Na sala espaçosa da sua casa, em Lisboa, com janelas amplas e decorada num estilo descontraído, destacam-se duas antiguidades: o televisor National, recuperado há seis anos da casa paterna, e a máquina de escrever Remington, oferecida por um amigo quando Maggie decidiu ser escritora. Objetos evocativos que convivem harmoniosamente com o quadro da artista espanhola Eva Armisén e uma escultura de pedra – dois corpos entrelaçados – comprada numa feira hippie do Rio de Janeiro. “É uma segunda casa, lá tudo parece mais fácil e leve.”
Antes que Seja Tarde (Clube do Autor, 272 págs., €15,50), sobre três mulheres e seus amores proibidos, é dedicado a Alex, “a amiga que nunca me falha, nunca falhou”. Ao longo de hora e meia, Margarida Rebelo Pinto falou sem reservas dos temas que a movem e do desafio que foi “agarrar” esta história, com cenas de sexo e confissões de amor num tom zangado. A conversa foi acompanhada de café e de bolo de chocolate.
As protagonistas estão descontentes com os homens. Maria do Amparo, por exemplo, sente muito desamparo. Este é um romance de género?
Não foi propositado, mas acabou por resultar assim. As mulheres da nossa geração estão no fim de um ciclo. Têm uma carreira, casaram, tiveram filhos. Eles saíram de casa e elas ficam sozinhas. E uniram-se nos diferentes registos da solidão – a escolhida, a que existe no trabalho, na família, no amor – e como a sociedade do primeiro mundo é inábil a defender-se dessa solidão. Por isso é que o nome dela é Maria do Amparo.
Fale-me destas mulheres, que parecem unidas no desconforto.
A Maria do Amparo representa a minha geração: tem uma vida confortável mas emocionalmente solitária, porque aquilo que deseja é deficitário em relação aquilo que deseja ou sonha. As mulheres que estão acompanhadas também estão insatisfeitas. Os homens são mais hábeis nisto. Ou não sabem estar sozinhos. E elas acabam, de uma maneira ou de outra, por ficar no lugar da outra, nunca são a primeira escolha de um homem. Neste livro quis perceber o que leva as mulheres de qualquer geração a aceitar isto. Inspirei-me no livro Amantes: uma história da outra, de Elizabeth Abbott, que encontrei no Brasil.
A que conclusão chegou?
Quando as mulheres dependiam financeiramente dos homens, estavam subjugadas à vontade masculina. Não estando, o que as leva a suportar isso? A Lurdinhas precisava mas as outras não. Será que existe uma predisposição para serem dependentes apenas para não ficarem sozinhas? A antropóloga Helen Fisher diz que as mulheres solteiras sentem atração por homens comprometidos porque o facto de terem uma família é a prova de que são capazes de fazer isso com elas.
Ficam revoltadas e rotulam os homens de otário, palhaço, “supertadinho”.
Quando se juntam escalpelizam o sexo masculino sem dó nem piedade.
Qual a função das cenas de sexo no livro? Jogos de poder, de comunicação?
O sexo é a cola do mundo. Sem desejo, isto não funciona. A única tristeza é a ausência de desejo. Eu nunca vou escrever um romance erótico porque acho que o erotismo, como um fim em si e sem suporte cognitivo e emocional, não tem interesse nenhum.
O que diz cada uma das personagens através do sexo?
A Lurdinhas encarna o mito da “cama, mesa e roupa lavada”. Cada um está ali a servir o outro e o objetivo dela é caçar aquele homem, tornar-se a legítima, ter essa validação social. A personagem nasceu de um ato de generosidade do Pacheco Pereira. Ele encontra-me na Lx Factory, eu digo-lhe que quero escrever um livro que volte ao estado Novo e ele dá-me a conhecer Amorzinho, da coleção Ephemera (editora Tinta da China), a troca de cartas entre uma costureira e um administrativo, que serviu de inspiração para os perfis do Alfredo e da Lurdinhas. Ela é a personagem mais inesperada e rica do livro por ser tão diferente de mim. Depois, há as filhas das mulheres da minha geração e o seu olhar sobre as mães, para quem o sexo não é, ou deixou de ser, importante, seja por falta de tempo, desinteresse ou por o acharem emocionalmente perigoso.
Ou porque se sentem desqualificadas fora da esfera sexual?
O erotismo é um mistério muito bem guardado. Há quem perca o desejo e há quem fique preso apenas a uma pessoa. Cada pessoa saberá de si para decidir ter uma vida mais ativa ou menos, não dá para generalizar.
No livro refere os casamentos mortos que não acabam.
Isso foi outra reflexão que fiz. Não percebia porque é que, à minha volta, havia pessoas com casamentos mortos mas não saiam deles e outras, com casamentos vivos, que se confrontavam, entravam em ruptura e se separavam. Por isso digo neste romance que as pessoas querem o que sempre tiveram, ou seja, têm um modelo de vida que não resulta, mas conformam-se. Maria do Amparo diz ‘vais-te habituando a coisas que achas impensáveis e quando dás por ti és outra pessoa’. A vida aplaca-nos e depois é difícil sair daquele lugar. Aos vinte achamos que a vida é comprida, aos trinta pensamos que vamos viver várias histórias de amor e se aparece uma pessoa que tem 80% daquilo que nós gostamos, pomos de lado porque queremos 100%. A partir dos quarenta, o mundo começa a encolher. Percebemos que afinal não há assim tantas pessoas interessantes à nossa volta.
“Intriga-me o que as leva as mulheres a aceitarem o papel da outra e quis por os leitores a refletir sobre isso”
Uma das personagens lamenta que o namoro tenha caído em desuso. Será?
A Amparo diz ‘vais ao supermercado e o chocolate vai desaparecendo e quando dás por isso tens um sucedâneo dele’.
Estamos nós aqui a comer bolo de chocolate…
Eu tenho cinco adições: ler, escrever, mandar mensagens, comer chocolate e ir ao o ginásio. Sem estas coisas entro em privação [faz uma pausa]. Vivemos numa sociedade cada vez mais líquida. Confunde-se rapidez com facilidade, acessibilidade com intimidade, público com privado. Eu fascino-me a observar a gestão da imagem que as pessoas fazem nas redes sociais, há também as que não sabem jogar esse jogo e falam para o Facebook como se fosse a melhor amiga.
Mas a gestão da imagem não funciona assim quando se está cara a cara.
É o caso das relações de sexting muito intensas que não dão em nada. O tipo vai beber café com uma mulher a quem já disse tudo e só consegue beber o café porque fica paralizado! Se o sexo é a cola do mundo, as inovações tecnológicas são o diluente, pois vão contra a nossa natureza e fisiologia. Nós precisamos de tempo e proximidade, a tecnologia acelera e cria laços distantes. As pessoas escondem-se atrás das aplicações e dos ecrãs e afastam-se cada vez mais. Não acho que isto vá correr bem.
A forma como estamos a usar a tecnologia está a conduzir a um retrocesso?
Sim. Há 25 ou 30 anos era tudo mais fácil a todos os níveis.
Era fácil “por sermos mais novos”. Se calhar os jovens não pensam isso.
Era mais fácil porque a sociedade era menos líquida. A geração X que queria ser independente acabou por seguir os modelos dos Baby Boomers: casar, construir uma vida em comum, ter filhos, um emprego estável. Isso chegou ao fim.
O tema do romance dirige-se às mulheres ou também aos homens?
Sobretudo às mulheres. Talvez por eu ter mais mulheres na família e sermos três gerações muito fortes. Porém, o feedback que tenho é que eles aprendem imenso sobre a cabeça e o coração feminino, desde o Sei Lá. Este livro vai deixar os homens surpreendidos e as mulheres muito contentes.
Por ter a intenção clara de abanar o “supertadinho”, é isso?
Em certa medida é, por mostrar o que as mulheres esperam das relações e ser um retrato de como os homens reagem. Neste livro eles não reagem, deixam-se ir. Elas querem separar-se e saem, eles são postos na rua.
E pensam “já foste”.
A questão é que a vida não é uma comédia romântica do cinema e aproxima-se mais das séries de TV que não têm uma narrativa linear. Os homens acham que nunca são suficientemente amados e as mulheres querem ser as princesas da vida deles. Intriga-me o que as leva as mulheres a aceitarem o papel da outra e quis por os leitores a refletir sobre isso.
“O tempo é uma ratoeira, é o maior ladrão e não cura nada”
Em qualquer dos casos, o caminho é sempre cheio de pedras. Ou perdas.
Como diz o Alain de Botton, esse grande filósofo do senso comum na sociedade moderna, ninguém ganha a lotaria da vida. É irónico pessoas de classes mais favorecidas olharem com complacência as outras, que depositam esperanças no jogo, quando elas próprias vivem num esquema mental como se tivessem ganho a lotaria em tudo, mas sempre insatisfeitas. Há sempre qualquer coisa que falta. No Brasil dizem ‘aceita que dói menos’. E as pessoas do primeiro mundo não sabem fazê-lo. Ficam zangadas porque não sabem aceitar a sua própria tristeza.
Resta aceitar que não se controlamos os padrões de atração e viver com isso?
Exatamente. Por exemplo, eu sei que gosto de homens altos, bonitos, um bocadinho tímidos e que falem baixinho, porque o meu pai era assim. Mas eu sei que é assim, porque sou filha de um biólogo e de uma psicóloga.
No livro, nem a psicóloga se safa…
Adoro a frase do Alçada Baptista que eu ouvia quando era miúda: “Se eu fosse objeto era objetivo, como sou sujeito, sou subjetivo.” Estamos numa fase em que as estruturas de bas-fond se tornaram-se mainstream – aconteceu com o fenómeno literário As Cinquenta Sombras de Grey – e em que o virtual manda, com as pessoas sempre em pose para o exterior. Ao mesmo tempo, assiste-se a uma grande inversão de papéis. O que vai acontecer aos homens, se já precisam de correr atrás das mulheres para as conquistar, como é da natureza masculina? Eu acho que eles vão perder o desejo e isso preocupa-me. Por isso não é de estranhar que uma capa da Veja com a bela recatada do lar se torne viral.
Como interpreta a onda de denúncias recentes de assédio sexual?
O mundo sempre foi muito perigoso para as mulheres. O Absolutismo retirou-lhes privilégios que tinham na Idade Média e o Romantismo deu cabo delas. Eu fui uma vítima do romantismo durante décadas. Sonhar com o homem ideal e projetá-lo nas relações. Dada a recente inversão dos comportamentos padrão do homem que caça e conquista as mulheres, ele confronta-se agora com uma savana infestada de zebras. É esperada uma contracorrente, um retrocesso.
O tempo é um bálsamo que tudo cura?
O tempo é uma ratoeira, é o maior ladrão e não cura nada. Não cura porque se o que foi vivido se esconde, se guarda à chave numa gaveta do computador, nunca chega a ser processado ou resolvido. Os homens são exímios nisso, em sublimar.
As pessoas cruzam-se na vida com uma função específica e depois cada uma vai à sua vida?
Uma grande paixão não se escolhe, é muito difícil de processar e a probabilidade de encontrar a pessoa certa, no momento certo, e construir uma relação a dois é muito difícil. É uma questão de sorte.
E é uma pessoa de sorte?
(risos) Acho que sou feliz com a sorte que tenho.