Nem sempre o caminho é em frente: Ken Follett, 71 anos, inverteu o relógio do tempo e revisitou Kingsbridge na Idade Média, antes de aí serem colocadas as primeiras pedras da catedral que transformou este britânico de raízes galesas num dos mais bem-sucedidos autores de ficção histórica, amante de champanhe e de realismo sem problemas de incompatibilidades. Kingsbridge: O Amanhecer de Uma Nova Era (Editorial Presença), o novo romance de 700 páginas, é, diz, “uma pressão no bom sentido”: “É muito lisonjeador para um escritor sentir que os leitores guardam a sua obra no coração. É claro que, quando as pessoas gostaram tanto de um dos meus romances, é minha responsabilidade dar-lhes um novo livro que elas possam apreciar também.” Esta prequela d’Os Pilares da Terra parece conter as sementes das questões contemporâneas: a intolerância, o abuso de poder, os perigos das (in)justiças, a luta das mulheres e dos homossexuais, os combates políticos. Em conversa telefónica com a VISÃO, Follett fala do passado e do presente.
“Necessitamos de realismo e imaginação para criar um bom romance. Como leitor, não gosto nada de narrativas fantásticas, entedio-me com tudo o que tem que ver com magia”
Poucos autores criaram territórios ficcionais que parecem reais. O que o fez regressar a Kingsbridge?
O ser o meu território, precisamente. Os leitores interessam-se pela cidade, há um site de fãs de Kingsbridge, e, ao fim de quatro livros [seis volumes, na versão portuguesa], Kingsbridge representa efetivamente Inglaterra. Em Os Pilares da Terra [de 1989], a catedral é construída na cidade. Em Um Mundo sem Fim [2007], conta-se a história da terrível Peste Negra através da experiência dos habitantes de Kingsbridge. E Uma Coluna de Fogo [2017] versa as guerras religiosas europeias no século XVI e como elas afetaram a cidade… Kingsbridge tem, agora, uma vida própria.
O realismo dos romances é-lhe essencial. E a imaginação?
Necessitamos de ambos, para criar um bom romance. O autor precisa de criar algo que nunca aconteceu, mas, para que os leitores desfrutem dessa minha fantasia, é necessária a criação de todo um panorama. Todos os mínimos detalhes, desde os materiais de que a igreja é feita ao barco que atravessa o rio, os campos de cultivo, as ruas, os criminosos, os padres, tudo tem de ser absolutamente realista. Como leitor, devo dizer que não gosto nada de narrativas fantásticas: entedio-me com tudo o que tem que ver com magia, dragões, feiticeiros… Mas gosto muito de ficção científica, se esta estiver baseada em ciência. É outra maneira de se ser realista, não é?
Nada de nonsense, sensatez acima de tudo, é o seu credo?
Exatamente. Os leitores têm de ter a sensação de que a história tem lógica: “É claro que isto iria acontecer, apesar de eu não estar à espera…”
Aqui, interessa-se mais pelas pessoas do que pela arquitetura. É uma posição ideológica: o espírito humano é medido pelo quotidiano e não pela arte?
Não há arquitetura em Kingsbridge: O Amanhecer de Uma Nova Era, porque a Inglaterra da época tinha poucos edifícios e igrejas construídos em pedra, não existiam castelos. Os ingleses não os sabiam construir até que os normandos vieram, em 766 d.C., e os ensinaram. Mas do que eu gosto mesmo na arquitetura é que esta me revela as maneiras de viver. Em Inglaterra, há centenas de velhas “casas de campo” – que de facto são palácios, hoje muitos deles pertença do Estado – e adoro visitá-las porque me ajuda a imaginar as vidas dos habitantes de outrora. O meu interesse pelas catedrais foi despertado pela minha curiosidade sobre os pedreiros que as construíram, os padres que as pagaram, as cidades que cresceram aos seus pés.
“Escrevo sobre construtores, pedreiros, carpinteiros, artesãos em geral, porque são eles que erguem um país, e são mais interessantes”
Para si, os construtores são mais importantes do que os intelectuais, na literatura e na vida?
É uma pergunta difícil… Mas seguramente que escrevo sobre construtores, pedreiros, carpinteiros, operários que dispõem tijolos, artesãos em geral, porque são eles que erguem o país: constroem as casas, as igrejas, as estradas. São mais interessantes. É claro que, quando lemos volumes históricos, encontramos muitos monarcas, ministros, generais e almirantes e por aí fora, e isso está certo, porque são aqueles que têm o poder para tomar decisões. Mas o que se passa por detrás da política interessa-me muito mais.
Faz sempre extensas pesquisas. Experimentou algumas técnicas artesanais com as suas mãos?
Não. E a razão é porque sou péssimo nisso [risos]. Não consigo sequer montar estantes, uma dessas tarefas básicas que é suposto os homens saberem fazer em casa. Parte do meu fascínio com os artesãos deve-se ao facto de eles poderem fazer algo de que sou incapaz. Por outro lado, vejo o ofício dos pedreiros e carpinteiros como algo parecido ao processo dos meus livros, porque há uma oficina envolvida na escrita, as coisas têm de ser construídas de uma certa maneira: o enredo da história tem de ser lógico. Há metodologias e requisitos semelhantes. E a faceta maravilhosa, espantosa, que têm os arquitetos é a sua imaginação: eles são capazes de ver nas suas cabeças, tridimensionalmente, o edifício inteiro. Eu não consigo visualizar a minha própria casa em três dimensões: observo uma parede e não tenho a certeza do que há para lá dela! E isso acontece com a maioria das pessoas. Mas essa é uma capacidade semelhante à que tenho de imaginar um romance inteiro: alguns leitores consideram isto fantástico, como se se tratasse de um dom sobrenatural.
Lê-se: “Um rei pode dar ordens, mas fazê-las cumprir é outra questão.” Um mau líder é, agora e sempre, a fonte de todo o mal?
Kingsbridge não é bem sobre maus líderes mas sobre a “rule of law”, o Estado de direito. Várias personagens tentam obter justiça e não conseguem, e é nessa questão que assenta o Estado de direito. Hoje, o que temos em muitos países europeus é o exercício desse Estado de direito, que significa que todos devem obedecer à lei, seja o rei, o primeiro-ministro ou o presidente. Mas se o governo controlar os juízes, como acontecia na Inglaterra anglo-saxónica, então não há justiça. Mas esta pedra basilar da nossa liberdade, hoje, está em perigo: o Governo da Polónia, por exemplo, está a tentar controlar os tribunais. Temos um jornal inglês, o Daily Mail, que sempre que há uma decisão legal que não lhes agrada declara que os juízes não foram eleitos. É claro que não foram eleitos! Essa é que é a questão, os juízes não são políticos. Mas nem toda a gente entende a importância disso…
“Hoje, o princípio do Estado de direito está sob ameaça: veja-se os EUA e o seu atual Presidente, Trump, que acha que deve controlar os tribunais”
Estamos a assistir a um regresso dos lordes, no mundo?
É muito claro que, na maioria dos países, nunca houve um Estado de direito. Estou a pensar, por exemplo, na China. Muitos países fingem tê-lo, mas os seus governos são corruptos. A verdade é que o princípio do Estado de direito está sob ameaça: basta olhar para os EUA e o seu atual Presidente, que acha que deve controlar os tribunais. Trump tem um grande ressentimento perante o facto de os tribunais poderem reverter as suas decisões…
Se Trump for reeleito, crê existirem riscos para a democracia?
Para mim, o problema é que, mesmo que Trump seja derrotado, ainda há milhões de votantes nos EUA que pensam que ele está a fazer um bom trabalho. Neste momento, cerca de 33% dos votos são a favor dele: em que estão a pensar esses votantes? Como é que, depois de tudo o que aconteceu, eles podem querer que o seu país seja governado por aquele homem? E o que acontecerá da próxima vez: será que vai haver outro idiota como Trump a fazer as pessoas darem vivas e votarem nele?
Comparação óbvia, estamos a regredir a uma espécie de Idade das Trevas?
Não acho. Quando estudei História, marcou-me observar que em todas as batalhas sobre liberdade religiosa, direitos civis, direitos das mulheres, ganhámos e depois… há sempre um backlash, uma reação. Mas esta não apaga todo o progresso feito anteriormente. Se se pensar na batalha dos direitos dos gays, começou na década de 1960 para que a homossexualidade fosse descriminalizada. E, hoje, apesar da reação conservadora, ser homossexual não constitui um crime na maioria dos países, essas conquistas não foram revertidas.
Perante o processo do Brexit, estamos a ver um grande triunfo dos conservadores?
Não creio que Boris Johnson seja um conservador: é um político muito radical, que quer mudar Inglaterra. Eu não sou conservador. E não gosto das mudanças que Boris está a fazer: é um nacionalismo fora de moda.
O padre Aldred menciona, no seu livro, a hostilidade de Dreng’s Ferry (precursora de Kingsbridge) perante os forasteiros. As atuais denúncias antirracismo e intolerâncias têm um rasto antigo…
Sim. Eu reflito o que está em meu redor nas minhas histórias. E uma das coisas mais negativas, atualmente, é o ódio aos que são “diferentes”. Economicamente é péssimo, pois quase todo o dinheiro que fazemos é a negociar com os outros, algo especialmente verdadeiro no caso de Inglaterra, uma ilha. Éramos um país terceiro-mundista e os anglo-saxónicos eram demasiado pobres para aspirarem às catedrais. Na Idade Média, o país tinha milhões de ovelhas e vendia a lã, cujos lucros pagaram as igrejas. Mas, depois, os camponeses marcharam sobre Londres e queimaram as casas dos mercadores holandeses, grandes responsáveis pelo bem-estar que se vivia e que nada tinham que ver com os problemas dos impostos. Mas eram estrangeiros… E é o que se está a passar agora.
“Quando o senhor das terras partia para a guerra, deixava à mulher o poder de as governar, e milhares de mulheres fizeram essa gestão ao longo dos tempos. Os autores é que não repararam nelas”
Lady Ragna é uma mulher num mundo misógino a lutar pelos seus direitos. Hoje, tantos séculos depois, continua-se a ter de defender os direitos das mulheres…
Bem, é uma luta em andamento. As pessoas marcham, fazem protestos, e têm a noção de que as coisas não mudam, mas estas manifestações funcionam. Há que ter paciência e nunca desesperar. Se se continuar a combater, podemos ganhar. Há que reconhecer que sempre houve mulheres e homens que recusaram os papéis que lhes eram dados pela sociedade. E é interessante observar que ao longo de toda a Idade Média, quando todos concordavam que as mulheres eram fracas, burras e incapazes, houve abadessas que geriram conventos com muitos empregados e hectares e houve rainhas poderosas. Quando o senhor das terras partia para a guerra, ele deixava à sua mulher o poder de as governar: cabia-lhes recolher as rendas, reparar os castelos, e milhares de mulheres fizeram esta gestão ao longo dos tempos. Os autores de livros é que não repararam nelas!
Ragna é enganada, traída, humilhada, violada, forçada a atos impensáveis… Nunca tem pena de fazer as suas personagens sofrerem tantas provações para entreter os leitores?
Bem, se eu fizer o que ambiciono, haverá sempre algo inspirador. É verdade que Lady Ragna sofre muito, mas ela nunca desiste. O que eu gosto nela é esse espírito, a coragem, a resistência. E é disso que a minha história se ocupa. Um romance que não mostra como as personagens conseguiram suplantar os seus desesperos, que os deixa ser letárgicos, é péssimo – eu detesto esse tipo de literatura e há muita assim por aí.
É um feroz adepto dos finais felizes?
Sim, sou [risos]. E Ragna tem o seu final feliz, depois de muitos anos de sofrimento. Sabe, uma das razões por que os leitores gostam tanto da saga Os Pilares da Terra é que mostra como estas belíssimas catedrais foram erigidas por gente que tinha vidas muito duras, pessoas abrigadas em casebres de madeira onde dormiam no chão. Trata-se do espírito humano a superar as circunstâncias, e este é um tema sobre o qual vale a pena escrever histórias.
Há, aqui, referências históricas e homenagens literárias. Por exemplo, a Jane Eyre, de Charlotte Brontë, e a Rebecca, de Daphne du Maurier, na história do regresso da primeira mulher do marido de Ragna…
Sim, é verdade [risos]. Roubei a história a Brontë e ainda não tinha dado por isso.
E Aldred, um monge que quer construir um centro que valorize o conhecimento, teria algo a dever ao medievalista Umberto Eco?
Sim, recordo-me bem d’O Nome da Rosa. Mas não creio que nenhum dos seus monges que valorizavam o conhecimento fosse gay… Inventei algo que Eco não fez [risos]. Mas, na verdade, penso que não é surpreendente criar uma personagem assim nessa época. Sempre houve gays a procurarem essa vida, e uma das razões é porque se tratava de ambientes predominantemente masculinos. Também porque sentiam que as suas ânsias eram erradas segundo o dogma religioso, acreditavam que uma vida de renúncia os ajudaria a lidar com a questão. Claro que isso é sempre um erro…
Ler um romance seu é sempre uma experiência acessível, que não faz o leitor passar por muitas dificuldades. Receia que o público, ou a crítica, considere os seus novos livros como “mais do mesmo”?
Bem, sou conhecido pela variedade das minhas histórias. Mas tem razão: os meus livros e personagens nunca devem ser difíceis de entender. Para mim, a arte da boa comunicação é tornar tudo claro. A expressão que gosto de usar é “sem esforço”. Sei que há certas pessoas, até amigos meus, que escrevem livros desafiantes, em que os leitores param a questionar-se: “O que se passa aqui?” Eu não desrespeito esses romances, mas não são o tipo de livro que quero criar.
A atual pandemia apequenou a literatura?
Bem, eu escrevi sobre uma pandemia em Um Mundo sem Fim, sobre a “morte negra” que era muito pior do que a Covid-19. Não foi tão internacional, pois o mundo não era tão ligado. Mas a Peste Negra matou mais de um terço da população europeia, africana e do Médio Oriente. Foi muito pior do que a Covid-19: as pessoas morriam muito rapidamente, horrivelmente, só um pequeno número sobrevivia. Esta pandemia é, também, terrível, especialmente para as pessoas pobres, que vivem num pequeno apartamento e nem podem sair… Mas, ao contemplar acontecimentos históricos como a Peste Negra ou as perseguições religiosas dos séculos passados, vemos que houve coisas muito piores do que aquilo que estamos a viver agora.
Na Idade das Trevas
Uma prequela que conta como Kingsbridge nasceu, no século X
Ambição, medo, sexo, quotidiano, amores contrariados, destinos revirados do avesso, fugas e redenção, são estes os barrotes das narrativas de Ken Follett. No novo livro, o ano é 997. Inglaterra está dominada pelos desmandos dos lordes. O povo, esse, teme as invasões vikings e as injustiças. Um construtor de barcos, Edgar, perde a amada e a aldeia num raide bárbaro. Uma dama normanda aposta no marido errado, e enfrenta um novo país – a sua impossível história de amor é o fio ténue que atravessa uma saga povoada de bispos gananciosos, vilões e alcoviteiras, herdeiros e confessores. Kingsbridge, o Amanhecer de Uma Nova Era é um bom retrato de época que não falha a sua vocação de page turner.