“Drogaram-nos a comida, ficámos meio alucinados. No barco, havia uns que choravam, outros que gritavam pela mãe, outros que queriam atirar-se ao mar. Quando chegámos ao cais de Luanda, junto à baía, havia altifalantes por todo o lado dos quais saía uma voz ameaçadora que dizia em surdina: ‘Angola. É nossa. Angola. É nossa’. Aquilo metia medo.” Esta é uma memória real das muitas histórias anónimas sobre a Guerra no Ultramar que nos habituámos a ouvir no silêncio das quatro paredes da nossa vida familiar, relatada vezes infindáveis por pais ou avós. “O enfermeiro a molhar-lhes a boca e a água a escorrer para o pescoço, a deter-se num tendão, a sumir-se na axila, o enfermeiro
− Aguenta-te
demasiado ocupado para chorar, todos a sacudirem-se atrás do piloto de macaco azul com o mecânico ao lado, todos a escorregarem por fora e no interior de si mesmos perguntando-se que é do ar de respirar.” Esta é também uma memória da Guerra Colonial Portuguesa, mas apresentada sob a forma de ficção. É um excerto do mais recente romance de António Lobo Antunes, Até que as Pedras se Tornem Mais Leves que a Água, editado em outubro nas Publicações Dom Quixote, mas que poderia ser do primeiro romance do escritor, Memória de Elefante (1979) e, principalmente, do segundo, Os Cus de Judas (D. Quixote, 1979). Suscita, tanto na memória individual como na coletiva dos leitores, um efeito de espelho, como o próprio refere numa crónica, O Coração do Coração: “Reparem como as figuras que povoam o que digo não são descritas e quase não possuem relevo: é que se trata de vocês mesmos.”
Em Até que as Pedras se Tornem Mais Leves que a Água, é introduzido um terceiro elemento, um elemento novo na obra de Lobo Antunes.
“− Se calhar é por ser preto coitado
apesar de um dos indicadores da minha mãe vertical sobre a boca, o outro apontando-me e nesse instante surgiu-me a imagem difusa de uma mulher também preta, deitada no chão com um coágulo na testa, vários coágulos no peito, uma orelha a menos cortada por um dos soldados comigo pequeno agarrado a ela sem chorar.” Desta vez, somos convidados não apenas a olhar para nós mesmos como a olhar para o outro, a colocar-nos no papel do outro – no papel do negro. “Não significa que não haja comentários em outras obras. Mas com esta importância, com este relevo, é, de facto, a primeira vez. É também a primeira vez que Lobo Antunes escreve um romance inteiramente sobre a Guerra Colonial”, defende à VISÃO Ana Paula Arnaut, professora da Universidade de Coimbra e especialista na obra do escritor.
Um novo ciclo
Até que as Pedras se Tornem Mais Leves que a Água fala-nos de um pai e de um filho. O pai é um alferes em comissão na guerra de Angola que, durante uma emboscada em que matam um casal de negros, decide poupar-lhes a criança e adotá-la, trazendo-a consigo para a metrópole. As dores de alma de pai e filho desafiam-se mutuamente, são colocadas numa dança narrativa. As dores do pai são as de um branco, traumatizado, desiludido, uma família esvaziada de afetos; e as do filho são as de um preto, sujeito a “construções racistas baseadas em papéis de género”, como a artista visual portuguesa, a viver em Berlim, Grada Kilomba, o coloca, que tem de lidar numa base diária com o “mito do homem negro infantilizado”.
“Hoje, poucos se assumirão como colonialistas, mas creio que subsistem a maioria dos engodos que legitimaram o Império”, refere Dulce Maria Cardoso, 53 anos, autora de O Retorno (Tinta da China, 2012), que retrata o período em que os ex-colonos, os “retornados”, regressam à Metrópole após o 25 de Abril. “Por exemplo, afirmamo-nos como não sendo racistas, quando basta olhar para as estatísticas e ver como e onde vivem os negros em Portugal, a que empregos têm acesso, como estudam, para concluir que somos efetivamente racistas.”
Ana Paula Arnaut diz que o negro aparece quase sempre na obra de Lobo Antunes numa perspetiva de subalternidade em relação ao branco. “Essas preocupações estiveram sempre presentes, o que não me parece é que tenham acontecido com a intensidade do que acontece neste último livro”, argumenta a docente. “Para mim, este romance confirma que vai ser possível delimitar um novo ciclo na produção literária antuniana.” Juntamente com Da Natureza dos Deuses (D. Quixote, 2015) e Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera (D. Quixote, 2016), Ana Paula Arnaut estuda a possibilidade de um novo ciclo na obra do autor, a que está a pensar designar por Ciclo da Morte. “Não é por acaso que neste romance, e de uma forma tão catártica, o autor fala tão desassombradamente da guerra em África”, afirma. “Nestes três livros há uma obsessão com a morte… Não é que a morte não exista nos outros livros. Há é um predomínio e uma intensidade que, na minha opinião, não acontece nos outros.”
Memória às vítimas
“É daqueles temas que não foram ainda tratados com a seriedade que a Guerra Colonial merece”, declara à VISÃO o escritor Valério Romão, 43 anos, autor de Autismo (Abysmo, 2012). “Não fazia ideia de que aquilo tinha sido tão violento, tão brutal, tão Vietname como de facto foi. Só fiquei a par disso quando vi a série televisiva do Joaquim Furtado, A Guerra. Não se fala da guerra de forma exaustiva como nos EUA, por exemplo. Aqui, até parece que os ex-combatentes são uns criminosos.” E vai mais longe: “Nós somos péssimos a tratar dos Descobrimentos, em que só há uma versão. Somos péssimos a tratar de Camões, péssimos a tratar do Brasil… Péssimos a tratar da Inquisição, em que não há versão alguma”, comenta Valério Romão. “Não falamos destas coisas. Salazar não existiu. Só não existindo é que ele pode ter sido considerado o português mais importante de sempre num programa de televisão. Se ele tivesse existido, isso não acontecia, porque as pessoas tinham vergonha.”
A proposta de se criar um memorial às vítimas da escravatura num dos relvados da Ribeira das Naus, entre a Praça do Comércio e o Cais do Sodré, foi um dos 15 projetos vencedores do último Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Lisboa, divulgados no final de novembro. “Parece-me importante, para que possamos passar pelas coisas na rua e falar delas”, defende Romão. “É importante que suscitem, de alguma forma, perguntas às crianças.”
Dulce Maria Cardoso sustenta que um país que não sabe resolver-se enquanto passado não pode saber pensar-se enquanto presente nem projetar-se enquanto futuro.
Relativamente ao Império Português, houve uma máquina de propaganda que criou uma versão da História que o povo, então maioritariamente analfabeto, interiorizou. A perda do Império foi, acima de tudo, uma perda de identidade.” A escritora conta, ainda, à VISÃO que Eduardo Lourenço lhe disse que tinha a obrigação de escrever sobre o Império, porque nos desfizemos dele “como nos desfazemos de uma camisa velha”. “Não se descoloniza facilmente o pensamento. Atos simbólicos como o memorial à escravatura são importantes, mas interessam sobretudo os atos materiais, atos que mudem para melhor as vidas das vítimas. Se o memorial à escravatura servir para nos descomprometer do muito que precisa de ser feito, prestará um mau serviço.”
Tal como o protagonista de Até que as Pedras se Tornem Mais Leves que a Água, António Lobo Antunes partiu para Angola em comissão de serviço na qualidade de alferes. Os aerogramas que escreveu à mulher, Maria José, durante esse período (de 1971 a 1973), foram reunidos em livro em 2005 com o título Cartas da Guerra – D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto, que foi adaptado para cinema há dois anos por Ivo M. Ferreira. Em entrevista à VISÃO, em novembro de 2003, a propósito do lançamento do seu livro Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo, Lobo Antunes admitia: “Isto não pretende ser uma justificação, mas, naquela época, a gente tinha a sensação de que a ditadura era eterna. Ou se ia à guerra (como o Partido Comunista, que mandava os seus militantes ir à guerra) ou, então, ia fazer-se a revolução para os cafés de Paris.”
A guerra como circunstância
A propósito de Até que as Pedras se Tornem Mais Leves que a Água, Manuel Alegre, 81 anos, cita o poeta René Char: “Há guerras que não acabam nunca.” “Não é um livro sobre a guerra, a guerra é trazida para dentro do livro”, defende, em conversa com a VISÃO, o poeta, político e também ex-combatente na Guerra Colonial. “A guerra vai com eles para a cama, vai com eles para a casa de banho, vai com eles para o consultório médico. E, no meio disto tudo, há uma história de amor.”
E de culpa: “O filho sente-se culpado por gostar daquele pai, mas ao mesmo tempo acha que deve matá-lo porque lhe assassinou o pai e a mãe verdadeiros. Matá-lo é uma espécie de ato litúrgico.”
Na já citada entrevista que deu à VISÃO em 2003, António Lobo Antunes admitia que Angola nunca lhe saiu do corpo. “Vejo Angola como um paraíso perdido. Lembro-me da terra, dos cheiros, das cores, dos horizontes, de toda aquela sensualidade.” À pergunta acerca de como poderia considerar “um paraíso” uma guerra que foi um inferno, respondia: “Mas tudo aquilo que envolvia a guerra era de uma beleza imensa. É curioso porque, afinal, foi um tempo doloroso.”
“Em Lobo Antunes as coisas misturam-se de tal modo que toda a vida daquela geração marcada pela guerra parece uma descida muito lenta ao Inferno”, refere Valério Romão, que assume Lobo Antunes como umas das influências claras na sua escrita. “A guerra é o que acontece quando ele escreve.” Na opinião de Romão, a importância da abordagem que Lobo Antunes faz à Guerra Colonial passa também pelo facto de o escritor retirar o politicamente correto à linguagem que utiliza. E de trazer a guerra para o outro grande território da sua escrita, o do subúrbio. “Lobo Antunes é provavelmente o escritor que consegue ter mais metáforas, comparações e metonímias por linha quadrada. É absolutamente brutal a capacidade imaginativa dele, a capacidade de fazer ligações. É um poeta transviado.” A relação entre memória e realidade é densa, opaca: “É uma forma de escrever que acho interessante também por isso. O que é autêntico numa experiência não é propriamente o que aconteceu, mas a forma como consegues fazer com que ela tenha acontecido.”
(Artigo publicado na VISÃO 1293 de 14 de dezembro)