É a mais antiga biblioteca do mundo. Um epicentro de conhecimento praticamente inacessível ao comum dos mortais. A Biblioteca do Vaticano é a guardiã de todos os atos promulgados pela Santa Sé, assim como da correspondência, documentos e cartas dos papas. E nos cerca de 84 quilómetros de prateleiras pertencentes aos Arquivos Secretos, guarda-se ainda a documentação relativa à Inquisição, entre muitos outros tesouros seculares pertencentes à igreja católica. Este mundo de papel e pergaminhos fica agora sob a tutela do poeta, ensaísta e arcebispo José Tolentino de Mendonça, cargo para o qual foi nomeado pelo Papa Francisco.

A Praça de São Pedro, no Vaticano
José Carlos Carvalho
Nascido no Machico, na Madeira, Tolentino de Mendonça aí tornou-se padre, aos 24 anos. Nesse mesmo ano, escreveu o seu primeiro livro de poemas, Os dias contados. E essa dualidade entre a fé e a literatura tem marcado o seu percurso – contam-se pelas dezenas os volumes da sua autoria, distribuídos por géneros diversos como poesia, ensaio, teatro, textos pastorais, crónicas de jornais.
Estudou ciências bíblicas em Roma, doutorou-se em Teologia Bíblica na Universidade Católica, onde foi igualmente professor e vice-reitor, e diretor da sua Faculdade de Teologia. Teve funções de consultor do Conselho Pontifício da Cultura, reitor do Pontifício Colégio Português em Roma e diretor do Secretariado Nacional da pastoral cultural da Igreja Católica em Portugal. Mas o seu dom com a palavra é igualmente marcante, tendo a sua produção poética sido distinguida com vários prémios. Fique com três poemas de José Tolentino de Mendonça, que abordam a fé, o sentido da vida, os caminhos escolhidos:

Poeta, ensaísta, agora arcebispo de Suava, eis o novo arquivista
Marcos Borga (MB)
Isto é o meu corpo
O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve
O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?
Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar
in Estação Central (Assírio & Alvim, 2015)
De Profundis
Faltam aos planos das cidades
esfinges aladas
palmas fora de tempo, matagais
pequenos acrescentos a vermelho
Faltam atlas com algum detalhe
para as emissões noturnas
nos agudos da nossa incerteza
falta uma beleza
a olhar por nós
indiscernível, entreaberta ainda
Talvez a nós próprios falte
essa grande medida
insondáveis cordas na travessia
uma juventude que o mundo possa
documentar
os teus olhos são o que resta
dos livros sagrados
e da grande pintura perdida
in O Viajante sem sono (Assírio & Alvim, 2009)
A noite abre meus olhos
Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado
Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes
A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta
o amor é uma noite a que se chega só
in A Estrada Branca (Assírio & Alvim, 2005)