Incrível. A vitória no Euro 2016 de futebol, em simultâneo com a conquista de algumas medalhas no europeu de atletismo, fez o País acordar para uma perceção que, pelos vistos, era desconhecida da maioria dos portugueses: afinal, também podemos ser campeões. Mas a verdade é que, desde há algumas décadas, Portugal tem conseguido formar campeões da Europa, do mundo e até olímpicos. Para os Jogos do Rio (de 5 a 21 de agosto), a nossa comitiva leva alguns deles, com os corpos moldados por milhares de horas de treino e as cabeças carregadas de sonhos e de muita ambição.
De que são feitos, afinal, os campeões? Uma resposta, em cinco palavras… e algumas histórias.
DETERMINAÇÃO
Fernando Pimenta tinha 11 anos quando se sentou pela primeira vez num kayak, durante um campo de férias de iniciação à modalidade, em Ponte de Lima, a sua terra natal.
A experiência durou um segundo: virou logo e caiu à água. E foi sempre assim nos dias seguintes. “Ele era o miúdo mais descoordenado de todos”, recorda Hélio Lucas, 43 anos, o organizador dessa iniciativa e que hoje, década e meia depois, continua a ser o seu treinador. “Só o convidei para ficar a treinar connosco por causa da determinação que ele demonstrava, a sua insistência, o nunca desistir. Os outros miúdos eram melhores, mas o Fernando era o mais determinado.”
“Toda a evolução dele foi feita à custa de trabalho, de muito trabalho”, continua o treinador, que passa com Fernando Pimenta a maior parte do tempo. “Se for preciso estar em estágio durante um mês inteiro, sempre a treinar oito horas por dia ao máximo e sem folgas, ele fá-lo sem se lhe ouvir a mínima das queixas.”
“Adoro treinar. Aprendi, cedo, que se der o máximo nos treinos, as competições tornam-se sempre mais fáceis”, diz o canoísta que se sagrou, recentemente, campeão europeu em K1-1000m e K1-5000m.
Treinar tem sido, aliás, a sua rotina quase obsessiva, desde que iniciou a época desportiva, em outubro, com vista aos Jogos Olímpicos. Contas feitas, nos últimos 10 meses passou 240 dias em estágio: 120 com a equipa nacional e os seus companheiros do K4, e outros 120 sozinho com o seu treinador Hélio Lucas, com vista à sua aposta na prova individual de K1-1000m, onde sonha ser campeão olímpico.
Hélio Lucas não tem dúvidas que é essa determinação que faz com que Fernando Pimenta vá conquistando títulos uns atrás dos outros, quando nem sequer possui as condições físicas excecionais dos seus principais adversários: “Ele mede 1,78 metros e é cerca de 20 centímetros mais baixo do que os outros que beneficiam, assim, de maior amplitude na pagaiada. Mas o Fernando compensa essa diferença com uma maior eficiência de cada um dos seus movimentos. É assim que, por exemplo, ele consegue completar uma prova com menos pagaiadas do que os seus adversários.”
A determinação é também a característica que permite uma proeza especial a Rui Bragança, de 24 anos: é bicampeão europeu de taekwondo e, em simultâneo, tem conseguido ir avançando nos estudos, encontrando-se agora no último ano do curso de Medicina na Universidade do Minho. No seu caso, é uma forma de casar o prazer com a necessidade: “Quando entrei para a faculdade, com 17 anos (e média de 17,4!), já treinava duas horas por dia e tenho conseguido manter esse ritmo sem me atrasar muito nos estudos. Sinto que é necessário conciliar as duas coisas: adoro o meu desporto, mas mesmo que seja campeão olímpico sei que, em Portugal, não posso viver disso. Tenho que preparar o meu futuro.”
Para o velejador Gustavo Lima, 39 anos, o futuro é algo já menos longínquo. Prepara-se para participar nos quintos e últimos Jogos Olímpicos da sua carreira, sempre na classe Laser, uma das mais exigentes da vela do ponto de vista físico “há vinte anos que tenho dores musculares”, confessa. Admite que o seu corpo já não responde como devia, em especial numa disciplina em que é obrigado a suportar regatas com uma hora de duração, com o coração a bater sempre a uma média de 170 pulsações por minuto. Mas, lá está, a determinação vale mais do que tudo, mesmo para quem já foi campeão da Europa e do mundo: “Isto é uma forma de estar na vida. Não é o dinheiro que me move, nem os contratos nem sequer o sabor especial da vitória. É um pouco disso tudo, admito, mas é sobretudo a determinação de querer ser o número um. mesmo quando o meu físico já não mo permite.”
OTIMISMO
Há algo que sabem todos os atletas e os amantes do desporto: só ganha quem acredita que vai ganhar. A prova mais concludente disso foi dada, recentemente, pelo selecionador nacional de futebol Fernando Santos quando, após os dois primeiros jogos no Euro 2016, declarou que apenas iria regressar a Portugal no dia 11 de julho e em festa. Como se sabe agora, essa mensagem foi fundamental para o seu grupo de jogadores e determinante para a vitória.
Rui Bragança, diz o seu treinador, Hugo Serrão, é o exemplo do otimismo. “Mentalmente é muito forte e, para além disso, está sempre muito descontraído, bem-disposto e sorridente.” Quando conhecemos o atleta torna-se fácil concordar com o retrato de quem o treina desde sempre. Mas o espírito positivo do bicampeão europeu de taekwondo não se fica por aí. Como representante de uma modalidade com poucos praticantes em Portugal, escassos apoios disponíveis, mas muitos problemas a nível de organização (a federação está quase moribunda e afogada em dívidas), Rui Bragança tem muitas vezes que viajar para as grandes competições internacionais, apenas com outro atleta. “Nessas alturas, temos que improvisar”, esclarece. “Como estou quase a concluir Medicina, já tenho alguns conhecimentos que me permitem substituir o fisioterapeuta que não temos e, depois, durante os combates, eu e o meu colega fazemos de treinador um do outro”, concretiza, com mágoa, mas sem perder o sorriso. “Quando as coisas correm mal, é ele que nos levanta o moral”, acrescenta o treinador Hugo Serrão. E as coisas até têm corrido mais bem do que mal: Rui Bragança é, há dois anos consecutivos, o melhor da Europa. “Penso sempre que vou ganhar, mesmo quando vou representar o País quase sozinho perante adversários em que o staff técnico, de treinadores, fisioterapeutas, nutricionistas, é maior do que o número de atletas”, critica.
CONCENTRAÇÃO
Os americanos chamam-lhe “The Zone” e já foram escritos muitos livros e tratados sobre esse peculiar estado que os atletas dizem sentir quando se conseguem abstrair de tudo à volta e concentrar-se unicamente na sua jogada, como se estivessem sozinhos no mundo. Também lhe podemos chamar foco ou concentração absoluta, mas os atletas, de todas as nacionalidades, adotaram a designação anglo-saxónica. É o caso de Ricardo Melo Gouveia, 24 anos, que vai representar Portugal no regresso do golfe aos Jogos Olímpicos. Todos os dias, ele passa horas e horas nos greens a bater bolas, tentando visualizar e antecipar possíveis dificuldades ou obstáculos. Mas o seu treino principal não se destina a melhorar a técnica de corpo para impulsionar a bola. “O que distingue os bons golfistas é a sua cabeça, a parte mental”, afirma. “A diferença entre um grande jogador e um bom jogador reside na forma como ele consegue manter-se focado na jogada, eliminando toda a pressão à sua volta.” “Quando começamos a canalizar os nossos pensamentos para aquilo que é realmente importante, começamos naturalmente a abstrair-nos de tudo o que está à volta”, acrescenta a judoca Telma Monteiro.
EXPERIÊNCIA
Se o acreditar é importante para ganhar, saber como se percorre o caminho para a vitória ou conhecer os erros que não devem ser repetidos, pode ser ainda mais relevante. É assente na sua experiência de duas décadas de alta competição que o velejador Gustavo Lima parte com otimismo para os Jogos. Mas também com muito realismo. Ou seja, graças à sua experiência, ele tem perfeita noção do que precisa para lutar pelas medalhas… ou nem chegar perto delas: “Se estiver muito vento no Rio, a prova obrigará a usar muito mais o físico e eu não terei hipóteses, porque já não estou na forma que tinha há 10 anos. Mas o normal naquelas águas é que o vento esteja fraco. E aí, a prova torna-se muito mais técnica. Passa por saber antecipar situações e tomar as decisões acertadas. É aí que entra o fator experiência e, nesse caso, com vantagem a meu favor.”
Gustavo Lima acredita, portanto, que tem uma hipótese de, mesmo aos 39 anos, alcançar o sonho que lhe escapou nas anteriores participações olímpicas. Mas também foi por conhecer bem as condições do vento e do mar no Rio de Janeiro (onde nasceu!), e por saber que lhe podem ser favoráveis nesta fase final da sua carreira, que voltou à luta para garantir a qualificação olímpica. E defende que a sua experiência é mesmo a sua melhor arma: “Os Jogos Olímpicos são um acontecimento único, onde 95% dos atletas competem sob grande pressão, em especial os favoritos e os que ainda não ganharam medalhas. Eu já estive perto, já fui campeão do mundo, tenho a minha carreira praticamente feita e estou livre de pressão. Mas por isso, tenho também a certeza de que vou estar com uma concentração diferente dos outros, muito determinado e quase ou nada nervoso.”
A judoca Telma Monteiro, 30 anos, parte para os seus quartos Jogos Olímpicos também apoiada numa longa experiência. Tem consciência dos erros cometidos em Pequim e em Londres, e adotou desta vez uma postura diferente. No seu caso, está a seguir uma máxima que Nuno Delgado, chefe da equipa de judo, costuma repetir: “Se continuares a fazer tudo como fizeste até aqui, já sabes que terás os resultados que sempre tiveste. Portanto, se não estás contente com os teus resultados, o melhor é mudares alguma coisa.”
Foi isso que se fez no seio da seleção nacional de judo: apesar de continuar integrada na equipa e no seu famoso “espírito de grupo”, Telma Monteiro tem beneficiado neste ciclo olímpico do acompanhamento em exclusivo do treinador japonês Go Tsunoda, um mestre da modalidade que há mais de 20 anos desenvolve um trabalho bastante elogiado em Espanha e também na seleção olímpica feminina britânica. Ou seja: muita experiência para tentar fazer algo de diferente com a melhor judoca portuguesa de sempre que, ainda por cima, chega ao Rio após vários meses de paragem por lesões e, por isso mesmo, sem que as adversárias suspeitem em que estado de forma se encontra, que técnicas tem estado a trabalhar, que tipo de judo pode apresentar. “Vamos tentar usar a sua paragem como um benefício”, diz Nuno Delgado.
ESPÍRITO
Ninguém ganha sozinho. Basta ver como algumas das melhores páginas da história recente dos Jogos Olímpicos foram escritas por duplas ganhadoras: Michael Phelps é treinado, desde os 10 anos, por Bob Bowman, e Glen Mills transformou Usain Bolt numa “máquina” dos 100 e dos 200 metros. A sintonia entre atleta e treinador é parte integrante do êxito dos melhores atletas portugueses. Fernando Pimenta sempre foi treinado, a nível individual, por Hélio Lucas, e Rui Bragança nunca conheceu outro treinador para além de Hugo Serrão. Depois, temos o caso paradigmático de Nélson Évora e João Ganço, um atleta e um treinador que sempre se desafiaram mutuamente, numa relação de respeito mútuo, que pode ser sintetizada numa única frase: “Eu puxo por ele e ele puxa por mim.” O engraçado é que qualquer um dos dois a pode proferir com propriedade. “O principal é estarmos sempre a quebrar os limites”, diz o campeão olímpico do triplo salto.
É essa sintonia de espírito ganhador que Gustavo Lima procurou quando desafiou Álvaro Marinho para ser seu treinador na preparação final para os Jogos Olímpicos do Rio. “É um amigo desde os 11 anos, tivemos percursos paralelos, embora em classes diferentes da vela, e partilhamos uma forma de estar muito parecida em termos de ambição. Vamos agora, em conjunto, para os quintos Jogos. Acredito que ele me vai conseguir transmitir muita motivação e, em sintonia, vamos conseguir decidir as melhores táticas para cada regata.”
A luta por objetivos individuais tem que ser, cada vez mais, partilhada com treinadores, fisioterapeutas, nutricionistas e, sempre que possível, com outros companheiros de treino. A força de espírito, dizem, pode ser contagiosa e qualquer atleta teve sempre, no passado, um ídolo que o inspirou. Na seleção de judo, essa característica é trabalhada ao ponto de, na hora do treino e dos estágios, todos trabalharem em conjunto incluindo o paralímpico Miguel Vieira. É esse o espírito olímpico. E uma das características dos verdadeiros campeões.