A cortina preta que escondia o palco fazia antecipar a performance. Não era difícil imaginar o que passava pela cabeça do público que se reuniu no Palco Sagres, à meia-noite de sexta-feira, para assistir ao regresso de Grace Jones em Portugal, vinte anos depois da estreia: “Como será que ela vai aparecer?”.
Quando o pano finalmente caiu, Grace Jones soube corresponder à expetativa. Numa espécie de varanda com vista para o palco e para o público, a artista surgiu com um corpete de vinil ao estilo dominatrix, uma espécie de carapaça de tecido insuflada por uma ventoinha e uma máscara de caveira dourada com plumas pretas. O seu corpo estava coberto de pinturas que faziam lembrar rituais tribais. Esguia e elegante como só ela consegue ser. As longas pernas destacam-se no seu 1,80 metros de altura.
Pioneira do girl power, Grace Jones começou a carreira de modelo depois de se ter mudado com a família para Nova Iorque. Trabalhou com algumas das grandes casas do mundo da moda como Yves Saint-Laurent ou Kenzo e apareceu na capa de revistas como a Elle ou a Vogue. A sua figura altiva e, por vezes andrógina, fascinou fotógrafos como Jean-Paul Goude ou Helmut Newton.
Nightclubbing, tema original de David Bowie e Iggy Pop, abre o concerto. A performance está muito longe de ser uma manobra de distração da música. A sua voz é irrepreensível. E o timbre avassalador. Faz-se acompanhar de cinco músicos em palco (teclados, percussão, bateria, baixo, guitarra) e de duas cantoras. Andará pelo reggae, o funk, o rock…
Ao segundo tema, This Is, move-se de forma animalesca – não será esse, também, o nosso lado mais humano? Movimenta-se numa plataforma elevada do lado direito do palco. Grace Jones quer estar visível e o público não quer perdê-la de vista. A pose altiva poderia ser suficiente para a coroar rainha da noite, mas a cantora fará muito mais para merecer o título.
Segue-se Private Life, original dos Pretenders. Entre canções, a artista vai trocando os adereços que põe na cabeça. Desaparece misteriosamente, sem nunca desligar o microfone, continuando a prometer festa ou a fazer juras de amor ao público português. Reaparece sempre transfigurada, de acordo com cada canção, e o público rejubila com este jogo camaleónico.
A sua capacidade de performer está à flor da pele. Não será indiferente o facto de também ter uma carreira de atriz – um dos seus papéis mais emblemáticos é o da vilã May Day, em A View to a Kill (1985), da saga James Bond.
Em Warm Leatherette comanda o público com duas baquetas e obriga-o a cantar. Ninguém ousa desobedecer. Segue-se My Jamaican Guy – desta vez com um longo manto de tecido com as cores da bandeira da Jamaica na cabeça – que termina a capella.
“Os clubes noturnos são a minha Igreja”, anuncia, antes de avançar para um dos seus temas mais populares, Williams’ Blood, do seu disco mais recente, Hurricane, de 2008. É nesta altura que faz a promessa de revelar novidades discográficas em breve.
Agora, está vestida com uma longa saia balão, como imaginamos que Velázquez a teria pintado se fosse um artista contemporâneo. A ida à sua “igreja” até inclui dança do varão, protagonizada por um bailarino de tanga, com o corpo coberto das tais pinturas tribais. Grace Jones a brindar a assistência com alguma objetificação masculina…
No final dos anos 70, voltou-se para a música e tornou-se numa das estrelas do mítico clube nova-iorquino Studio 54, onde conviveu com artistas como Andy Warhol. Mas foi na década seguinte que lançou alguns dos seus álbuns mais bem-sucedidos, como Warm Leatherette (1980), Nightclubbing (1981) ou Slave to the Rhythm (1985).
Em Algés, segue-se um dos momentos mais sublimes da noite. O seu timbre eleva-se para presentear o público com o clássico Amazing Grace a capella. Arrepiante.
Sai de cena e regressa com um chapéu de brilhantes que, com a ajuda de um laser, ilumina toda a tenda. Chegou o momento de Love is the Drug, versão dos Roxy Music, que consegue pôr toda a gente a cantar. Aliás, o coro continuaria depois de a canção acabar. “Como se diz ‘I love you’ em português?”, perguntou.
É já com uma longa crina branca na cabeça e um chicote de plumas – que lhe assenta muito bem – que se atira a Pull Up to the Bumper. Explodem confetis dourados e Grace Jones desce até à primeira fila. Cumprimenta os fãs de um lado ao outro e, no fim, da demanda, dá um beijo na face ao segurança que a ajudou a movimentar-se.
Depois de tirar os sapatos de salto alto – “soube bem” – volta com um arco de hula hoop. Mais uma prestação hipnotizante: sem efeitos especiais, fez o arco girar à volta da sua cintura durante toda a canção que fechou o concerto – o hit Slave to the Rhythm, pois claro – e continuou a bambolear-se enquanto apresentava os músicos. Era o culminar de uma noite inesquecível.
A despedida, já depois de a música terminar, foi ao melhor estilo da irreverente Grace Jones, mostrando os seios ao público. Totalmente rendido a seus pés.