Isabel dos Santos, a filha “princesa” do presidente angolano, José Eduardo dos Santos, começa a ser encarada pelos seus sócios portugueses como uma infant terrible. Onde entra, dá dores de cabeça. E as suas práticas vão fazendo com que se questionem até que ponto a empresária é uma parceira em quem se pode confiar. Ou se estará sempre pronta a mudar as regras a meio do jogo, dando o dito pelo não dito, ao sabor dos seus caprichos e conforme a conveniência do momento.
“Caprichosa” é um adjetivo que lhe assentará como uma luva. Mas face ao que se está a viver no BPI, onde tem personalizado uma força de bloqueio, e ao que acabou por acontecer na Sonae, onde traiu uma parceria conjunta, outros qualificativos menos abonatórios começam a surgir para retratar o seu caráter, pelo menos no plano moral e ético. É certo que não há protagonistas envolvidos a assumir o clima de tensão ou o jogo de forças que se impõe quando se está numa relação negocial ou empresarial com Isabel dos Santos. Mas os últimos acontecimentos indicam como as cartadas que tem jogado são suficientes para que os seus sócios temam pela próxima jogada e pelo trunfo que estará disposta a lançar para cima da mesa na hora H. Já se percebeu como, na maioria das vezes, ela consegue ser imprevisível e inverter o normal curso das coisas. Ao conquistar quadros dos grupos com quem trabalha, absorve conhecimento e informação. E quebra uma regra que deveria ser de ouro nos negócios: a lealdade.
Este comportamento começa a tornar-se um padrão difícil de explicar, que denuncia, no mínimo, uma cultura de trabalho diferente do que se considera prática habitual. Resta, por ora, uma indignação contida, mas também os avisos sussurrados que acendem o alerta, se não já vermelho, pelo menos amarelo.
Sonae apeada
“Isso também gostava eu de saber!” A resposta pronta e espontânea de Paulo Azevedo à pergunta de uma jornalista sobre em que ponto estava o projeto de parceria da Sonae com Isabel dos Santos, que pressupunha a abertura de uma rede de hipermercados com marca Continente em Angola, foi tão inesperada para quem estava presente que será difícil de esquecer. Estávamos em março, numa sessão de apresentação de resultados de 2014. Aquela resposta continha toda a perplexidade por uma situação que a Sonae ainda estava a absorver e não conseguia explicar. Foi a confirmação de que algo corria mal.
Três semanas antes, os jornais noticiaram que dois quadros de topo da Sonae tinham sido contratados por Isabel dos Santos. Precisamente os dois que a Sonae tinha posto a trabalhar em Angola no projeto de expansão da marca Continente: João Paulo Seara, era o chefe do projeto, e Miguel Osório, membro executivo da Sonae e superior hierárquico do primeiro. A notícia caiu sem aviso prévio na Sonae, deixando um enorme mau estar. Paulo Azevedo, obviamente, demitiu-os. E acusou-os de “atos de extrema gravidade e deslealdade”. Mas sobre a parceria, aguardavam “uma confirmação oficial”, que tardou.
Até que recentemente admitiu a venda da sua parte do negócio à Condis, sociedade de Isabel dos Santos. Isto num momento em que a marca Candando já se erguia em Angola na vez da Continente. Isabel dos Santos avançava sozinha.
O caso é tanto mais sintomático quanto foi Isabel dos Santos a propor à Sonae esta parceria, anunciada no início de 2011. A Sonae usava a sua experiência e gizava o projeto. Não queria ser dono dos imóveis, mas queria expandir a marca e escoar produtos. A Condis de Isabel dos Santos acrescentava o conhecimento local e ficava com a maioria da gestão do negócio. A Sonae pôs os seus dois homens a trabalhar no projeto sem reservas. Mas depois de sucessivos adiamentos, ao ponto de Paulo Azevedo já não arriscar qualquer data para o arranque, a surpresa veio em forma de balde de gelo e a rutura em formato de dupla facada nas costas: dos quadros e do sócio. Quando deu conta, a Sonae tinha ficado apeada.
O prejuízo, diz-se, é imaterial, até porque nunca existiu investimento financeiro. Mas há um valor em perda, a lealdade, que terá de ser prevenido na parceria que mantêm há três anos nas telecomunicações. ?O facto de a NOS, – resultante da fusão entre a Zon e a Optimus e gerida por uma empresa onde os dois são sócios paritários, mas cuja gestão é controlada pela Sonae – ser uma empresa cotada, onde se é obrigado a cumprir regras muito claras, dá alguma segurança na continuidade. Mas… ficou a nódoa no pano.
Fernando Teles e o BIC Angola
Esta é outra historia em que se Isabel dos Santos não foi o motor do que foi considerado uma grande traição, foi uma cúmplice. Fernando Teles era o presidente do BFA, o banco do BPI em Angola. Depois do ano 2000, havia uma pressão das autoridades angolanas para que se abrisse o capital. Luanda crescia e muito dinheiro corria por ali. Fernando Teles sempre terá ambicionado ter uma posição no banco, sem que houvesse abertura do BPI para tal.
Avançou então com o seu próprio projeto. E, em 2005, cria o BIC Angola, atraindo como acionistas de referência Isabel dos Santos e Américo Amorim. Teles fica com 20% e os seus principais sócios com 25% cada.
Como se não bastasse, Fernando Teles vai ao BFA e leva os seus principais quadros. Não um, nem dois, mas “dezenas largas”, alguns que acabaram também por se tornar acionistas.
Mais tarde, Isabel dos Santos entra no capital do BPI. Ironicamente, fica com posição reforçada para perto dos 20%, o limite de voto definido por uma blindagem dos estatutos, depois de comprar uma participação ao outro grande acionista, o espanhol La Caixa. E é com o La Caixa que tem mantido o grande braço de ferro quanto ao futuro do banco. Aqui tem funcionado como força de bloqueio e pressiona no sentido de uma fusão com o BCP. Tornou-se uma pedra no sapato.
Amorim e Mário Silva
Em 2005, Mário Leite Silva, economista, e hoje braço direito de Isabel dos Santos em Portugal, era o diretor financeiro do grupo Amorim. Foi muito provavelmente durante a criação do BIC Angola que Isabel dos Santos começou a “namorar” Mário Silva. Em 2006, o homem de Amorim passa a trabalhar para a empresária angolana. Nesta altura, já Américo Amorim tinha entrado na Galp, e fica a saber-se que Isabel dos Santos é também uma das acionistas de referência.
Quando deu conta, Américo Amorim tinha ficado sem o seu braço direito, que passou a ser o de Isabel dos Santos. A transferência não caiu nada bem. No ano passado, Américo Amorim vende a sua participação no BIC Angola a Isabel dos Santos e é sabido como as relações entre os dois são difíceis, conturbadas, com cada um a puxar para o seu lado.
De quem se fala
- Mário Leite da Silva – É atualmente o braço direito da milionário angolana. O jovem gestor, de 41 anos, é administrador de quase todas as empresas onde Isabel dos Santos tem uma participação. Formado em Economia pela Universidade do Porto, iniciou a sua carreira profissional como analista de crédito do BNC (atual Banco Popular Espanhol). Mais tarde liderou equipas de auditoria na PwC e foi diretor financeiro da Grundig em Portugal antes de entrar no Grupo Amorim, onde teve a seu cargo a direção financeira. Foi também responsável pelas?áreas administrativa, jurídica, fiscal e de recursos humanos
- Fernando Teles – É um homem da banca. Começou a trabalhar no setor aos 14 anos e já passou por cinco bancos. Foi como quadro do BPI, em 1992, que fundou o Banco de Fomento Angola, no qual, o banco português é o maior acionista. Em paralelo com a atividade profissional fez um bacharelato em Contabilidade e Administração, no ISCAL, e uma licenciatura em Gestão de Empresas, no ISCTE. Em 2005, funda o BIC Angola, onde ocupa a cadeira da presidência, em parceria com Isabel dos Santos e Américo Amorim. Ficou com uma participação de 20% no banco. Atualmente tem 42,5% do BIC, a mesma posição que Isabel dos Santos.
- Miguel Osório – Formado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e doutorado pela Harvard Business School, começou a sua carreira como consultor da Andersen Consulting, antes de ingressar na Sonae. Aí fez a subida a pulso. Começou como gestor de anúncios do Continente e, em 2005, assume a direção de publicidade da Sonae. No ano seguinte passa a liderar o marketing da Sonae na área do retalho alimentar. Em 2014 entra para a comissão executiva com o pelouro do marketing e responsável pelo negócio Zippy, a cadeia de roupas para criança. Foi agora contratado por Isabel dos Santos para liderar a empresa que irá criar uma rede de supermercados em Angola
- João Paulo Seara – Entrou para o grupo Sonae em 1994. Ocupou vários cargos na estrutura hierárquica do grupo, desde gestor de categoria de produto, diretor de unidade de negócio, diretor de operações e diretor comercial da Sonae Distribuição. Em 2012 assumiu a direção de marketing, substituindo Miguel Osório. Doutorado pela IMD Business School, de Genebra, Suíça, João Paulo Seara foi o diretor responsável pelo projeto de implantação da Sonae em Angola. Foi convidado por Isabel dos Santos para integrar a equipa de Miguel Osório