Conhecem-se há 40 anos. Sérgio Godinho, 70 anos, fala de “estradas paralelas” no tema inédito Caso For Esse o Caso, escrito propositadamente para esta série de concertos com JorgePalma, 65, que já ficou registada em disco e DVD (Juntos, gravado no Theatro Circo, Braga, em 2015). Mas os seus percursos, pessoais e artísticos, são, afinal, estradas, caminhos e veredas que muitas vezes se cruzaram e aproximaram. Como neste 25 de novembro de 2015, num encontro em casa de Jorge Palma, com os sons de uma tarde fria mas luminosa de Lisboa a entrarem pela janela.
Estamos a falar precisamente 40 anos depois do 25 de novembro de 1975 e alguns comentadores não hesitaram em fazer um paralelismo entres estes tempos e o PREC por causa de um extremar posições à esquerda e à direita…
SÉRGIO GODINHO: Mas vamos falar do 25 de novembro?!
É só um pretexto. Se quiserem…
JORGE PALMA: Lembro-me muito bem, até porque 1975 foi muito importante para mim. E para toda a gente. Editei o meu primeiro disco, foi um ano em que o rebuliço era diário… Eu tocava regularmente na Voz do Operário e noutros sítios com o pessoal que alinhava nos cantos livres. E ia sobretudo às manifestações da LUAR, que tinha miúdas mais giras…
SG: Eu também estive próximo da LUAR, mais por causa do Camilo Mortágua e do próprio Zeca…
Mas como têm visto a situação política portuguesa atual?
JP: Eu estou muito curioso, e a torcer para que este Governo funcione… Para já, acho que é uma pincelada de cor.
SG: Eu acho que este governo é uma grande incógnita, mas neste momento temos que viver com essa incógnita… Mas também acho que a posição do Presidente Cavaco Silva em todo este processo tem sido absolutamente lamentável. Claro que é uma questão polémica porque nunca tinha acontecido na democracia portuguesa uma coligação com maioria relativa ser preterida em função de uma maioria parlamentar, que é também precária, até porque há partidos que nem sequer estão no Governo. Os acordos assinados com o PCP e com o BE têm fragilidades e ambiguidades, diferentes de partido para partido… Acho é que estou aqui a dizer coisas que já foram ditas e repetidas até à exaustão por todos os comentadores e opinion makers. O País está cheio de “tudólogos”, gente que parece que sabe tudo, e isso cansa-me um bocadinho. Resumindo: vejo esta situação com expectativa, mesmo sabendo que não vai ser nada fácil. Mas aconteceu qualquer coisa de diferente, nova, na política portuguesa, isso é consensual. Falemos de outra coisa…
JP: Mudemos de assunto.
Vamos à vossa música, então. Imagino que não deve ter sido fácil escolher, entre tantas canções, aquelas que quiseram levar para os palcos nestes concertos… Qual foi o método?
JP: O método foi sentarmo-nos à mesa os dois…
SG: Queríamos percorrer todo este universo de canções, este espólio…
Cada um escolhia as que queria cantar do outro?
SG: Nalguns casos sim. Por exemplo, o Dá-Me Lume, o Frágil e mais umas duas ou três, eu fazia mesmo questão de cantar. Aqui havia uma questão musical importante: saber aquilo que dá gozo. E cantar canções dos outros é, muitas vezes, um grande prazer. Tenho feito isso, sobretudo no Caríssimas Canções, claro que era só feito de versões. É também disso que se faz o prazer da música e a nossa aprendizagem. O critério principal, para mim, passava por escolhermos canções comuns aos nossos dois universos. Tinham que ser compatíveis, uma coisa mesmo de partilha, até porque decidimos que, ao contrário do que acontecia no Três Cantos [concerto, editado em disco e DVD, que juntava Sérgio Godinho, José Mário Branco e Fausto], todas as canções eram interpretadas pelos dois.
JP: Para mim eram obrigatórias A Noite Passada e O Primeiro Dia, por exemplo. E dá-me um gozo especial cantar a Lisboa que Amanhece.
SG: E estás a cantá-la bem, naquele tonzinho certo.
JP: Foram muitas noites, muitas madrugadas… [Risos.]
Imagino que a lista a que chegaram primeiro tinha muitas mais canções…
JP: É verdade. Gostava de ter cantado a Balada da Rita, por exemplo… Ou pôr o Sérgio a dizer «eu sou a estrela do mar», ou «encosta-te a mim»…
SG: O Encosta-te a Mim talvez não… O Com um Brilhozinho nos Olhos acho que também não entrava bem neste critério. São coisas de intuição, de instinto… Mas claro que não fugimos aos nossos maiores êxitos.
E A Gente Vai Continuar, a fechar, foi consensual, imagino…
SG: Sim, foi ideia do Jorge, é uma escolha óbvia, até porque ele já terminava concertos dele assim.
Quando o Jorge lançou o primeiro disco [Com uma Viagem na Palma da Mão], em 1975, já o Sérgio Godinho editava desde 1971, o ano de Os Sobreviventes. Foi uma influência para si, Jorge?
JP: Foi uma influência marcante. Os discos que ouvi do Sérgio, e do José Mário Branco também, foram uma lufada de ar fresco. Eu, depois de fazer letras em inglês, estava a ser uma espécie de discípulo do José Carlos Ary dos Santos, da sua forma de escrever em português, e o que eu andava a fazer não tinha bem a linguagem que depois vim a receber destes gajos, desses discos. Lembro-me bem de ir ouvir o Os Sobreviventes e o Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades [de José Mário Branco] numa sessão no Cinema Roma, em 1971, com depoimentos gravados pelo Adelino Gomes com eles em Paris… Esse som novo em português foi muito marcante para mim.
Lembram-se da primeira vez em que se encontraram, do momento em que se conheceram?
SG: Acho que foi o Pedro Osório que me levou uma vez ali à Rua do Noronha, para me apresentar o Jorge…
JP: Sim, à casa onde eu vivia nessa altura…
SG: Minúscula…
JP: Já eu sabia de cor, mas não tão bem como sei agora [risos], algumas canções do Sérgio. Conheci-o com algum respeitinho e uma certa reverência apesar de eu ser um irreverente…
SG: Mas quando há um clic, como houve logo connosco, essa coisa do respeitinho passa logo, dilui-se rapidamente. O primeiro disco do Palma que eu ouvi foi o ‘Té Já [de 1977] e fiquei realmente muito bem impressionado, porque estava ali uma voz pessoal, com estruturas de canções e um certo coloquialismo com que eu me identificava. “Temos homem!”, pensei. Éramos completamente da mesma família, até ao nível das vivências, das viagens, das cidades, como, aliás, está bem expresso no meu primeiro disco, o EP Romance de um Dia na Estrada.
JP: Sim, é nesse campo que temos mais coisas em comum.
Na canção inédita Caso For Esse o Caso, o Sérgio escreve que vão juntos “por estradas paralelas”, mas na verdade são estradas que já se tocaram várias vezes antes destes concertos Juntos…
JP: Sim, mesmo antes de o conhecer…Fui uma vez a um programa de rádio em Copenhaga, ainda antes do 25 de Abril, e a canção que escolhi para cantar foi uma do Sérgio, Pode Alguém Ser Quem Não É…
SG: Sim, essas “estradas paralelas” são uma metáfora, também falo dos “caminhos descruzados”… O nosso primeiro encontro artístico, de uma maneira mais formal antes disso cruzámo-nos, provavelmente, em alguns palcos…, foi quando o Jorge me convidou para cantar com ele a Terra dos Sonhos
JP: No meu terceiro álbum, Qualquer Coisa Pá Música [de 1979].
SG: Nestes concertos que agora temos feito, o Jorge até diz que…
JP: …quando escrevi essa canção tentei fazê-la como se fosse o Sérgio a escrever.
SG: E em 2003 convidei o Jorge para cantar comigo n’O Irmão do Meio. Fizemos juntos o Mudemos de Assunto, uma canção que eu achei que tinha tudo a ver connosco. Aquela recuperação a seguir ao fim de um amor…
JP: Sim, temos falado bastante disso, cada um à sua maneira…
SG: No espetáculo que fiz no Coliseu quando Lisboa foi capital europeia da cultura, em 1994, lembro-me que também convidei o Jorge Palma a subir comigo ao palco, e tocámos a Terra dos Sonhos.
Nunca se perderam muito de vista desde 1975…
SG: Há alturas em que se convive mais, outras menos… Agora com este projeto acabamos por estar mais próximos. Ainda por cima somos quase vizinhos, vim para aqui a pé…
JP: O Sérgio gosta mais de andar a pé do que eu…
SG: Havia uma coisa que o Jorge fazia recorrentemente que era ligar-me e perguntar “Qual é o realizador do filme…?”, “Lembras-te quem era o ator que fazia o…?”
JP: Agora escuso de fazer isso, já sei ir ao Google no telefone.