Subimos ao último andar do Hotel Myriad, no Parque das Nações, e Chris McCormack vira costas ao Tejo, o rio onde na véspera gravou um vídeo para promover o Challenge Lisboa e a cidade como destino turístico. Não quer distrair-se com a vista. Nos próximos três anos, Lisboa vai receber o Challenge Family, um dos maiores circuitos mundiais de triatlo de longa distância, e “Macca”, como o atleta é conhecido, aceitou ajudar a colocar a capital portuguesa no mapa dos grandes eventos desportivos.
Três dias chegaram–lhe para ficar a gostar da cidade e dizer que quer regressar de férias, com a mulher e os três filhos. Várias vezes campeão mundial, o australiano é, aos 43 anos, um homem mais dedicado à família. Construiu um sport resort em Phuket, na Tailândia, onde mora, e confessa-se preocupado com o mundo em que os filhos vão viver. Pessoalmente, só tem medo de voar, confessará a sorrir, logo ele que passa muitas horas por mês no ar. “Fico sempre nervoso”, diz, com uma gargalhada. O medo é tanto que, antes de aceitar o convite para vir a Portugal, quis saber o modelo do avião para se ir preparando para o que ia encontrar.
Estreou-se no Tejo, a nadar junto ao Oceanário. A água não estava nojenta?
Achei que sim, mas eles [da organização] fingiram que não sabiam. [Ri-se]. Depois, corri no centro da cidade, ao pé dos elétricos, e foi bom para ter uma ideia real de Lisboa. Quero voltar no próximo ano com a família, para ficarmos aqui a relaxar duas semanas. Acho a cidade muito agradável.
Ah, obrigada! E o que espera do Challenge aqui?
Temos grandes marcas de todo o mundo que vêm para uma cidade como esta e estampam um grande logótipo; e, aí, perde-se a identidade, é só mais uma corrida. Sei do que falo porque já corri nos EUA e parecia que estava na China. É importante manter a cultura da cidade e do País. Por isso, espero que a beleza de Lisboa passe para o ADN desta corrida e espero que sirvam comida local, cervejas locais…
Foi por isso que já disse que o Ironman estava a tornar-se o McDonald’s das corridas de longa distância?
É o que sinto. E o Challenge está a tentar que não lhe aconteça o mesmo. Há catorze anos, quando comecei no Ironman, uma corrida em Espanha era muito diferente de uma corrida em Portugal ou em França.
E essas diferenças fazem parte do gozo?
Fazem parte do desporto! Quando tomo a decisão de entrar numa corrida, quero que ela também seja uma ótima experiência.
Não exageramos se dissermos que o Chris é um vencedor. Mesmo quando não vence sente que fica sempre a ganhar?
Fui um vencedor, agora estou a ficar velho! [Ri-se]. Sou uma pessoa muito diferente da que era em 2012. Prometi à minha mulher e aos meus filhos que não seria tão centrado em mim próprio. Agora, trabalho a 100% na Ásia, onde moramos, e consigo ver como antes era obsessivo profissionalmente.
Ai sim?
Devo ter sido um pesadelo! [Ri-se] Até me afastar, não vi o egoísmo nem percebi como a minha mulher era espantosa para aguentar isso. Porque era só “eu, eu, eu”. Casámos há 14 anos, quando comecei a sério nisto. Ela esteve sempre lá e eu agradeço-lhe ter podido chegar aqui com um casamento intacto. Ainda gosto de competir. Quando venho a corridas, gosto de fazer parte deste estilo de vida, mas já não é uma questão de acumular mais títulos. Aliás, foi a minha mulher que me apontou isso: “Estás constantemente atrás de quê? De reconhecimento? Queres ganhar quatro títulos mundiais? Com cinco ficarias feliz? Ou com seis? O que é que te vai fazer feliz?”
Hmm… Não terá sido também porque estava quase a fazer 40 anos?
Não, porque vejo tipos da minha idade ainda a entrar em corridas. O desporto cresceu, consegue-se viver bem dele. Mas lembro-me de que, quando andava atrás de um título mundial em 2012, falei com a minha mulher e vi que ela não estava nem aí. Disse: “Ah, sim, ok…” E eu perguntei-lhe: “O que se passa?” E ela: “Nós andamos nisto para aí há dez anos!”. Então, prometi que ia afastar-me. Construímos um sport resort na Tailândia e afastei-me da bolha que era o desporto profissional. Mas ainda continuo a correr e tenho os meus patrocinadores.
O que é que o faz correr, hoje?
Eu era o marido-pesadelo. Num jantar, às oito e meia da noite já estava a chatear a minha mulher para irmos embora porque tinha de nadar na manhã seguinte. Agora, consigo divertir-me quando corro. É ótimo uma pessoa sentir-se em forma, ser competitivo entre os seus pares e, ao mesmo tempo, tentar ser um bom exemplo para os filhos. Hoje, se numa sexta-feira à noite alguém pedir uma garrafa de vinho, quero lá saber! E, no dia seguinte, já não é importante se fico em quinto lugar ou em primeiro.
Lemos na sua biografia que o desporto apareceu cedo na sua vida. Como era o Chris em criança?
Sempre fiz desporto, embora o meu pai fosse contra. Ele não estudou e queria que os filhos chegassem à universidade. Se o desporto se metesse no caminho da escola, nada feito, mas quando percebeu que eu era muito bom a correr e que a corrida me daria uma bolsa, encorajou-me. Ainda na universidade, entrei no triatlo por acaso e ele estava sempre com medo que eu perdesse a bolsa. Quando acabei o curso de Economia, arranjei um emprego na banca mas ao fim de seis meses já detestava. Demiti-me e fui para a Europa fazer triatlo.
Andou anos no triatlo e um dia, zás!, trocou-o pelo Ironman. Teve uma epifania?
Não, não! Estava no campeonato do mundo e a pensar nos Jogos Olímpicos quando a minha mãe morreu. Fiquei devastado, a sentir-me um filho egoísta porque vivia há três ou quatro anos na Europa e nunca ia a casa. Tirei um ano sabático, viajei. Quando quis voltar para o desporto, a minha federação virou-me as costas. Tinha sido campeão mundial mas reagiram mal. “Voltaste?! Isso não funciona assim. Tens de recomeçar por baixo.” Então, desatei a ganhar corridas, arranjei os meus próprios patrocinadores, a minha atitude foi: “Não preciso de vocês”. Rebelei-me. E eles disseram: “Se não vens connosco, não vais aos Olímpicos”. Respondi-lhes com um “Fuck you!” e fui para o Ironman.
Essa troca foi fácil?
Disseram-me logo: “Não podes fazer o Ironman. És demasiado novo e demasiado grande, nunca vais conseguir ganhar.” E eu: “A sério?” E avancei.
A diferença é grande?
É enorme. É como entre um maratonista e um corredor de 400 metros. São corpos muito diferentes. No Ironman, uma pessoa pequena e magra tem mais hipóteses. Nas corridas curtas, a força é mais importante.
Foi um desafio, portanto?
Claro! Em última análise, foi isso que me levou a ir para a corrida de longo curso e a nunca mais olhar para trás.
Em desporto, fala-se muito no papel da genética. É ela a razão do seu êxito?
A coisa boa no triatlo é que ser geneticamente dotado em três desportos diferentes é quase impossível. O triatlo tem êxito por ser um desporto para trabalhadores. O trabalho consistente e duro compensa. E é isso que o torna tão cool.
Qual era sua rotina no triatlo?
Trabalhava mais do que qualquer outra pessoa. Era metódico. Todas as manhãs, acordava e ia para a piscina, regressava a casa, tomava o pequeno-almoço e deixava os miúdos na escola (ou dormia, quando não tinha filhos). Depois, fazia cinco ou seis horas na bicicleta, voltava a casa novamente, relaxava um bocado, comia e ia correr. Era isto dia após dia.
O instinto teve algum papel no seu êxito?
As pessoas que me conhecem como atleta dizem que essa era a melhor característica. Nunca acreditei ser o mais talentoso, e quando se corre com essa insegurança temos de ser espertos. Podemos armarmo-nos para fora mas internamente é outra coisa. Sentimos: “Este tipo é melhor do que eu, como é que vou ganhar-lhe?”. Eu era um corredor muito inteligente. Levei pessoas a fazerem coisas que provavelmente não deviam ter feito só por ter a língua solta ou ter sido agressivo numa corrida. Também usava os media muito bem para provocar os meus concorrentes ou para gostarem de mim. O meu único objetivo era ganhar, não me importava a que custo.
E a nutrição? Ganhou corridas à custa de fazer as escolhas certas à mesa?
A nutrição é uma das coisas mais importantes no desporto. Para mim, foi sempre uma questão de controlar o peso. Nunca fui gordo mas achava sempre que, quanto mais magro estivesse, melhor. Estava sempre quatro ou cinco quilos demasiado magro; tinha de ser para conseguir correr bem.
Não existem fórmulas?
Sim. A minha mulher até já me disse que eu devia escrever um livro sobre perda de peso – ficaria rico. Perder peso é a coisa mais fácil de fazer. Basta saber como é que o nosso corpo reage. Segundo os fundamentos básicos da nutrição, quanto mais acesso à comida se tem, mais o corpo relaxa o metabolismo. É preciso diminuir a comida aos poucos. Não só baixa o metabolismo como a vontade de comer. Quando corria, conseguia manter o consumo de calorias nas duas mil. E nunca tinha fome, nunca fiquei doente. Se falar com um nutricionista, ele dirá: “Não faça isso, vai matá-lo!” Pois posso dizer que não se morre.
E gadgets? Usa?
Só sei usar esta coisa [Aponta para o smartphone e ri-se]. O meu treinador e o staff usavam para fazerem testes no laboratório, mas nunca precisei de ter essa informação. Aliás, sempre achei que eram limitadores. Costumo dizer aos jovens atletas: olhem para todas os grandes feitos nos Olímpicos. O que é que aconteceu? Eles ultrapassaram-se a si próprios. Todos estes gadgets criam na nossa cabeça a ideia de que é aquilo que somos capazes de fazer, mas porque havemos de pôr limites? Essa é a maneira segura de jogar, e correr de maneira segura é aborrecido. Sempre achei que, ao não se saber, ao arriscar, tira-se muito mais do desporto, de nós próprios. No meu último campeonato mundial, havia um miúdo que era dez minutos mais rápido do que eu, e lembro-me de ter pensado: “Nunca vou vencer este tipo”. Mas ele era só gadgets, era Ciência. E eu sou da velha escola e venci-o porque fiz coisas que ele não esperava. Quando ele pensava que eu ia ser conservador, atacava. E isso paralisa as pessoas, especialmente quando planearam tudo. Pensam: “Ah, isso não era suposto estar acontecer!” e ficam nervosas.
Arrepende-se de alguma coisa?
Devia ter sido mais esperto e diplomático com a minha federação, porque tenho pena de não ter ido aos Jogos Olímpicos, em Atenas. Na altura estava do tipo “quero lá saber!” mas agora sou mais velho, olho para trás e… De resto, estou contente de ter perseguido isto e de não ter ficado na Austrália, a trabalhar como contabilista [Ri-se].
E qual foi o seu maior desafio até hoje?
O Ironman no Havai, de longe, porque tinha tudo contra mim: corridas longas, calor e humidade… Precisava de aprender como é que um corpo deste tamanho funciona nessas condições e pôr-se em posição para ganhar a corrida. Tornou-se um desafio pessoal. E estou contente de ter demorado a vencer, porque se tivesse dominado desde o início, não teria apreciado tanto a viagem.
Está a falar a sério?
Estou. Cheguei ao fim uma pessoa diferente. Quando estamos atrás de alguma coisa e ela não sai como queríamos, isso muda o nosso caráter. Temos de voltar atrás, repetir e falhar outra vez, voltar outra vez atrás e falhar novamente até conseguir. Começamos a pensar se somos ou não capazes, começamos a fazer perguntas difíceis a nós próprios.
De onde vem o lema de vida “Persiga os seus sonhos”?
Foi a última coisa que a minha mãe me disse. Ela estava orgulhosa por eu não ter ido para contabilista. Quando larguei o emprego, disse-me: “Estou contente por teres perseguido os teus sonhos”.
E andava o Chris a sentir-se culpado…
Pois… Toda a vida, a minha motivação como atleta foi ver o meu pai satisfeito. Costumo dizer às pessoas com quem falo sobre maratonas que temos de fazer uma pergunta a nós próprios: “Porque queres magoar-te tanto?” Porque é horrível, não o desejamos ao nosso pior inimigo. Um dia, pus-me a refletir na razão e a resposta foi: “Talvez poder ouvir o meu pai dizer ‘Sim, aprovo, fizeste o que estava certo’”. Durante anos ele achou que eu nunca tinha trabalhado um único dia da minha vida. Dizia-me: “Estás sempre na Europa, de férias…”
Só corres…
Sim! “Limitas-te a correr”, era o que me dizia. Quando construí o resort na Tailândia, aos 40 anos, disse-me: “Finalmente fazes alguma coisa!”.
O Chris tem algum ídolo?
Não digo isto por estar de passagem por Portugal, mas em 1984, em Los Angeles, o Carlos Lopes marcou-me. Tinha onze anos, pus-me à frente da televisão para ver o meu ídolo, o Robert “Deek” Castella, e afinal aquele tipo português, um homem já velho, venceu a corrida. Um dia, o Robert “Deek” Castella gastou tempo comigo e nunca mais me esqueci. Uma coisa é os atletas estarem rodeados de jornalistas, a darem autógrafos às criancinhas e a dizerem “Vá, miúdos, vocês conseguem, digam não às drogas” e toda essa treta. Outra coisa foi o que ele fez: deu-me cinco minutos do seu tempo e não havia ninguém à nossa volta. São coisas assim que fazem uma lenda.