Aos 15 anos, Paula Rego, então uma adolescente de boas famílias de alta burguesia a estudar na prestigiada St. Julian’s School, em Carcavelos, pintou um quadro a que chamou Interrogation (Interrogatório): uma obra sombria representando uma figura feminina fechada sobre si própria, em postura defensiva, rodeada por dois homens sem rosto nem piedade, armados com uma broca e uma chave de parafusos. Uma cena de pesadelo que remetia para o ambiente repressivo da ditadura vigente de Salazar, de que Paula estava bem consciente. Filha de pai republicano, o engenheiro eletrotécnico José Figueiroa Rego, educada numa casa liberal onde se escutava a rádio BBC, ela era já sensível às desigualdades – políticas e de género.
O trabalho precoce profetizava a capacidade da futura artista em trabalhar na sua pintura emoções, interditos, segredos, traumas, jogos de poder, ou a condição da mulher. Uma visão interventiva que é sublinhada na retrospetiva agora inaugurada na Tate Britain, a mais ambiciosa dedicada à pintora portuguesa no país onde vive há décadas, que inclui desde os primeiros trabalhos datados dos anos 1950/1960, em que experimentou com desenhos e colagens, às gravuras dos anos 1980, aos objetos tridimensionais que usa no estúdio para criar, e às grandes telas de referência das últimas décadas. Raramente mostrada em público, Interrogation é uma das mais de 100 obras agora arrumadas nas 12 salas da Tate Britain.
“Desde muito pequena que ela desenhava, recortava tudo. A sua primeira fase das colagens vem muito da adolescência. A Paula era muito feliz, no seu quarto, a desenhar. Filha e neta única, era uma criança solitária, tinha muitos medos, até das moscas…”, descreve Arlete Silva, amiga de Paula Rego “há mais de meio século”. A galerista (viúva de Manuel de Brito, fundador da Galeria 111) sintetiza-a assim: “Para ela, pintar era extravasar as emoções.” Sublinhando que a artista “sempre teve uma grande consciência política”, conta à VISÃO um episódio curioso: a colaborar na recolha de materiais para um catálogo raisonné dedicado a Paula Rego, Arlete Silva descobriu, por entre os mil papéis atirados para uma caixa pelo marido, uma anotação que iluminou uma pintura com colagens datada de 1961: o título que todos tinham esquecido, incluindo Paula Rego, e que é O Preso Político.
Não é caso único nos anos de juventude e dos primeiros desenhos, pinturas e colagens da artista. Igualmente patente na Tate Britain está a obra paradigmática S. Vomiting the Pátria (1960). “Será que ousarei, disse a mim mesma, ousarei fazer a pintura de Salazar a vomitar a Pátria? Porque na realidade o que devia ser era a Pátria a vomitar Salazar. Isto até era ligeiramente simpático em relação ao ditador, o que era uma coisa extremamente perversa”, confessou Paula, 40 anos depois, numa entrevista. Victor Musgrave, fundador da pioneira Gallery One, em Londres, então já um admirador seu, recusou-se a expor Salazar a Vomitar a Pátria: tinha “falos a mais”. Em Lisboa, a Galeria de S. Mamede incluiu-a numa coletiva em 1972… mas omitiu o nome do ditador. A artista, essa, continuava a decifrar o País à distância. O progenitor, sempre atento, empurrara-a para fora do ambiente claustrofóbico de Portugal, desejando-lhe uma educação mais livre. E Paula, depois de uma infância dividida entre o Estoril e a Ericeira, por causa dos bons ares recomendados pelos médicos a seguir a uma tuberculose, chega a Londres em 1952 para estudar na Slade School of Fine Art.
Os primeiros tempos são difíceis. Era estrangeira, falava com sotaque diferente, era mulher. “A abordagem histórica e a crítica à arte britânica passam por uma visão muito masculina”, destaca Catarina Alfaro, coordenadora da programação e da conservação da Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais. “Mas a própria Paula também tinha uma posição crítica face ao ambiente da Slade, aos seus artistas, geniais mas algo fechados. Ela dizia que o método da escola, de um rigor quase matemático, a afastava do seu universo e condicionava a sua pintura, que ela acreditava dever provir da imaginação.” O futuro marido, que conheceu numa festa, Victor Willing, inteligente, culto, que se dava com Francis Bacon, era um desses artistas: era um outro tipo de condicionamento, refere a curadora. “Temos igualmente de incluir aqui a questão de género, de as mulheres terem um tratamento e uma visibilidade diferentes”, sublinha.
Obra militante
Apesar das barreiras, a artista portuguesa não é posta de lado nem no circuito nem no discurso crítico britânicos. Sinal disso é o prémio de verão ganho por Paula Rego em 1954, no âmbito da competição Summer Composition da Slade, baseada na obra Under Milk Wood, de Dylan Thomas. O proeminente crítico David Sylvester elogiará a sua pintura como “a menos receosa que ali está”. Paula, a tímida que era sobretudo feliz no seu atelier (numa antiga fábrica de botões, de paredes escuras e sem janelas, onde nada a distraía do seu trabalho), assumirá a distinção como uma medalha, uma confiança para se manter fiel ao seu imaginário, para perseguir a sua linguagem figurativa nova, associada ao surrealismo, às referências literárias populares, aos provérbios, às cantigas de roda, aos pesadelos, às mulheres da sua terra e da sua infância.
A biografia desempenha igualmente uma nota fundamental desde cedo. Como a própria diz, “toda a pintura é portuguesa”. Aos 30 anos, Paula Rego tinha perdido o pai que adorava, a mãe, mulher elegantíssima com quem tinha poucas afinidades, morava em sua casa (onde ficará até morrer), o marido, Victor Willing, já estava doente com a esclerose múltipla que o derrotaria em 1988, depois de um longo calvário documentado em muitas pinturas. Uma destas, A Dança (1988), faz o luto da doença, das infidelidades, do amour fou. Foi o próprio Victor a sugerir-lhe que pintasse gente dançante ao luar – e nesta obra extraordinária, Paula coloca-o no centro, abraçado a uma outra mulher, e agiganta-se a si própria num canto.

Escolhida pela curadora Elena Crippa, organizada cronologicamente, a retrospetiva da Tate Britain inclui ainda empréstimos da Fundação Gulbenkian, dos museus de Serralves e do Chiado, e da Casa das Histórias Paula Rego. Para ver até 24 de outubro, há peças paradigmáticas e trabalhos menos conhecidos – ou raramente expostos. E todos afirmam, com maior ou menor subtileza e mistério, causas hoje tão contemporâneas. Como as gravuras Nursery Rhymes (1989) inspiradas nas canções infantis tradicionais (a artista começou a levar as placas de cobre e o estilete, preferindo-os ao cheiro e à confusão das tintas para pintar, enquanto velava o marido).
E as obras que trouxeram a consagração à artista como The Little Murderess (1987), com essa rapariguinha inquietante de garrote na mão, A Filha do Polícia (1987), sobre a jovem a polir a bota paterna, e Família (1988), com mãe e filha a ajudarem o pai a vestir-se: Paula Rego revela aí tensões domésticas com figuras femininas não tão submissas assim… Mas também se arrumam na Tate Britain os trabalhos dos anos 1980 e 1990, quando Paula Rego altera a sua linguagem, dizendo-se um “sismógrafo”: pintava no chão, sem distância, “o pincel puxa e o resto do bicho vem atrás”, dizia. Começa então a usar modelo para pintar (a fiel Lila Nunes) e a assumir um lado mais teatral, com recurso a vestidos, adereços, bonecos. E explora um figurativismo limpo, dominado por mulheres robustas, em Dog Women, Abortion (séries dos anos 1990) e no políptico Possession I-VII (2004) – onde ensaia o sofrimento, a violência de género, o empoderamento feminino através da sexualidade.
Mas aí revelam-se outras obras, até nunca vistas. É o caso de The Return of the Native (1993), inspirada num romance de Thomas Hardy ambientado numa paisagem imaginária marcada por bruxaria e superstições. A pintora representa o fim trágico de uma mulher cujo desejo choca com as normas sociais de uma comunidade rural: debruçada sobre uma sebe, rodeada por silvas e flores, por bichos selvagens e por homens tombados. Esta obra crepuscular tem estado guardada no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ou ainda o díptico Cast of Characters from Snow White (1996), agora mostrado na Europa por empréstimo de um colecionador privado: uma obra monumental, com mais de três metros, inspirada no clássico preferido de Paula Rego e adaptado pela Disney em 1937, com os anões transfigurados em mulheres. “Para todos os efeitos, e ainda que já tenha havido revisões críticas da obra de Paula Rego, que acentuam o seu lado interventivo (por exemplo, em Obedience and Defiance/Obediência e Desafio, em 2019), esta é uma exposição importantíssima”, declara Catarina Alfaro. “Mostra a Paula Rego politizada e interventiva que a caracteriza desde o início do seu percurso.” Só por distração é que não reparámos? “As obras que a artista produz a um ritmo furioso, entre 1957 e 1962, já ao lado de Victor Willing, refletem as suas emoções, um País fechado sobre si próprio, a caricatura sobre as relações de poder entre homem e mulher, a tensão social associada ao parto e o lugar do feminino condicionado pela reprodução num quase manifesto. Como são obras não tão figurativas, são menos compreendidas. A sua obra tratou os temas do corpo e da sexualidade visceral, e não foi então muito aceite pelos galeristas nem valorizada comercialmente.” A liberdade dos anos 1980 é que irá alterar esta situação, refere.
Paula Rego atingiu um patamar a que poucas artistas podem dizer ter chegado – e fê-lo com um léxico próprio. Para Catarina Alfaro, Paula Rego reinscreve a voz das mulheres, desconstruindo os papéis sociais a elas atribuídos ao longo do tempo – e isso é político. “Fá-lo com uma pintura que está de acordo com os cânones e o contexto, mas que é altamente subversiva nos conteúdos e nos pormenores”, aponta. E por tudo isto é importante, celebratório até, saber que a artista, aos 86 anos, continua a trabalhar todos os dias no atelier, ouvindo ópera e fado e terminando o dia com uma taça de champanhe, como contou ao The Guardian. Paula Rego é uma arca humana de onde continuam a sair obras surpreendentes.