Se um economista marciano descesse à Terra e ponderasse, com antenas no ar e fisionomia circunspecta, sobre a realidade filtrada pelos números, afirmaria que o músico Filipe Melo enche estádios a uma velocidade que deixaria os Rolling Stones verdes de inveja. Afinal, o pianista tem sido escutado por mais de 60 mil pessoas (três Altice Arena, mais milhar, menos milhar) em noites sucessivas, desde que a pandemia se instalou. Tudo acontece no escurinho dos ecrãs, round midnight, está o copo de vinho de Bruno Nogueira a esvaziar-se depois de mais de uma hora a improvisar conversas e happenings nos diretos Como É que o Bicho Mexe?, na sua conta de Instagram Corpo Dormente (com mais de 487 mil seguidores). Um projeto pró-sanidade mental e anti-isolamento que o comediante lançou, porque “as coisas simples passam a ter um eco diferente nestes tempos confusos”, escreveu, agradecendo aos muitos que lá têm aparecido, em especial a Nuno Markl e a Filipe Melo pela bonita amizade que se multiplica em coisas boas”.
“Honestamente, eu estava em casa, sem vontade de tocar piano”, confessa Filipe Melo à VISÃO. Um sintoma desconcertante para quem ganha a vida como professor na Escola Superior de Música de Lisboa e a ginasticar as mãos no teclado negro e branco ou a orquestrar arranjos, tendo já, aos 42 anos, discografia própria e colaborações com um A a Z da música nacional – António Zambujo, Ana Bacalhau, Camané, Carlos do Carmo, Deolinda, Old Jerusalem, Sérgio Godinho, The Legendary Tigerman, Orquestra de Jazz do Hot Clube, Orquestra Metropolitana, Orquestra Sinfónica Portuguesa – e com figuras do jazz internacional como Benny Golson, Donald Harrison Jr., Herb Geller, Martin Taylor, Peter Bernstein, Seamus Blake e Sheila Jordan. Mas a vida, diz Filipe filosoficamente, “é cheia de supresas e contradições”: um telefonema a meio de um live do amigo Bruno, a pedir-lhe que tocasse qualquer coisinha para fechar a sessão, veio desarrumar as suas noites pacatas – se se descontarem os projetos em curso de escrita, realização de filmes, produção, aulas… “E eu toquei. De repente, estava a tocar para mais pessoas do que alguma vez toquei, ou tocarei, na vida”, diz o pianista, ainda perplexo com a estatística afetiva que cresce, noite após noite, com Maria João Pires, Rita Blanco, Eunice Muñoz, Albano Jerónimo, Nuno Lopes, João Quadros, entre outros, a visitarem este metafórico bar de fim de noite onde se diz tudo. “Há lives de celebridades mundiais que não têm nem metade das pessoas que veem este fenómeno. E eu perdi tempo a pensar porquê: é porque aquilo é verdade. Não é um produto, não é uma estratégia, não é um canal de exposição: são pessoas que se conhecem, que estão ali a falar, a bezerrar e a passar o tempo.”
A Filipe, este fenómeno trouxe-lhe uma “desculpa” para aprender todos os dias uma música nova. “O Bruno nunca me pediu para tocar nada, os temas têm que ver com o meu estado de espírito. Há uma música qualquer que aparece e diz: ‘Ok, isto é o que estás a sentir hoje.’ Para mim, foi uma aprendizagem tardia perceber a força emocional e comunicacional da música, que vai muito além das escalas, da harmonia e das técnicas que se estudam na escola. Tocar para tanta gente, e perceber que as pessoas se conectam com aquilo, é bonito. Há quem me agradeça, mas isto também me está a fazer muito bem. Às vezes, estou a tocar músicas que aprendi há apenas uma hora… Mas eu gosto disso, é a atração pelo abismo. Pode sair melhor ou pior, mas é verdadeiro.”
Esta espécie de candura aparece-lhe frequentemente no discurso, como uma rima persistente. Amiúde, pede desculpa por “estar a falar muito”, mas é a sua maneira de querer dizer a coisa justa. Para um assumido ex-nerd tecnológico, Filipe Melo exibe boas maneiras que envergonhariam neófitos calibrados por Oxford ou Eton. E se se pode confiar nos radares caprichosos dos gatos, então o artista é mesmo boa pessoa: Filipe diverte-se com a probabilidade de os seus Simba e Mufasa estarem a pensar algo como “porque é que estás a passar mais tempo na minha casa?”. Mas no jogo da verdade ou consequência, o pianista parece sempre preferir a primeira. Efeitos de confinamento? “Na verdade, para mim é um prazer estar em casa, e eu tenho tido um longo treino para a quarentena”, conta, pronto a desfazer a biografia com humor e sem a tentação de sublinhados hagiográficos. “Alguém dizia que por cada hora que passamos com outros devemos passar seis horas sozinhos. Estar sozinho é importante, também para a criatividade. No outro dia, lembrei-me de que o João Gilberto passou uma vida inteira fechado em casa. Se eu chegar a esse ponto, também não é bom, mas dificilmente fico neura por causa da solidão. Este confinamento faz com que eu não me sinta tão inútil ou tão desnaturado por não estar com os amigos”, suspira. E bloqueio criativo? “Felizmente, nunca fui assombrado por isso…” E já que estamos a despachar lugares-comuns, sente-se febril e carente de palcos e palmas? “Eu tenho uma relação complicada com o tocar ao vivo. Pode parecer contraditório, até porque também gosto muito de concertos e fico lisonjeado por alguém gostar de me ouvir em palco… Mas não é uma experiência que eu adore e que sinta como mágica. Gosto mais de tocar em casa e prefiro o contexto informal de uma jam session ao conceito mais formal de um recital”, explica Pipão.
E eis o nome que, por estes dias, os mais distraídos andarão a comparar com genéricos e fichas técnicas, à procura de correspondências. Podem até ser os mesmos que espreitaram recentemente, no YouTube, a sua curta-metragem Sleepwalk, realizada a partir de uma das histórias do livro de banda desenhada Comer/Beber: rodada na América em dois dias, destilando uma melancolia que ganhou prémios (o festival Top Shorts 2020, o Sophia de curta-metragem de ficção 2019, o Onofre de Melhor Curta-Metragem no 25º Festival Ibérico de Cinema…). Ou aqueles que não perderam nenhum dos seis episódios de Um Mundo Catita (2008), protagonizados por Manuel João Vieira – ideia e realização de Filipe Melo (com João Leitão) transformada em nonsense sem travões. Ou ainda os que não estarão bem a ver que ele era um dos gloriosos malucos do podcast Uma Nêspera no Cu (2015-2016), ao lado de Bruno Nogueira e Nuno Markl, tratado sobre o descaramento e o comportamento libertário, sem aspas de espécie nenhuma.
Serão ainda esses, mais alheados, que não se sentaram a ver a primeira curta-metragem coescrita e realizada por Filipe Melo: I’ll See You in My Dreams (2003), inédito filme português dedicado ao universo dos zombies, distinguido com vários galardões (incluindo um Grande Prémio no Fantasporto e um Méliès d’Or), resultado do carinho deste criador pelo universo cinematográfico trash e dos filmes de terror – sem desculpas nem complexos. Aliás, em entrevista à VISÃO em 2018, Filipe partilhava um dos seus troféus curriculares: “Tinha um entusiasmo tão grande por George Romero [realizador de culto do cinema de terror] que apanhei um voo para lhe entregar uma garrafa de vinho do Porto. Havia o pormenor de não saber que o senhor era alcoólico… Ele lá despachou a garrafa na nossa companhia. Apanhar uma bezana com o inventor dos zombies, já ninguém me tira isso do currículo.” Neste currículo, há outras glórias subversivas: aos 15 anos, hacker entusiástico, desistiu dos computadores depois de a polícia bater à porta da casa onde vivia com os pais e os dois irmãos (que, diga-se, não tocam piano mas têm uma banda de covers de rock).
Gaveta de projetos
E Pipão? Não é nome de guerra profissional nem alcunha familiar dada pelo pai, comerciante de automóveis, nem pela mãe, fundadora da editora Texto, aos quais ele professa “gratidão eterna” pelo apoio. É, antes, um heterónimo ternurento partilhado pelos companheiros de estrada da desconstrução musical e cultural conhecida como Deixem o Pimba em Paz: seis espetáculos agendados em 2015 que se transformaram num projeto que já soma 170 concertos, e cuja agenda está interrompida pela Covid-19. Nos ensaios, “rolou magia” e criaram-se as cumplicidades visíveis em Como É que o Bicho Mexe? Codiretor musical do projeto, Filipe revela os batismos aí criados: Bruno Nogueira é Brunão, Manuela Azevedo (vocalista dos Clã) é Manuelão, Nuno Rafael é Rafão, a produtora Sandra Faria é Sandrão, e Nelson Cascais é – punchline à Monty Python – Nelson. Play it again, Pipão.
Músico profissional desde os 17 anos, Filipe Melo estudou na célebre Berklee College of Music, em Boston. “Na altura, eu tinha uma paixão pelo jazz. Não sei por que raio aconteceu, mas eu tinha de ver como é que aquilo funcionava. E sem ser o Hot Clube, não havia curso superior nem sítio onde o estudar. Aproveitei ao máximo: baldava-me muito às aulas para ver filmes e concertos com aquelas pessoas que conhecia só dos discos da Blue Note. Como o contrabaixista Ray Brown, que era um herói para mim e que tocava em dois concertos por dia; todos os dias eu estava lá, com um ‘minidisc’ a gravar aquilo.” Quanto ao accomplishment académico, o pianista atira: “Não é pelo facto de alguém andar numa universidade que se torna bom. O talento é um músculo: se não é trabalhado, atrofia.”
Efeitos secundários
Arrumada a sessão noturna no Instagram, fechado o tampo do piano de cauda que repousa na varanda envidraçada da sua casa lisboeta, e que ele demorou vários anos a pagar, Filipe Melo pode regressar à sua funda gaveta de projetos: banda desenhada, guiões de filmes, realização cinematográfica, arranjos orquestrais e mais um par de botas. Quem o conhece bem sabe da sua proverbial dificuldade em recusar um bom desafio, mas ele continua a recusar rótulos cornucópicos: “Eu não tenho muitas ideias, mas quando tenho uma, só a largo quando está concretizada.” Antes, e ainda a desfazer opiniões feitas sobre o confinamento social e a síndrome de página (ou partitura) em branco, afirmara: “As pessoas dizem que o mais difícil é começar. Isso é um erro: começar é fácil, o difícil é acabar.”
“Fazer um filme é estar no céu”, diz ele. E quando a quarentena foi instaurada, esse era precisamente o dia em que Filipe Melo ia começar a rodagem desta premissa experimental. “Um ator, uma localização, um plano. Um desafio de escrita e experimentação”, descreve, não revelando o título escolhido para este projeto que ganhou subsídio do Instituto do Cinema e do Audiovisual. Mas, à maneira de um bom argumento série Z, apareceu uma pandemia mundial… “Na primeira semana, uma pessoa começa a pensar que o universo conspirou contra si. Depois, percebe que isto é uma gota no oceano, e há que relativizar…”. Terá havido um tamborilar resignado na outra ponta da linha telefónica? É que, fiel a si mesmo, o criador tem também outro trabalho em mãos: o seu “projeto mais pessoal, mais ambicioso e mais bonito”. Uma banda desenhada de 300 páginas, Balada para Sophie, volume megalómano concretizado com o cúmplice de sempre, o desenhador argentino Juan Cavia.
Ambos assinaram a trilogia fantástica As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy, a novela gráfica Os Vampiros, dedicada à Guerra Colonial na Guiné, e Comer/Beber, antes desta maratona. “A história vai de 1920 a 1990, e é um relato ficcional sobre dois pianistas: um inspirado em personagens lunares como Keith Jarrett, Glenn Gould, Bill Evans, e outro nos pianistas entertainers, como Richard Clayderman, Liberace, Jerry Lee Lewis.” A ideia apareceu-lhes quando viam a capa do disco Le Poète du Piano, de Samson François: mão no queixo, olhar no infinito… “Os músicos clássicos, incluindo aqueles que tocam muito bem, têm normalmente capas horríveis. E esta fez-nos questionar sobre quem seria esta pessoa”, conta Filipe. O livro, que será editado ainda em 2020, não é uma comédia, sublinha, mas uma reflexão sobre a vida e sobre o piano, um instrumento que ele conhece tão bem. E é em confinamento que a dupla vai finalizar a última página de texto.
Mas Filipe Melo mostra-se desassossegado com a situação “assustadora” que vê à sua volta: “A cultura é um bem de primeira necessidade, como se comprova agora. E a vida não está fácil para os músicos, os técnicos, artistas que fazem coisas maravilhosas que, por vezes, não têm alcance mediático e que, neste momento, estão a ser invadidos por convites a custo zero.” A indignação vai mais longe: “Irrita-me imenso quando oiço a frase do ‘estamos todos no mesmo barco’”. Não estamos: há uns que estão num iate e outros que estão numa jangada. Um artista que ganha uma fortuna não é igual a um técnico seu que ganha muito menos…”
É preciso dinheiro do Estado, defende. “Se os artistas tiverem meios e uma vida digna e apoiada, não vão ficar de papo para o ar, a gastar os subsídios. Eles vão criar. E isto é um bocadinho injusto, mas vou dizê-lo na mesma: eu não estou a ver nenhum empregado de um banco a pôr dinheiro seu para salvar a instituição que se está a afundar. Mas eu conheço uma série de artistas que gastam as suas poucas economias para continuarem a criar.” Logo à noite, Filipe Melo regressa, muito provavelmente, ao piano. Fechado em casa, como todos os que o ouvem. “Ontem, disse ao meu pai, um amigalhaço que sempre me ajudou com tudo, que tinha tocado para 50 mil pessoas. E ele respondeu-me: ‘Ah ok, um grande abraço’. Mas a parte mais triste disto tudo foi não ter podido dar-lhe um abraço verdadeiro no dia em que fez 80 anos, e não ter conseguido raptá-lo para irmos ao Japão e vê-lo naquelas máquinas do karaoke e por entre os pokémons na rua.” Sim, mas parece o início de uma bela história…