Natural de Ano Bom, uma pequena ilha descoberta por portugueses, Tutu Alicante é um dos mais conhecidos opositores ao regime de Obiang. Em 1994, radicou-se nos EUA e fundou a organização de direitos humanos EG Justice. Em entrevista feita por email, publicada, em parte, na edição impressa, lança um alerta sério sobre a corrupção no seu País, critica o aval de Portugal e do ministro Rui Machete à entrada da Guiné Equatorial (GE) na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e denuncia o negócio com o Banif
Um ano antes de atravessar o Atlântico, rumo ao exílio, nos EUA, Tutu Alicante viu a casa da sua família, como muitas outras, ser destruída por um grupo de militares enviados para a sua ilha natal à procura de opositores ao regime. Dois destes, ainda muito jovens, foram assassinados pelos militares, depois de uma fuga mal sucedida para a floresta. “Falar com a minha família e o povo da minha ilha, ouvir a sua resignação e recordar as inúmeras violações dos direitos básicos a que assisti e de que tomei conhecimento, fizeram-me decidir que alguma coisa teria de ser feita para exigir justiça no meu país”, conta. Já nos EUA, formou-se em Direito e co-fundou a EG Justice. “Acredito firmemente que a justiça e a igualdade são possíveis na Guiné Equatorial”, acrescenta.
Porque é que a Guiné Equatorial (GE) insiste em fazer parte da CPLP? Para branquear o regime? Para fazer negócios?
Uma coisa é clara: Não é com o objetivo de promover a língua portuguesa, a educação, a saúde, a justiça ou qualquer outro dos nobres princípios da organização que o governo da GE quer aderir à CPLP. Obiang está no poder há mais de três décadas. Se nada fez para melhorar os serviços sociais básicos, a segurança e a justiça, a governação, os direitos humanos e a democracia, não é com a adesão à CPLP que vai mudar. O governo precisa de legitimidade e credibilidade. Precisa de oxigénio político na arena internacional. A CPLP, a presidência da União Africana [exercida por Obiang em 2011], a organização de grandes eventos desportivos e conferências, são necessários para ganhar a aceitação das nações e instituições que não se movem pelos petrodólares que o regime ostenta.
O que leva a GE a adquirir uma posição no capital do Banif? É um bilhete de entrada na CPLP ou um esquema para lavar dinheiro?
É difícil saber o que motiva e o que move Obiang e o seu sindicato nacional do crime. Não me sinto competente para fazer ligações entre o Banif e o Governo de Portugal. Se essas ligações existem, sinto dificuldade em compreender que o Governo de Portugal precise deste investimento para fazer algo tão desprezível como apoiar a adesão à CPLP de uma organização criminosa, de um regime autoritário, violador dos direitos humanos. Não consigo imaginar que o apoio de Portugal possa ser comprado com tão pouco.
Por outro lado, tenho que pensar que o governo da GE espera usar esta oportunidade para lavar dinheiro. A GE Petrol [petrolífera nacional] é controlada pela família Obiang. O orçamento da GE Petrol não é sujeito ao escrutínio nem à aprovação parlamentar. Logo, o investimento no Banif é decidido por Obiang, pelo seu filho Gabriel Mbega Obiang Lima e talvez por outros membros da família que esperam beneficiar grandemente. O povo da GE, o Tesouro nacional, o Parlamento nacional não têm nada a ver com o negócio.
Nos emails que trocámos para combinar esta entrevista, afirmou que “os clientes e investidores do Banif precisam de conhecer” o regime de Obiang. Porquê?
A lavagem de dinheiro é crime. Os crimes económicos e financeiros não são crimes sem vítimas. Espero que os investidores insistam no escrutínio ao mais alto nível deste investimento. Há centenas de milhares de habitantes da GE – os donos de direito dos recursos que Obiang e sua família investiram ilegalmente pelo mundo fora – a viver na pobreza.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, disse em entrevista ao Público: “Não temos razões para duvidar” da palavra da GE [quanto à existência de um decreto presidencial que suspende a pena de morte]. Quer comentar?
Quando pergunta à raposa que guarda o galinheiro se vai comer todas as galinhas, é provável que obtenha uma resposta ambígua. Será tolice acreditar na raposa se essa resposta entrar em contradição com as evidências históricas irrefutáveis. Existe uma lei contra a tortura na GE, mas todos os dias há pessoas torturadas nas prisões. Existe uma lei contra o tráfico de pessoas, mas todos os anos há centenas de vítimas de tráfico. Há inúmeras leis contra a corrupção na GE…
Não conheço Rui Machete e não sei o que ele sabe sobre a GE, mas se se tivesse incomodado a falar com historiadores, políticos, ativistas civis e sociais, ou com qualquer um que estude e que siga o que se passa na GE, teria recebido uma resposta mais sofisticada. Um ministro dos Estrangeiros cuidadoso, falando em nome de uma democracia, não “aceita a palavra” de um autoritário repressivo que está no poder há mais de 34 anos e que ganha eleições com mais de 95% dos votos. Não vi nenhum decreto presidencial abolindo a pena de morte na GE. Nenhum dos advogados e ativistas com quem trabalho o viu. Rui Machete poderá ser a única pessoa que terá visto esse decreto, tanto quanto sei.
Contudo, ainda não é tarde. Rui Machete poderá ir à GE e visitar as prisões e falar com pessoas que estão a ser lentamente torturadas até à morte. Rui Machete deve ir e falar com Cipriano Nguema Mba, Ticiano Obama Ncogo, Florencio Ela Bibang, Antimo Edu, e muitos outros, cujos corpos torturados nos contam uma história convincente sobre a violação dos direitos humanos na GE.
Roberto Berardi, um homem de negócios italiano, ex-sócio de Teodorín [filho mais velho do Presidente] encontra-se preso na GE há mais de um ano sem culpa formada. Como vê esse caso?
É um excelente exemplo de como o sindicato nacional do crime “político-económico-militar” atua na GE. Berardi está preso – injustamente – porque discordou da forma como o seu parceiro de negócios usou a construtora Eloba, que era de ambos, para lavar dezenas de milhões de dólares nos EUA. Como ousou questionar o parceiro acerca dessas transações fraudulentas, foi parar à prisão. E assim temos um homem inocente, um investidor estrangeiro que não cometeu nenhuma violação das leis laborais ou empresariais, que passou inúmeras noites em isolamento, sofrendo tortura física e psicológica, e que continua injustamente encarcerado há mais de um ano. Isto funciona como um aviso aos investidores que entrem em desacordo com o regime. Existe também o caso de Igor Celotti, outro investidor italiano que teve negócios com o Presidente até desaparecer num misterioso acidente de avião. E de Gimmy Ricci, e do sul-africano Daniel Janse Van Rensburg…
Temos visto revoluções e protestos contra regimes ditatoriais e corruptos em diversos países de África, Ásia, Médio Oriente e até na Europa. Mas, no seu país, não se passou nada. Porquê?
A Guiné Equatorial tem cerca de 700 mil habitantes. Os países a que se refere são mais populosos e têm uma maior percentagem de pessoas conscientes dos seus direitos, com acesso a jornais, a rádios e televisões independentes. Isso não acontece na GE onde, para além dos media do Estado, só existe um grupo privado que é controlado por Teodorín. Também não existem sindicatos. Sem media independentes e sem movimentos de massas organizados, as revoluções populares não violentas são uma tarefa difícil…