Durante 17 dias, de 27 de julho a 12 de agosto, vão estar no centro das atenções, a representar Portugal entre competidores de 204 nações. Mas para conquistarem um lugar entre os melhores do mundo, passaram os últimos quatro anos a treinar intensamente, desafiando os limites dos seus corpos e, tantas vezes, arriscando a saúde. Que lições nos podem dar os atletas olímpicos em matéria de persistência, coragem, sacrifício, alegria, esperança e sentido coletivo? O exemplo de um grupo de portugueses que se recusou a desistir. Em nome de objetivos que podem ser de todos. Hoje damos a conhecer Marco Fortes. Nos próximos dias, apresentamos outros atletas
Marcos Fortes: ‘Tento ir buscar momentos de prazer ao sofrimento’
Só quando se assiste a um treino de Marco Fortes é que se percebe o que está por trás de cada movimento para lançar o peso de 7,26 quilos para lá dos 20 metros: muita força, sacrifício e persistência.
Os seus mais de 130 quilos impõem respeito, em especial quando se observam os músculos tensos num corpo com 1,89 metros de altura. Mas apesar da sua envergadura, da sua força, Marco Fortes já foi derrubado muitas vezes, ao longo dos seus 29 anos de vida. E não só em sentido figurado. Na sua memória, continuam vincadas as derrotas com os colegas de escola e com os vizinhos do bairro problemático onde cresceu. Mas nunca desistiu. Levantou-se sempre. “Foram as derrotas que sofri a tentar ser o melhor da rua que me ajudaram a tornar-me mais forte”, diz, agora, sereno, e com a certeza de que tem que continuar a lutar. Todos os dias.
Não admira, por isso, que quando se lhe pergunta como é que conseguiu, nos últimos meses, bater por três vezes o recorde nacional de lançamento do peso, alcançando marcas que o colocam entre os melhores do mundo, ele responda com uma única palavra: “Persistência”.
E não há dúvida de que Marco Fortes é um homem persistente. Só alguém com a sua “força interior” seria capaz de, como ele, superar o castigo da expulsão da Aldeia Olímpica, em Pequim, há quatro anos, por causa de um “crime” de linguagem. Só mesmo um homem “persistente” seria capaz de continuar a treinar e a evoluir, no meio da chacota de metade de um país que nunca percebeu que a sua expressão “de manhã só na caminha” não era mais do que uma tentativa falhada de fazer humor para esconder a desilusão que sentia. Essa sua persistência teve um prémio: saiu da capital chinesa como o exemplo de todos os males e frustrações, mas agora parte para Londres como o rosto central que domina a fotografia oficial da missão olímpica portuguesa.
Continua ressentido com tudo o que se passou? Marco Fortes demora três segundos a pensar. Depois, a resposta sai, sentida, numa voz suave, e com um raciocínio bem articulado: “De certa forma, até estou grato às críticas que me fizeram. Aquele mau bocado por que passei, após o regresso de Pequim, obrigou-me a querer mais, a dar mais de mim.”
Pensa que pode ser um exemplo para os portugueses? Alguém que caiu no buraco, mas que se levantou, se superou enquanto atleta e que, pelo meio, ainda voltou a estudar? “Sinceramente, acho que sim”, responde, prontamente. “E se tenho um exemplo para dar é o de que se deve sempre pensar em melhorar, em ultrapassar as dificuldades. Não vale a pena resignarmo-nos e baixar os braços. Temos de ser persistentes.”
Apoio dos pais
Desde os 12 anos que Marco Fortes sonha com os Jogos Olímpicos. No bairro em que vivia, no Lumiar, às portas de Lisboa, começou a praticar atletismo, como forma de escapar a um ambiente urbano e social que o desgostava. “Já nessa época, as coisas estavam muito ligadas. Já então, a sonhar com os Jogos Olímpicos, a ideia de superação, de melhorar sempre, estava impressa na minha cabeça, como forma de me libertar daquele ambiente perigoso, com o qual não me identificava. Sonhava em sair dali, já punha as metas elevadas, queria ter algo mais na vida. E só via essa possibilidade no atletismo.”
Mas mesmo no atletismo as coisas não eram fáceis, nesse tempo. “Em miúdo, nunca alcançava grandes resultados. Era quase sempre o último, em todas as provas”, confessa. E recorda o apoio inexcedível que os seus pais lhe davam nesses momentos, quando regressava a casa com outros colegas: eles cheios de medalhas e troféus, ele sempre de mãos vazias, apenas com a cabeça cheia de sonhos. “No fundo, era isso que me ia dando motivação para continuar, sempre a tentar ser melhor. Quando entrava em casa, meio envergonhado por não trazer medalhas, olhava para a minha mãe e dizia-lhe para ela não se preocupar, que um dia ainda lhe iria encher uma sala com taças e outros troféus. Ela sorria. Mas eu acreditava mesmo nisso, até para retribuir o apoio dos meus pais. Tinha que conseguir!”
Marco Fortes já conseguiu realizar muitos desses sonhos e objetivos. Desde que começou a tornar-se no melhor lançador de peso de Portugal, mudou de bairro, vive apenas do desporto, com direito a subsídio de alta competição, contrato com um clube importante (Benfica), patrocínio de uma marca mundial (Adidas), e é disputado para ir aos principais meetings internacionais de atletismo. Em 2008, cumpriu o sonho de criança e desfilou, em Pequim, na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. “Foi um momento incrível, estar ali naquele ambiente. A certa altura, eu e mais três amigos abraçámo-nos na pista, e começámos a chorar. Uma emoção extraordinária, até porque, já em criança, as cerimónias de abertura e de encerramento eram os momentos das Olimpíadas a que eu gostava mais de assistir pela televisão. Lembro-me de chorar ao ver a chama olímpica a apagar-se, no fim dos Jogos.”
Em Pequim, acabou por não cumprir o sonho de desfilar na cerimónia de encerramento, “recambiado” à pressa para Portugal. Mas foi nesse momento que começou a preparar os Jogos de Londres. Com um planeamento adequado, em sintonia com Vladimir Zinchenko, o seu treinador de sempre. E uma disciplina férrea, que o leva, todas as manhãs, ao Centro de Alto Rendimento do Jamor para um treino que nunca dura menos de três horas. O resto do dia é passado a descansar, em sessões de fisioterapia e, fora da época mais competitiva, a assistir às aulas do curso superior de Gestão e Administração Desportiva. “É a parte pior do dia, cinco horas de faculdade… às vezes, com o corpo todo dorido, já não tenho cabeça para aquilo…”
Entregar a vida ao treinador
Qual é a sensação de se levantar para ir treinar? Marco Fortes encaixa a provocação: “É horrível. Todos os dias sei que vou sofrer, que o meu corpo será esticado até aos limites ou mesmo para além deles. O meu truque passou a ser tentar ir buscar momentos de prazer ao sofrimento.”
Quando se assiste a um treino de Marco Fortes percebe-se perfeitamente o que ele diz. Mesmo que seja incompreensível para um comum mortal descortinar onde pode estar o prazer de esticar os músculos para, em séries sucessivas, ir levantando halteres com o peso de 150, 200, 250 e… 300 quilos. Sempre com esgares de dor e sofrimento. Mas sem um único queixume. Em seguida, o atleta vai treinar a velocidade, em saltos cadenciados para cima de uma plataforma. Logo depois, são os reflexos, quase como se fosse um guarda-redes a defender uma bola de areia. Seguindo, sem hesitações, as ordens do treinador. “É a ele que entrego a minha saúde, o meu corpo, a minha vida”, reconhece.
Foi sempre assim, ao longo dos últimos quatro anos. Com resultados surpreendentes (até para ele), no último inverno: colocou o recorde de pista coberta em 20,91 metros e, depois, em março, elevou o recorde de ar livre para 21,02 metros. Mais 89 centímetros do que a marca com que se tinha qualificado, há quatro anos, para os Jogos de Pequim. E, “com ganas de ir ao céu”, e voltar a superar-se: “A planificação do meu treinador diz que a minha melhor forma ainda está para chegar. Pela primeira vez, fiz resultados excelentes no inverno, o que indica que existe ainda uma margem para melhorar. A questão é só a de saber se ela se vai concretizar ou não. Infelizmente, isto não é uma ciência exata…”
Da sua parte sabe que lhe resta apenas aplicar em Londres tudo aquilo que foi memorizando ao longo de anos de treino: “Só preciso de me acalmar ao máximo, pois o meu corpo já sabe o que tem que fazer. Para mim, é uma sucessão de tarefas que se tornaram automáticas, com atenção a pequenos pormenores: estar no centro, procurar o ângulo perfeito de saída, pequenas coisas que os espectadores não conseguem perceber.”
O seu principal adversário, reconhece, é a ansiedade, que, no passado, o fazia tremer, no momento do lançamento. “Agora tenho outra maturidade. Sei que vai ser o dia mais importante da minha carreira. Mas também sei que foi para isso que trabalhei a minha vida inteira.”
Marco Fortes tem como objetivo chegar à final. E depois “tentar fazer o melhor possível”, de acordo com as suas marcas, que o colocam entre os melhores do mundo. E quando regressar de Londres, só espera ter demonstrado que voltou a levantar-se, após o “derrube” que sofreu há quatro anos. Mas sem grandes ilusões sobre alguma mentalidade existente: “Em Portugal, não há cultura de valorização do êxito dos outros, praticam-se a inveja e o ciúme. Mais do que elogiar apontam-se defeitos. Esquecem-se é que o sucesso dos outros pode valorizar-nos a nós. E é por não percebermos isso que anda tanta gente à toa.”