O Inquieto (Volume 1) chega esta quinta-feira às salas comerciais, O Desolado (Volume 2) estreia a 24 de Setembro e O Encantado (Volume 3) a 1 de Outubro. Mas, este fim de semana, no 1º Aniversário do Cinema Ideal, em Lisboa, pode-se ver a trilogia inteira já que o segundo e terceiro volumes serão mostrados, respectivamente, nas sessões das 19h30 de sábado e domingo. Com a apresentação do próprio realizador. O filme ( tem que ser visto no conjunto dos três volumes), começou por ser um projecto completamente atípico. Miguel Gomes, realizador de ‘Tabu’, entre outras das mais delirantes obras do cinema português, decidiu fazer um novo filme contando a história ou as histórias do Portugal ‘entroikado’, através de acontecimentos e situações verídicas recolhidas durante um ano (agosto 2013 a julho 2014) por um grupo de jornalista por esse País fora: Isto porque é impossível ficar indiferente a situação dramática de Portugal, um país que infelizmente subsistiu à custa de um plano de ajuda financeira. Em seguida combinou este material com o discurso ficcional e com a estrutura do conto oriental de ‘As Mil e Uma Noites’. E o resultado é um tríptico cinematográfico delirante e ao mesmo tempo emocionante, de mais de seis horas, dividido em 3 Volumes, respectivamente: O Inquieto, O Desolado, O Encantado. O filme estreou na Quinzena dos Realizadores do 68º Festival de Cannes e se tudo correr bem vai para as salas nacionais espaçadamente e por volume, entre junho e setembro, antes das eleições legislativas. E vai fazer moça para quem está no poder…
AS MIL E UMA NOITES PORTUGUESAS
Tomar como modelo a forma dos contos de ‘As Mil e Uma Noites’, para tratar a crise económica em Portugal parece à partida uma pouco estranho e ‘dantesco’. Até porque os tempos foram (e continuam a ser!) bastante difíceis para todos os portugueses. No entanto, foi um grande desafio para Miguel Gomes, um dos realizadores portugueses que mais prestigio e prémios tem conseguido nos festivais internacionais a começar pela Berlinale (Prémio Alfred Bauer e Prémio Fipresci da Crítica Internacional), que como todos os portugueses ficou mais pobre e enfrentou os cortes financeiros, nos apoios do Estado ao cinema. Para ter uma ideia e do conceito e das dificuldades de montar este projecto, diz Miguel Gomes: Consegui fazer este filme graças à consciência do meu produtor que aceitou fazê-lo, aliás fazer os três filmes e a um grupo de produtores internacionais que arriscaram pôr dinheiro mesmo sem haver um argumento prévio. Já que decidimos propor um modelo de produção simples que foi o de fazer um filme com os acontecimentos que decorreram em Portugal durante um período de 12 meses. A decisão de fazer três filmes em vez de um foi tomada no final das filmagens, conclui Miguel Gomes. E mais uma vez o realizador português funde a realidade com elementos de fantasia e ficção, tal como fizera em Aquele Querido Mês de Agosto, apresentado também na Quinzena dos Realizadores, em 2008, e Tabu, premiado em Berlim, em 2011. Para isso contratou uma equipa de jornalistas para fazer a pesquisa, e a partir daí construir ficções a partir dessas histórias verídicas, sobre o estado do país e fazer este filme. Chama-se ‘As Mil e Uma Noites’, diz Miguel Gomes, porque localizei estas histórias na realidade portuguesa com a crise, com situações por vezes emocionalmente tensas, ora dramáticas ora cómicas, mas sempre num registo como se fosse uma obra ficcional. A Xerazade (Crista Alfaiate) é a narradora, para contar as mil e umas histórias do Portugal de hoje.
A INQUIETAÇÃO
O tema do Volume 1: O Inquieto, varia entre a realidade da crise económica e a ficção cómica, por isso o melhor foi combinar o realismo com o burlesco. Este volume fala sobretudo da fuga e crise de inspiração do cineasta, da ansiedade em relação ao projecto. Os protagonistas destas histórias são selecionados na vida real: trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, ameaçados de encerramento, especialistas preocupados com a proliferação de vespas asiáticas que contaminam as colmeias e o mel, os aldeões indecisos de Resende, nas margens do Douro, em dia de eleições autárquicas, onde se passa a história do galo que vai a tribunal e da incendiária ‘ressabiada’ por ter sido trocada pela bombeira, ou mesmo os dramáticos testemunhos finais dos desempregados de longa duração, no capítulo que culmina no Banho dos Magnifícos (os trabalhadores dos Estaleiros de Aveiro) na praia e que encerra esta parte, no primeiro dia de 2014. Os temas não são apenas económicos ou políticos mesmo que ‘as pessoas tenham visto baixar os seus rendimentos nos últimos anos’ lembra Miguel Gomes, podem ter um ar brincalhão e mesmo sensual, como as ‘donzelas ilha’ ou ‘os homens de pau-feito’, com os homens da troika (Américo Silva e outros), o PM (Rogério Samora), o sindicalista (Adriano Luz) e o tradutor brasileiro (Carlotto Cotta), num dos melhores momentos a fazer lembrar os sketches do Herman José no seu melhor. Vemos também uma baleia encalhada na praia, como um aceno para o crocodilo de Tabu.
A DESOLAÇÃO
No Volume 2, O Desolado, mantêm-se no modelo original, seguindo diferentes discursos mas a matéria prima é a mesma dos lugares do país onde os habitantes vivem marcados pela crise e desilusão. Abre com a Crónica da Fuga de Simão ‘Sem Tripas’ (com o estreante Chico Chapas que tem alma de actor) a fugir por montes e vales até ir no jipe da GNR a caminho do tribunal. Segue-se As Lágrimas da Juíza (um saudado regresso da grande actriz Luisa Cruz ao cinema), num tribunal onde se julga tudo, desde o roubo das vacas, à corrupção, aos banqueiros, aos visa gold, aos chineses, numa sequência com momentos verdadeiramente inspirados e hilariantes; e depois Os Donos do Dixie, onde um cão é pretexto para falar do suicídio de um casal de Santo António de Cavaleiros (interpretado por Teresa Madruga e João Pedro Bénard), de um jovem casal de ‘agarrados’ à droga (Gonçalo Waddington e Joana de Verona), que vive da caridade, e que funciona como uma reconstituição de uma história paralela de exclusão social e abandono, passada numa Torre dos cosmopolitas subúrbios de Lisboa, onde se joga cricket.
VIVA O BENFICA!
O tríptico em contou com uma pequena equipa para rodar e tornar tudo mais fácil e mais barato nesta longa viagem pelo País Real, onde se destaca Sayombhu Mukdeeprom, o director de fotografia que Miguel Gomes, ‘roubou’ a Apitchatpong Weerasethakul, e que filma com essa luz que é só nossa de norte a sul. Mais ou menos a propósito de Sayombhu Mukdeeprom, as imagens de Miguel Gomes a festejar a vitória do Benfica, exibindo no palco da Quinzena dos Realizadores, um cachecol do Benfica, bi-campeão nacional, na apresentação do segundo volume de As Mil e Uma Noites, contrasta com as imagens da carga policial sobre os adeptos no Marquês de Pombal no dia da vitória. Mas curiosamente contrastam ainda com outras que serão matéria do Volume 3: O Encantado e vejamos o que é descrito nas notas de produção no diário do realizador: ‘É o seu primeiro dia de rodagem (Sayombhu Mukdeeprom) e estamos rodeados de milhares de polícias frente à Assembleia da Républica. Os polícias que se manifestam conseguem romper o cordão de segurança dos seus colegas de serviço e começam a subir a escadaria da Assembleia. Nenhuma manifestação passada em Lisboa chegou a este ponto. As imagens que filmamos parecem as de uma revolução. Mas não são. Sayombhu parece estar divertido’. Pensem o que quiserem e Viva Ò Benfica!
NASCEU UM CINEASTA-AUTOR
Com a unanimidade da crítica sobretudo da francesa, o tríptico ‘Mil e Uma Noites’ (O Inquieto, O Desolado, O Encantado), Miguel Gomes ganhou o estatuto de cineasta-autor (se é que não o tinha já com ‘Querido Mês de Agosto’). É verdade que a Quinzena dos Realizadores é uma secção que não tem prémios oficiais, mas também é certo que as histórias de Xerazade, sobre a realidade nacional, escritas por três jornalista portugueses e recriadas pelo universo fantasista e delirante de Miguel Gomes, tornou-se um dos grandes acontecimentos desta edição 68, mesmo que tenha saído de Cannes sem prémios, à expeção do bizarro Palm Dog para ‘Lucky’, o cão-actor que interpreta o episódio de Dixie. Os protagonistas do filme de Miguel Gomes (no Vol. 1 O Inquieto), são o trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, ameaçados de encerramento, os especialistas preocupados com a proliferação de vespas asiáticas que estragam o mel, os aldeões indecisos de Resende, em dia de eleições autárquicas, onde se passa a história do galo que vai a tribunal e da incendiária ressabiada por ter sido trocada pela bombeira, ou mesmo os dramáticos testemunhos finais dos desempregados de longa duração, no capítulo que culmina no Banho dos Magnifícos (os trabalhadores dos Estaleiros de Aveiro) na praia e que encerra esta parte, no primeiro dia de 2014. Os temas não são apenas económicos ou políticos há também histórias brincalhonas e sensuais, como as ‘donzelas ilha’ ou ‘os homens da troika de pau-feito’, (Américo Silva e outros), o PM (Rogério Samora), o sindicalista (Adriano Luz) e o tradutor brasileiro (Carlotto Cotta). Vemos uma baleia encalhada na praia, que faz lembrar o crocodilo de ‘Tabu’. No Volume 2, O Desolado, Gomes mantêm o modelo original, diferentes discursos mas com a mesma matéria prima dos lugares do nosso País onde os habitantes vivem marcados pela crise e desilusão. Abre com a Crónica da Fuga de Simão ‘Sem Tripas’ (sinónimo do famoso Joaquim Palito, com o estreante Chico Chapas a fazer do primeiro) a fugir por montes e vales até ir no jipe da GNR a caminho do tribunal por ter morto a mulher. Segue-se As Lágrimas da Juiza ( Luisa Cruz), num tribunal onde se julga tudo, desde o roubo das vacas, à corrupção, aos banqueiros, aos visa golds, aos chineses, numa sequência com momentos verdadeiramente inspirados e hilariantes; e depois Os Donos do Dixie, onde um cão é pretexto para falar do suícidio de um casal de Santo António de Cavaleiros (Teresa Madruga e João Pedro Bénard), de um jovem casal de ‘agarrados’ à droga (Gonçalo Wadington e Joana de Verona), que vive da caridade, e que funciona como uma reconstituição de uma história paralela de exclusão social e abandono, passada numa Torre dos cosmopolitas subúrbios de Lisboa, onde se joga cricket. O circulo fecha-se num Volume 3 (O Encantado) onde Miguel Gomes dá destaque à personagem de Xerazade (Crista Alfaiate) e às brilhantes histórias dos inannaráveis passarinheiros de Chelas (e novamente com Chico Chapas) e a famosa manifestação dos policias que quase culminou na invasão da Assembleia da República. O filme começa em Marselha no cenário da ‘Ilha das Virgens’, e do castelo do Grão Vizir (Américo Silva), onde vive Xerazade. É aqui que esta começa a sua narrativa e os seus desvaneios amorosos; primeiro com Pendelman o Loiro Burro (Carlotto Cota) e depois com o rapper Elvis. Mas do outro lado do mundo (O Parque das Nações virado ao contrário), estão as inúmeras histórias do canto dos pássaros Tentilhões, dos passarinheiros e a Floresta Quente, um capítulo marcado pela manifestação dos policias. O filme termina simbolicamente com a história do pássaro que canta até morrer e nesse momento Xerazade cala-se, para dar lugar a Chico Chapas, o rei dos passarinheiros a percorrer uma estrada ladeada de campos de espiga e papoilas vermelhas. Uma das muitas referências no filme ao Benfica. ‘As Mil e Uma Noites’ (O Inquieto, O Desolado, O Encantado) é um filme sobre nós e a crise, mas é sobretudo um filme poético e encantatório, que só faz sentido se for visto na totalidade.
BIOFILMOGRAFIA:
Nasceu em Lisboa em 1972. Estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema e trabalha como crítico de cinema na imprensa portuguesa entre 1996 e 2000. Realizou várias curtas metragens premiadas em festivais como Oberhausen, Belfort ou Vila do Conde e exibidas em Locarno, Roterdão, Buenos Aires ou Viena. Realizou em 2004 a sua primeira longa metragem, A CARA QUE MERECES. Em 2008, estreou o seu filme, AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO, na Quinzena dos Realizadores em Cannes, posteriormente exibido em mais de sessenta festivais internacionais onde recebe dezesseis prêmios. Teve retrospectivas nomeadamente na Viennale (Aústria) em 2008, no Bafici (Argentina) em 2009 ou no Cinema Arsenal em Berlim (Alemanha) em 2010. TABU, exibida na competição oficial da Berlinale 2012, onde recebeu: Prémios Aflred Bauer e Prémio Fipresci. E agora a trilogia ‘Mil e Uma Noites’, estreada na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2015.
CURTAS
‘Entretanto’, 1999
Filme-revelação do realizador e o primeiro produzido pela Som e a Fúria. Apresentado como um musical, trata-se de um retrato da adolescência, que dá primazia à estética e a uma obsessão pelos planos simétricos. Com este filme nasceu um novo realizador.
‘Inventário de Natal’, 2000
Começa com um belo traveling que registra um presépio caseiro. Entre as figuras que adoram o Menino Jesus, está um Homem-Aranha de plástico. Depois está a família sentada à mesa de Natal, as crianças, adultos, prendas, árvore de Natal e o tio que dá bofetadas carinhosas. Um filme de uma enorme nostalgia da infância e do Natal.
’31’, 2001
Um filme só com dois acores que tem como pano de fundo o tênis. Principalmente como em ‘Entretanto’, o destaque deste filme vai para o trabalho plástico e para a direção de fotografia, do também realizador João Nicolau.
‘Kalkitos’, 2002
Novamente a nostalgia da infância é o tema de uma obra a preto e branco, encomendada para os 10 Anos do Festival ‘Curtas de Vila do Conde’. Um adulto finge que é criança, bricando com ‘kalkitos’ é alvo de gozo dos miúdos.
‘Cântico das Criaturas’, 2003
Uma curta de 26′ algo atípica e imersa de poesia, que revela o encontro de São Francisco de Assis com Santa Clara, nos bosques de Úmbria.
‘Pre Evolution Soccer’s one minut dance after a golden goal in the master league’, 2004
Uma curta muito experimental de apenas um minuto e inspirada no famoso jogo de computador e consola.
LONGAS
‘A Cara Que Mereces’, 2004
A primeira longa de Miguel Gomes está dividida em duas partes. A primeira é uma curta perfeita num regresso à história de um adulto com alma de criança. A segunda é um desvario de um grupo de amigos que procuram recuperar uma infância que lhes escapa. O filme é uma espécie de registo de um ritual de passagem e de um tempo que ficou para trás ou a metáfora do realizador para um percurso mais adulto.
‘Aquele Querido Mês de Agosto, 2008
Uma ficção com traços documentais que retrata essencialmente e com ironia o muitas vezes improvisado processo de produção dos filmes portugueses. Por outro lado é uma história de amor de verão de dois adolescentes, inspirado na música ‘pimba’: a música dos cantores populares portugueses que percorrem as feiras durante o verão.
‘Tabu’, 2012
Uma idosa temperamental, a sua empregada cabo-verdiana e uma vizinha dedicada a causas sociais partilham o andar num prédio em Lisboa. Quando a primeira morre, as outras duas passam a conhecer um episódio do seu passado: uma história de amor e crime passada numa África de filme de aventuras. Trata-se à primeira vista de uma história de amor portuguesa, graciosa e cativante. Mas mais do que isso ‘Tabu’ é um excelente ensaio sobre o poder da imagem do cinema clássico, criada como uma extraordinária inovação contemporânea.