção Geral da Concorrência da Comissão Europeia (DG COMP) foi registado no dia 30. Quatro dias antes, o BNP Paribas foi contratado para ajudar o Banco de Portugal num processo de resolução de uma instituição de crédito. Que outra instituição estava em apuros em julho de 2014?
O governador do Banco de Portugal (BdP) nunca descolou desta versão: o BES acabou porque apresentou prejuízos históricos que o deixavam sem acesso a financiamento do Banco Central Europeu (BCE). Perante esses constrangimentos, o plano da resolução terá sido pensado na noite de 31 de julho para 1 de agosto (de quinta para sexta-feira) e tudo terá sido decidido até dia 3, data em que foi feito o anúncio público de que o BES iria ser dividido num banco bom e num banco mau. Seria possível negociar com o BCE, fazer alterações à medida na legislação e resolver um banco em 24 horas? Vamos a factos.
A 26 de julho de 2014, o BdP contratou o BNP Paribas para prestar “serviços de consultoria e assessoria em processo de resolução de instituição de crédito”: o contrato foi assinado em abril de 2015 com efeito retroativo a 26 de julho. Três dias depois, a 29 de julho, o BdP fez um ultimato ao BES: o banco tinha 48 horas para apresentar um plano de capitalização. As regras do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras ditam que a resolução só pode ser feita depois de tentada a aplicação de outras medidas. E o “Guia para a Resolução de Bancos-demasiado-grandes-para-falir”, do Banco de Pagamentos Internacionais (BIS) o banco dos Bancos Centrais, dita que uma resolução deve ser desenhada enquanto se comunica ao mercado que o banco está sólido e concluída durante o fim de semana (quando os mercados estão fechados). A 31 de julho de 2014 foi aprovada uma alteração ao Regime Geral das Instituições de Crédito, decidida no maior dos sigilos em Conselho de Ministros. A alteração viria a ser promulgada pelo presidente da República logo no dia seguinte. Mas, a 30 de julho, e como o Estado precisava de autorização da Comissão Europeia para conceder auxílio a um banco de transição (Novo Banco), foi registado o início do processo junto da DG COMP. O site desta instituição europeia revelou a data de registo do início do processo, depois ocultou-a.
2 – Banco de Portugal travou reembolso dos lesados
O Banco de Portugal (BdP) foi a única parte que bloqueou o reembolso dos chamados lesados do BES. Carlos Costa alega que o investimento era de risco e que uma nova entidade administrativa (Novo Banco) não pode assumir responsabilidades que não são suas. O problema é que durante meses o supervisor passou a mensagem contrária: que era preciso pagar a todos os clientes de retalho que investiram em dívida do Grupo Espírito Santo (GES) aos balcões do BES. Sem exceções. Com a mudança de ideias criou-se um antes e um depois: quem tinha dívida a vencer mais cedo foi reembolsado pelo BES; quem tinha dívida a vencer mais tarde transformou-se num lesado do BES.
Vamos por pontos. O BES vendeu papel comercial (dívida de muito curto prazo) de empresas do GES como a ESI e a Rioforte. Como as sociedades foram declaradas insolventes, deixaram de ter capacidade para reembolsar os investidores. Consciente desse risco, e com a informação acrescida de que a ESI não apresentara as contas verdadeiras, a partir de dezembro de 2013 o Banco de Portugal foi intransigente: exigiu reembolsos, contas bancárias especiais para que o BES não falhasse esses reembolsos e provisões para cobrir o risco de não pagamento desses reembolsos.
Até maio de 2014, e perante o cerco apertado do supervisor, o BES reembolsou a maior parte do papel comercial do GES (1 447 dos 1 719 milhões de euros totais que deviam ser pagos até essa data). A posição do Banco de Portugal não oferecia dúvidas e ficou expressa numa carta enviada à ministra das Finanças, a 7 de julho de 2014: “O BES assegurará, em caso de incumprimento da ESI ou da Rioforte, o reembolso da dívida colocada em clientes não institucionais que a tenham subscrito através do BES ou de uma das suas participadas.” Pouco antes da queda, o banco foi obrigado a incorporar nas suas contas semestrais uma provisão para assegurar o reembolso daqueles clientes. Para onde foi essa provisão? Após a resolução de 3 de agosto, o supervisor bancário respondeu a emails de investidores dando a garantia de que a responsabilidade do reembolso do papel comercial tinha passado para as mãos do Novo Banco. Também o conselho de administração do Novo Banco, num comunicado de 14 de agosto de 2014, na sequência de deliberação do BdP do mesmo dia, assegurou o reembolso do capital investido pelos clientes não institucionais. Os ‘lesados’ pareciam poder respirar de alívio. Mas afinal não. Em fevereiro de 2015, Luís Máximo dos Santos, presidente do ‘bad bank’, esclareceu no Parlamento que a provisão não constava das contas do Novo Banco porque tinha sido reconhecida nas contas do chamado ‘banco mau’ que não tinha capacidade financeira para assegurar os reembolsos. O Banco de Portugal terá, entretanto, mudado de opinião: só os clientes que tivessem uma garantia poderiam ser ressarcidos. Nos emails enviados a clientes o supervisor nunca fez qualquer referência a garantias. Costa desculpou-se no Parlamento dizendo que haviam sido escritos por alguém que não era contabilista. Mas há outros factos que indiciam que o plano inicial era o reembolso. Na secção perguntas e respostas do site do Novo Banco, aquela entidade dizia manter a intenção de assegurar o reembolso do papel comercial da ESI e da Rioforte aos clientes não institucionais do BES. Essa informação desapareceria do site a 15 de janeiro de 2015.
3 – BANCO DE PORTUGAL TINHA DADOS PARA AVISAR MAIS CEDO OS MERCADOS E EVITAR MAIS LESADOS
O Grupo Espírito Santo falhou ao vender dívida de empresas falidas ou à beira de falir. O Banco de Portugal falhou porque permitiu a venda da dívida sem divulgar aos mercados a informação que tinha na sua posse desde novembro de 2013 sobre as dificuldades financeiras das empresas do GES. O governador alega que nessa data não tinha dados suficientes para provar a manipulação das contas e precisava dos resultados de uma auditoria da KPMG (datada de 31 de janeiro mas que só seria divulgada em maio de 2014). Mas já tinha os dados essenciais: sabia de um aumento ”muito significativo’ no passivo das contas da ESI e sabia que a dimensão da dívida era ”suscetível de pôr em causa a solvência” daquela holding. Tanto sabia que mandou, de imediato, travar a venda de papel comercial daquela sociedade aos balcões do BES. Ao não comunicar à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), o governador violou as regras impostas aos supervisores: o dever de informação. O mercado não conheceu a realidade das contas atempadamente e, em consequência disso, a catástrofe chamada ”Lesados do BES” não foi travada. O Banco de Portugal travou a venda de papel comercial da ESI em dezembro de 2013, mas só a 14 de fevereiro de 2014 mandou suspender a venda de papel comercial de qualquer empresa do GES. Essa decisão tardia e a omissão da realidade das contas tiveram dois resultados trágicos: alguns clientes perderam a oportunidade de exigir o reembolso do papel comercial da ESI (a que teriam direito por terem investido numa empresa com contas falseadas); outros poderiam ter recusado trocar o investimento na ESI por papel comercial da Rioforte. Os clientes de papel comercial não foram os únicos a perder dinheiro com o colapso do banco. Em maio de 2014, o BES lançou uma operação de aumento de capital para cumprir uma exigência do Banco de Portugal. O negócio viria a ser classificado pelo Finantial Times como um dos piores de sempre da história financeira. Como o supervisor bancário também não comunicou, num curto espaço de tempo, a decisão da resolução ao regulador dos mercados, a CMVM, os investidores perderam tudo. Ou quase tudo. O banco em que os investidores injetaram mais de mil milhões de euros esfumou-se em agosto.
4 – Carlos Costa conhecia os problemas nos créditos do BESA
Ponto um: Carlos Costa diz que só soube dos problemas na carteira de créditos do BES Angola (BESA) por uma notícia do Expresso publicada a 7 de junho de 2014. Acontece que o Banco de Portugal (BdP) passou os primeiros meses de 2014 a discutir a validade da garantia soberana concedida pelo Estado angolano ao BESA. Acresce que uma carta do Ministério das Finanças angolano enviada ao BdP informava claramente que a garantia servia para cobrir um “conjunto de créditos em dívida”. A dedução é elementar: se aqueles créditos não tivessem problemas não seria preciso acionar uma garantia (de 5,7 mil milhões de dólares). Também Sikander Sattar, presidente da KPMG, esclareceu que nas contas anuais de 2013 a garantia de Angola servira precisamente para que não fosse necessário constituir uma provisão sobre os créditos de cobrança duvidosa.
Mas há mais declarações e documentos a contrariar outras declarações de Costa sobre o mesmo tema.
Ponto 2: o governador diz que nunca conheceu a lista de créditos que servia de anexo à dita garantia. Só que emails a que a VISÃO teve acesso mostram que o Banco de Portugal viu a listagem dos créditos. E só não viu os nomes dos beneficiários porque aceitou uma exigência de confidencialidade do Banco Nacional de Angola.
Ponto 3: Carlos Costa diz que a garantia [de Angola ao BESA] foi revogada antes da queda do BES e o saneamento do BESA decidido no dia 1 de agosto de 2014. Mas documentos provam que as medidas extraordinárias de saneamento do BESA foram adotadas no dia 4, como mostra uma deliberação do conselho de administração do BNA a que a VISÃO acedeu. E nenhum indicia que a garantia tenha sido revogada antes da decisão da resolução do BES: tudo aponta para que Angola tenha deixado cair a garantia também no dia 4, já depois de, na sequência da resolução do BES, ter sido considerada lixo (ou seja, a garantia não ficou no balanço do Novo Banco, passou para o banco mau). Ao contrário do que o governador afirmou na comissão parlamentar de inquérito aos actos de gestão do BES/GES, uma carta do BNA para o BESA, enviada a 27 de julho, não revogava a garantia de Angola. O que essa carta diz é que num prazo de 60 dias deviam ser riscadas da listagem as operações de crédito ”não formalizadas no momento da concessão da garantia”. Ou seja, os créditos que o BESA tinha formalizado em data posterior à da assinatura da garantia (31 de dezembro de 2013). Em nenhum ponto, a carta refere que a garantia deixou de ser “firme, definitiva e irrevogável”.
5 – Lei dava poderes ao Banco de Portugal para afastar Salgado
A lei dá ao supervisor bancário poderes para suspender administrações de instituições de crédito sempre que seja detetada uma violação grave de normais legais; haja suspeitas de irregularidades graves na gestão da instituição ou haja motivos para suspeitar da incapacidade dos administradores fazerem uma gestão sã e prudente. O governador conhecia a história dos 14 milhões pagos por um cliente de um banco (José Guilherme) ao seu presidente (Ricardo Salgado). Sabia da manipulação das contas da ES International. Não afastou Salgado porque, diz, não tinha poderes. Mas a 31 de julho a alegada falta de poderes não o impediu de afastar ”com efeitos imediatos” três administradores do BES responsáveis pela auditoria, compliance e gestão do risco. Primeiro foi a história dos 14 milhões. Salgado foi expedito em arranjar pareceres em sua defesa: os 14 milhões alegadamente recebidos a troco de conselhos de investimento eram apenas uma liberalidade, um presente. O BdP leu os pareceres apresentados pela defesa de Salgado, e não feitos a seu pedido e fechou os olhos. Carlos Costa entendia que uma administração só poderia ser suspensa em condições limite porque essa decisão envolveria sempre responsabilidade extracontratual para o Estado. A atitude foi alvo de crítica numa auditoria interna: o Banco de Portugal devia tomar decisões de forma ”tempestiva e determinada”, independentemente do maior risco de litigância. Para contrariar os poderes que dizia não ter, Carlos Costa alega que a solução para levar Salgado a afastar-se passou por um processo de “persuasão moral”. A verdade é que o líder do BES viria, oficialmente, a sair pelo seu pé a 13 de julho. Essa data foi proposta ao Banco de Portugal em abril de 2014 (num calendário de saídas da família Espírito Santo) e o supervisor bancário não se opôs.
6 – Afinal, o Novo Banco não estava quase vendido
“O processo de venda está a decorrer favoravelmente. Sublinho, o processo de venda está a decorrer favoravelmente (…) verificando-se um forte interesse por parte de potenciais investidores”, disse Carlos Costa sobre o Novo Banco, em março de 2015, na Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava a queda do BES e do GES. Quase um ano depois, o Novo Banco não está vendido, o PCP apresentou um projecto-lei para a nacionalização, os prejuízos apresentados por aquele que era suposto ser o banco bom são brutais (980,6 milhões de euros), vem a caminho um despedimento coletivo de 500 trabalhadores e até a Comissão Europeia diz que a decisão do Banco de Portugal de devolver ao BES 1 985 milhões de euros em obrigações séniores para que o Novo Banco reforçasse os rácios de capital e conseguisse uma almofada financeira para fazer face a prejuízos abalou o sistema bancário nacional. Nem a contratação de Sérgio Monteiro (ex-secretário de Estado dos Transportes) nem os mais de 17 milhões de euros investidos pelo Banco de Portugal em assessores jurídicos e financeiros conseguiram a venda do Novo Banco. Depois de terem sido injetados 4 900 milhões de euros na criação do banco bom herdado do BES, começava a primeira tentativa de venda. Que saiu frustrada. Em setembro, o Banco de Portugal concluiu não ser possível vender o Novo Banco sem perdas para o Fundo de Resolução: nenhuma das três propostas finais (Fosun, Anbang e Apollo) refletia “o valor da instituição”. O processo de venda foi entretanto retomado mas as últimas notícias não aguçam o apetite pela compra.
7 – BANCO DE PORTUGAL NÃO CONTROLOU ‘RING FENCING’
Quando surgiram os primeiros sinais de que o BES vendera dívida de uma empresa do grupo que estava a uns passos da insolvência (a ESI), o Banco de Portugal deu início a um plano que ficou conhecido como ‘ring fencing’.
O plano era nada mais, nada menos do que isto: montar uma barreira para evitar que o BES fosse contagiado pelos problemas financeiros do GES.
Carlos Costa defende que o plano de salvação falhou porque administradores do BES terão violado as regras impostas pelo supervisor bancário.
Que houve violação das regras, não há dúvida. Mas documentos consultados pela VISÃO mostram que algumas dessas regras foram violadas já debaixo do olhar atento do supervisor e, nalguns casos, até com a sua conivência. Um exemplo: a conta que deveria ser exclusivamente usada para o reembolso de clientes do retalho terá sido usada para pagar a clientes que não eram do retalho (do private banking, por exemplo).
Acontece que essa conta era acompanhada diariamente por uma equipa do… Banco de Portugal. E só poderia ser movimentada com o consentimento do… Banco de Portugal.
O supervisor dizia que só com um ‘ring fencing’ era possível controlar o risco sistémico, isto é, os riscos que uma falência desastrosa do BES poderiam causar no sistema financeiro e na economia nacional. Ao que a VISÃO apurou, um relatório encomendado pelo BdP à Boston Consulting Group, e que o supervisor insiste em manter secreto (por alegadamente conter dados sigilosos), concluirá que o dito ‘ring fencing’ foi um desastre.
”O principal cliente do BES era o GES. Ao sufocarmos o GES estávamos a sufocar o BES”, resume o deputado do PCP Miguel Tiago. ”Foi um desastre porque o BES tinha vendido demasiada dívida de empresas do GES que iriam falir. Com ‘ring fencing’ ou não seria muito complicado”, diz Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda. Não é possível saber o que teria acontecido ao BES sem esse ‘ring fencing’. Mas é possível dizer que o Banco de Portugal não vigiou devidamente o plano que impôs.
Artigo publicado originalmente na VISÃO 1200