Nome maior da literatura inglesa e universal, com romances publicados em todo o mundo, o autor não esconde a zanga e a irritação com a enorme divisão que, neste momento, atravessa a Grã-Bretanha. Sem medo de tomar partido, viu-se a escrever, freneticamente, no verão passado, um pequeno romance que satiriza um dos principais obreiros do Brexit, Boris Johnson. Em A Barata, que acaba de chegar às livrarias portuguesas (Gradiva, 112 págs., €11), o atual primeiro-ministro inglês é fruto de uma inesperada reversão. Ao contrário do célebre início de A Metamorfose, de Kafka, o repelente bicho acorda de manhã transformado num animal ainda pior: homem, líder do Partido Conservador, dono e senhor do número 10 de Downing Street, em Londres. Com este ponto de partida, todo o absurdo é possível.
Entre viagens e mil e um compromissos, Ian McEwan concede à VISÃO uma das poucas entrevistas que ele tem dado por estes dias. Aos 71 anos, não para de viajar, promovendo os seus romances, nomeadamente o anterior, lançado em 2018, Máquinas Como Eu (Gradiva) sobre outro tema quente da atualidade: a Inteligência Artificial. Um imprevisto, porém, trocou-lhe as voltas. O seu cão adoeceu, teve de ser sujeito a um tratamento urgente, e, quando o autor atende o nosso telefonema, encontra-se no carro, à porta do veterinário, em Londres, à espera de levá-lo de novo para casa. “Peço imensa desculpa”, diz-nos, novamente entre suspiros. “Não há problema”, respondemos. E sem perder mais tempo perguntamos:
A Barata é uma forma de dizer ao seu país, como tantas vezes dizia o antigo speaker da casa dos comuns, John Bercow, “order, order”…
Order, order [risos]. Neste momento, precisamos, de facto, de dizer muitas vezes “order, order”. Na verdade, não sei que ordem será possível pôr na confusão em que nos encontramos. Acompanho intensamente o Brexit desde a campanha para o referendo. O desespero foi crescente. Mas chega uma altura em que, quando vivemos momentos desesperados, sentimos que da direção oposta vem algo que nos pode ajudar: o humor. E, quando humor e desespero se juntam, a literatura nasce.
No seu caso, este livro.
Pois. Há, em Inglaterra, uma longa tradição de sátira política, incluindo na literatura. O grande fundador do género foi Jonathan Swift, com As Viagens de Gulliver e, mais tarde, com a sua Singela Proposta. Na base, há elementos de grotesco e de absurdo que eu também segui. Chegámos a um ponto em que todos nós, escritores, nos perguntámos: o que podemos fazer? A minha resposta foi: escrever qualquer coisa.
Este é um livro de um homem zangado?
Sim, a minha zanga foi crescente e ainda não se apagou. Vivemos num momento bastante evidente de populismo. Uma elite muito poderosa, com muito dinheiro, apresenta-se como antielite. Não há dúvidas em relação a isso. Os grandes fundos de investimento e as maiores empresas estão muito interessados na saída da União Europeia, assim como os proprietários de jornais ou os milionários. Recorrem, então, a esta técnica clássica do populismo que é disfarçarem esse movimento, fazendo-o passar como vontade de pessoas comuns e trabalhadoras que, essas sim, lutam contra as elites, embora sem saberem que estão a ser manipuladas por elas. Isto deixa-me furioso. Disseram-se muitas mentiras. Por isso, há tanta zanga mas também sátira, ironia, amor.
Na primeira metade do século XX, nas duas guerras mundiais, os países identificavam “inimigos” no exterior. Agora parece que as divisões estão mais dentro do que fora. É o caso do Reino Unido?
Em parte, sim. O populismo precisa sempre de um inimigo contra o qual lutar. Mais: esse inimigo tem de estar tanto dentro quanto fora. Tem de ser percecionado como uma ameaça real. No Reino Unido, a divisão tem sido feita a partir de argumentos internos e externos. Se, recentemente, o nosso primeiro-ministro, Boris Johnson, acusou o presidente do Partido Trabalhista de ser o equivalente a Estaline, uma radicalização total do discurso, não nos podemos esquecer de que toda a campanha do Brexit foi uma demonização da Europa.
Quando percebeu que nas suas mãos só estava a hipótese de escrever um livro, teve em mente o leitor, quis mudar opiniões?
Como eu gostava de ter escrito um livro que, uma vez lido, mudasse a opinião de todas as pessoas que apoiam o Brexit, tornando-as adeptas da permanência na União Europeia. Mas isso é impossível. Sabia, de antemão, que cada fação iria detestar o livro ou que iria encontrar nele algum conforto e riso. Não me enganei.
O que pode, então, um livro?
Absolutamente nada, como tem sido sobejamente verificado.
Recorri à imagem da barata para caracterizar os políticos. É uma crítica muito forte. Não há animal mais repelente.
Revejo-me profundamente nela. Algo de muito feio e de desagradável entrou na nossa política. É pelo espírito do tempo que eu chego à ideia da barata, mais do que a vontade de caracterizar este ou aquele político. Sou e sinto-me um orgulhoso cidadão europeu, um privilégio que, em breve, ser–me-á tirado. A União Europeia é, sem dúvida, um dos grandes projetos da Humanidade. Só com memória curta, sem qualquer sentido de História, se pode pensar o contrário. Lembremo–nos de como estávamos em meados do século XX. É desse patamar tão baixo e perigoso que surge o impulso de união, de juntos sermos mais fortes. E, até agora, tem sido um projeto de sucesso. Dizem que vamos ficar mais ricos com o Brexit, mas todos os estudos e previsões indicam precisamente o contrário. Alegam ainda que teremos menos imigrantes, o que é igualmente uma informação falsa; o mais provável é o número não ter variações, o que para mim não apresenta qualquer tipo de problemas.
Fala-se também na questão da soberania.
Outro equívoco. Serão necessários novos acordos, incluindo de comércio, além de todos os outros que se mantêm, nomeadamente com a NATO e com as metas climáticas. E cada compromisso arrasta consigo uma cedência. É a marca do mundo em que vivemos. Os que desejam permanecer na União Europeia são, muitas vezes, atravessados por um sentimento de vacuidade em todo este processo. Take back control [voltar a ter controlo]? Mais uma mentira.
Como vê os nacionalismos crescentes na Europa? O que terá corrido mal?
Como eu gostaria de ter uma resposta para essa pergunta. É impossível apontar um único problema. Há uma conjugação de fatores. Desde logo, o problema das migrações, os salários que estagnaram na Europa, os rumores e as mentiras que, agora, se espalham a uma velocidade incrível. Tem sido uma tempestade perfeita. No Reino Unido, pôr a ideia de sair ou não da Europa num referendo foi a ideia mais maluca de todas.
Porquê?
Porque há muitas maneiras de sair. A maior parte das pessoas que votaram desconhecia o que estava realmente em causa. A guerra civil que havia dentro do Partido Conservador transitou para a sociedade em geral. Foi a nossa especificidade. Mas olhamos para a Europa, EUA, Brasil, Bolívia, Turquia, e vemos que problemas semelhantes estão a desencadear resultados muito iguais. Tem havido uma desigual distribuição de riqueza que se acentua a cada dia que passa.
Diz a sabedoria popular: dividir para reinar. Quem anda a ganhar com todas estas divisões?
Em muitos casos, são projetos de direita. Há uma vontade enorme de desregular, de esquecer compromissos, nomeadamente no ambiente, de desproteger o consumidor. Negociar livremente e com impostos reduzidos.
No seu livro, parodia a organização do comércio, através da instituição, pela barata, do “reversalismo”…
… Tem a sua lógica interna [risos]. És pago por tudo o que compras e consomes. E, se fores suficientemente rico, consegues alcançar um trabalho melhor. Tentei pensar em algo tão estúpido como o Brexit, mas não consegui.
É também uma denúncia do triunfo do consumidor, face ao declínio da cidadania?
Sim, o que é muito assustador. Mas sou um otimista. O mundo está interligado; muita coisa se passa ao mesmo tempo. Quem sabe se, para lá da espuma dos dias, não estarão a germinar movimentos que desconhecemos. Tento convencer-me de que, depois destes populismos, irão surgir novas formas de democracia, com instituições e cidadãos melhores, mais atentos e resistentes.
O que não nos mata, torna-nos mais forte?
Por mais vã que seja, essa é a minha maior esperança.
Ao longo do seu percurso literário, tem escrito sobre temas muito atuais, como as alterações climáticas (Solar) e a Inteligência Artificial (Máquinas Como Eu). As mudanças que vê no mundo puxam-no para a escrita?
Nem sempre. Sinto que me ligo e me desligo da atualidade. Às vezes, quero muito escrever sobre vidas privadas, o que é absolutamente íntimo, como fiz em Na Praia de Chesil (Gradiva, 2007). Noutras ocasiões, sinto vontade de ir à luta.
À luta?
Sim, engajar-me com os temas atuais, defender uma causa, chamar a atenção para um assunto importante. E, nesse sentido, as alterações climáticas são muito mais importantes do que o Brexit, que não haja dúvidas disso. Inevitavelmente, esse sentimento, esse empenhamento, torna-se um enorme estímulo para escrever. E um escritor nunca se verá sem assunto. A Humanidade é demasiado agitada para se deixar cair na tranquilidade.
E em relação à Inteligência Artificial: que preocupações o levaram a escrever um romance sobre o assunto?
Bem, a Inteligência Artificial tem o seu lado positivo. Quando compro um livro na internet, recebo logo várias sugestões de outros que podem ser do meu interesse. Por vezes, interessam-me mesmo; outras vezes, sugerem-me um dos meus livros! [Risos.] Enfrentamos grandes desafios, sobretudo porque os maiores investimentos feitos nesta área são os militares.
A robotização abre espaço à conquista de tempo livre, sobretudo com o tão falado rendimento básico universal. Vê-a como uma conquista ou como um perigo?
Ainda não há dados suficientes para se tirar uma conclusão a partir das experiências que têm sido feitas. Muitos economistas dizem que é a única maneira de manter a sociedade estável, num cenário de progressiva automatização. Levará à apatia ou conduzirá a uma redefinição do que somos, independentemente do nosso trabalho? Eis o dilema.
Esse cenário poderá representar uma idade de ouro para a arte?
Inevitavelmente, incluindo a que pode ser criada pela Inteligência Artificial. Embora medíocre, já há muita música criada por programas informáticos. Talvez a arte abstrata venha a ser um grande campo de trabalho para as máquinas. No romance, será mais difícil. Julgo que não viverei o suficiente para ver um computador a escrever um bom romance.
O que falta aos computadores?
Uma compreensão aprofundada da natureza humana.
E o mundo da imagem não matará o romance?
Não partilho do pessimismo que dominava Philip Roth no fim da sua vida. A forma literária tem sobrevivido a enormes transformações e a concorrências muito poderosas. Ainda nos dá duas coisas muito importantes. Por um lado, a representação da vida interior, de uma maneira que nenhuma outra forma de arte nos dá; por outro, uma constante reflexão sobre a relação do indivíduo com a sociedade no seu todo. Um romance será sempre escrito para um nicho, mas um nicho resiliente. Ah! Agora tenho de ir, já estou a ver o meu cão.
Uma última pergunta: como se chama o seu cão?
Rab, um pachorrento e agora muito sedado cão.